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TEDH, Grande Chambre, Sanchez Sanchez c. Reino Unido, Acórdão de 03 de novembro de 2022

22 nov 2022

Cidadão mexicano suspeito do tráfico de droga pelos EUA. Pedido de extradição satisfeito. Queixa por violação do art. 3.º CEDH em caso de aplicação de pena perpétua sem possibilidade de revisão da execução da pena.

CEDH, artigo 3.º, alegação de possível tortura e tratamentos cruéis , desumanos e degradantes em caso de cumprimento de pedido de extradição dos EUA, por receio de aplicação da pena de prisão perpétua. Não violação.

Ismael Sanchez Sanchez, um cidadão mexicano, queixou-se ao TEDH contra o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte por, tendo sido detido e preso para extradição para os EUA por alegado tráfico de droga, a sua extradição poder implicar a aplicação da pena de prisão perpétua, na modalidade em que esta não é revista em sede de execução e o condenado não regressa mais à liberdade. Esta solução, em seu entender, seria violadora do art.º 3.º da CEDH (proibição da tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes).

Sanchez Sanchez é suspeito de estar envolvido no tráfico de droga, no contexto da alta criminalidade transnacional organizada, no México, a qual possui uma ramificação em Atlanta, na Geórgia, causando destarte danos e doenças nos consumidores toxico dependentes, os quais são por vezes forçados a adquirir a mercadoria. Os produtos in commercium são a marijuana, a heroína e fontanyl. Estes factos foram descobertos a partir da apreensão, no casco de um navio, de 2. 613 toneladas de marijuana, a qual seguiria para um entreposto comercial  (ware house), em Atlanta. Além deste produto, foram encontrados 430 grs de Fontanyl, bem como 14 Kgs de heroína revestida de fontanyl, no apartamento de Sandy Springs, do suspeito. Segundo informação do Departamento Norte-Americano da Justiça, Sanchez Sanchez não tem qualquer condenação anterior, nada constando do seu registo criminal.

Nesta conformidade, quando Sanchez Sanchez, se encontrava no Reino Unido, o Departamento da Justiça Norte Americano requereu, por meio de cooperação judiciária internacional, a sua extradição para os EUA, para aí ser julgado e, eventualmente condenado. O pedido do Departamento de Estado da Justiça Norte Americano foi satisfeito por Acórdão da High Court britânica.

Não se conformando com este Acórdão que determinou a sua extradição para os EUA, Sanchez Sanchez queixou-se ao TEDH, invocando, como já o fizera, o art.º 3.º da CEDH, no sentido de que a pena, a que pode vir a ser condenado, ser de prisão perpétua sem revisão possível. Segundo ele, esta pena, se não suscetível de revisão em execução da condenação, incorpora um tratamento cruel, desumano e degradante para o efeito da aplicação do art.º 3.º da CEDH.

Após ter procedido ao seu usual estudo sobre o direito e a prática dos países interessados, o TEDH passou à análise concreta do caso apresentado ao seu juízo.

No plano da admissibilidade, admitiu sem debate a queixa, em razão de ser tempestiva e do tema assumir uma importância que é pacífica no espaço europeu.

O Requerente formulara, na queixa, oposição à extradição com o argumento de que a possível sentença seria excessiva, a ser uma pena de prisão perpétua sem revisibilidade em sede de execução da condenação, embora não recorrendo ao argumento da proporcionalidade. Em seu entender, na linha assumida pela defesa, perante a gravidade do que lhe é imputado, se vier a ser condenado em prisão perpétua, tal pode ser suportado. Mas a impossibilidade de, no decurso da execução da pena, vir a ser colocado em liberdade por decisão judicial, esta sim, seria o caso de violação do art.º 3.º da CEDH, uma vez que o seu bom comportamento em prisão não poderá vir a ser atendido, desmotivando assim qualquer detido preso de um bom comportamento ou da ideia de redenção, pois estes em nada serviriam ao atenuar da pena e à reintegração do indivíduo na sociedade, uma vez que toda a pena , neste caso, é sem esperança.

O TEDH aceitou, no seu teste de Convencionalidade (aferição da anterioridade legal da medida, da sua clareza e previsibilidade, e da sua proporcionalidade) que a medida está prevista na lei dos EUA e que é cognoscível, tanto que foi invocada pelo extraditando, cumprindo assim o requisito da clareza. Esta clareza, em matéria penal, integra o conceito de previsibilidade da lei para efeitos de prevenção geral e especial do agente. Quanto ao teste de proporcionalidade, este não pode ser desenvolvido pelo TEDH, assentando na razão muito pragmática de que Sanchez Sanchez ainda não foi julgado nos EUA.

Vários factos, com efeito, podem condicionar a argumentação expendida por Sanchez Sanchez. Como existir um fundamento de compaixão segundo as regras dos EUA para a prolação de sentenças criminais (regras que não existem para os países europeus continentais, nem a regra da compaixão, a qual pertencerá ao espaço de discricionariedade do Julgador, nem estas regras de prolação de sentenças. Ou, Sanchez Sanchez se dispuser a cooperar com o tribunal norte americano, por exemplo, na descoberta da rede criminosa e na promoção pena subsequente dos demais traficantes.

O Acórdão em apreço do TEDH não é passível de censura. O problema que aqui obsta à oposição à extradição, mediante a invocação do art.º 3.º da CEDH, no caso de Sanchez Sanchez, é a imprevisibilidade do sentido da futura decisão norte americana. Contrariamente a Soering (1989), um sujeito alemão que havia morto os pais da namorada nos EUA, e de que se sabia já que a alternativa em caso de entrega aos EUA era, ou a morte ou a prisão perpétua, tendo este cidadão alemão sido entregue na condição, cumprida, da não aplicação da pena de morte, Sanchez Sanchez ainda não foi julgado, e configurar-se ia difícil ao TEDH o estabelecer uma posição de entrega deste condicional. Que sucederia se Sanchez Sanchez viesse a ser condenado na pena perpétua depois de ter sido entregue? Lá ficaria sem devolução de retorno. E se não fosse condenado? E se fosse retido na Europa pelo TEDH? Neste caso, tal como sucede com o ator norte-americano a residir em França, Roman Polanski, a justiça norte americana teria sido impedida em seu justo funcionamento, o que representa atrasar a justiça em termos universais. Pois todo o Estado de Direito pretende e aceita a aplicação da Justiça por parte dos demais Estados de Direito.

A alternativa a Dedere, seria Judicare, ou seja julgar Sanchez Sanchez aí onde foi detido e preso, no Reino Unido (aut dedere aut judicare, o lema do direito da extradição), mas esta hipótese nem sequer chegou a ser levantada.

Pelo que seria muito imprudente, da parte do TEDH, opor se a esta extradição por via do acionado art.º 3.º da CEDH, sem dar à Justiça norte americana, a possibilidade de julgar.

Uma atenuante ponderosa, se lograr obter vencimento esta defesa de Sanchez Sanchez, será provar com êxito, como consta das regras e dos precedentes norte americanos, que, do seu envolvimento no tráfico de droga, não resultou a morte de ninguém (§ 101 do Acórdão em apreço). Neste sentido ainda existirá a possibilidade da Justiça norte-americana não condenar Sanchez Sanchez em pena de prisão perpétua, na modalidade insuscetível de revisão em sede de execução de sentença, mediante, por exemplo, o bom comportamento acima referido. Seria, assim, possível uma muito hipotética Reformatio in melius em sede de execução de condenação, aceitando-se como configurável a colocação do indivíduo em liberdade algum dia (um Dies de resto incertus e num Incertus quando; não obstante uma luz ainda que ténue no túnel da liberdade individual).

Por tudo isto, era, de todo, impossível, por imprudente, uma moção de censura preventiva por parte do TEDH à Justiça norte americana. Isto tanto mais quanto são conhecidos os devastadores efeitos do narcotráfico mexicano nos EUA, sendo a família mais poderosa deste cartel, a família Khanz, uma família declarada inimiga dos EUA e constante da lista dos inimigos públicos da Nação além Atlântico.

Por todas estas razões, a sentença de concessão da extradição de Sanchez Sanchez à Justiça norte americana da parte da High Court britânica, não é suscetível de ofender o direito à não aplicação na pessoa, de tortura e penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, concedido pelo artigo 3.º da CEDH. Verificou-se, assim, a não violação deste preceito convencional, num Acórdão de inadmissibilidade (são raros), que merece o respeito do humilde leitor assíduo da jurisprudência do TEDH.    


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos