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TEDH, Grande Chambre, Selahattin Demirtas c. Turquia, Acórdão de 22 de dezembro de 2020

12 jan 2021

CEDH, Artigo 5.º § 1, privação arbitrária do direito à liberdade e segurança, § 3 fundamentação deficiente da suspeita razoável fundamento da prisão preventiva , §4 direito ao recurso da detenção; 10.º ofensa à liberdade de expressão de personagem com funções políticas em democracia; 18.º inadmissibilidade de restrições de direitos convencionais diversas das previstas na CEDH; 3.º Protocolo n.º 1, direito a eleições livres por sufrágio secreto e direitos de participação política.

Em fevereiro de 2017 Selahattin Demirtas queixou-se ao TEDH contra a Turquia, de que a sua prisão preventiva violou os artigos 5.º (direito à liberdade e à segurança), §§ 1, 3 e 4; 10.º (direito à liberdade de expressão); 18.º (restrições não legítimas ao exercício de direitos) da CEDH, bem como o art.º 3.º do Protocolo n.1 à CEDH (direito a eleições livres por sufrágio secreto e direitos de participação política). A 2.ª Seção do TEDH, a quem a queixa foi inicialmente distribuída, declarou estas queixas admissíveis, entendeu que não tinham sido violados os art.ºs 5.º §1, e § 4 mas que se registava a violação do art.º 5.º § 3 e do art.º 3.º do Protocolo n.º 1 (o P.1), por unanimidade. Entendeu, por maioria, que o art.º 18.º tinha sido violado em articulação com o art.º 5.º § 3. Quanto ao art.º 10.º, não haveria que proceder ao seu exame, considerando ainda a Seção que o Governo turco não teria violado a regra do direito de queixa, ao abrigo do art.º 34.º. O juiz Karakas emitiu uma opinião dissidente. No seguimento deste Acórdão tanto o queixoso como o Governo solicitaram o exame da queixa pela Grande Chambre (a GC). Neste segundo processo de queixa intervieram, na qualidade de amicii curiae, a Sra. Comissária para os direitos humanos do CoE bem como a União interparlamentar (a IPU) e várias ONGs.

Nascido em 1973, o queixoso exerceu na Turquia uma carreira política, tendo sido um dois Vice-presidentes do Partido popular democrático, um partido da esquerda pro-Curdo. Exerceu a partir de 2007 um mandato de Deputado à Assembleia da República (a AR) turca, tendo sido eleito para um segundo mandato, que cumpriu até as eleições legislativas de 2018, às quais não concorreu. Em 2018 concorreu às eleições Presidenciais, não tendo sido eleito. Em 2014, o grupo islâmico Daesh moveu uma ofensiva militar na região Curda da Síria, junto à fronteira turca sendo que o Curdistão tem o respetivo território distribuído entre a Turquia, a Síria e o Iraque, nesta Região do Oriente Médio. Apesar da presença de forças transnacionais na região, apenas reagiram a esta ofensiva as Unidades de proteção popular curdas, em torno da cidade de Kobani, Unidades de proteção em relação com o PKK (Partido dos trabalhadores Curdo) e o Partido Popular Democrático (o PPD) de âmbito nacional na Turquia. A seguir ao confronto, a Turquia abriu as fronteiras aos refugiados em consequência de compromissos internacionais entretanto assumidos, refugiados estes, formados por mulheres, crianças e idosos. Mas as autoridades turcas fecharam a fronteira relevante de Kobani, no sentido de impedirem os voluntários curdos de abandonarem Kobani, forçando-os a suportarem as investidas de Daesh e a continuarem o combate contra estas forças. Neste contexto, ocorreram manifestações em toda a Turquia, pedindo os manifestantes a intervenção militar turca  no sentido de apoiar os resistentes de Kobani. Vários tuítes foram publicados por vários responsáveis políticos entre os quais o queixoso neste sentido desta necessária intervenção militar.  Um responsável do PKK juntou-se a estas manifestações nas redes sociais, sendo que as autoridades turcas consideram o PKK um partido terrorista e não aceitam a participação política deste partido. A toda esta comunicação juntaram-se, ainda, associações pro curdas. As manifestações vieram a intensificar-se tendo ocorrido confrontos violentos entre as forças da ordem e os manifestantes em vários pontos do País. Chegaram a ser impostas medidas de recolher obrigatório. Nesse momento, o queixoso teve a oportunidade de proferir um discurso na sede do seu partido, em Diyarbakir (a capital do Curdistão turco) afirmando a necessidade da intervenção militar turca uma vez que Daesh já tinha avançado para outras localidades do Norte da Síria, sempre no Curdistão (sírio). Responsabilizava o poder instituído pela escalada da violência interna e pelo abandono de cidadãos que partilhavam da mesma etnia que a minoria nacional curda. Chegou a dar uma entrevista a um jornal em que explicou, com entusiasmo, a sua posição. Também veio a defender a pessoa de Abdullah Oçallan, o líder curdo em cumprimento de pena de prisão de natureza política, desde 1999 e ainda hoje não libertado, não na qualidade apenas de preso político mas como o futuro mesmo da Turquia no que respeita à Paz e à Liberdade. A condição importantíssima de Oçallan, para as liberdades justificava, segundo ele, a colocação deste líder em prisão domiciliária, deixando a prisão de betão e de ferro em que se encontrava.

Neste quadro, decorrera a partir de 2012, um processo de paz, visando a harmonização das relações entre a maioria turca e a minoria curda da Turquia, designado por “Processo de Resolução” (do conflito). Entretanto, já em 2015, o Daesh intensificou os seus ataques, tendo provocado atentados terroristas em Diyarbakir. No seguimento destes atentados, o Presidente da República turca (o PR) rejeitou a responsabilidade destes atos terroristas sobre o PKK e o PPD. Esta tomada de posição do PR teve por consequência uma fragilização dos respetivos líderes face às forças da ordem. Ainda em 2015, novamente, o Daesh conduziu, muito infelizmente com êxito, um espetacular atentado em Ankara, do qual resultaram mais de 100 mortos e 500 feridos. O queixoso continuou a assumir as suas tomadas de posição. Em 2016 o PR organizou uma Revisão constitucional em torno das imunidades dos parlamentares. Recebida a proposta de Revisão, a AR adotou o Decreto de Revisão constitucional assumindo a Revisão constitucional almejada pelo PR. Apenas alguns Deputados se opuseram e vieram a pedir, sem êxito, adaptações do regime a partir de então em vigor, das imunidades dos parlamentares. Foi neste quadro que 93 investigações do Ministério Público (o MP) foram conduzidas sobre as atividades do queixoso, tendo o Procurador- geral Distrital de Diyarbakir organizado 31 investigações criminais, que apensou num processo-crime único, sendo que 7 outros conjuntos processuais foram iniciados em diversas Comarcas judiciais da Turquia. Destes 8 quadros processuais contra o queixoso, resultou a abertura de 6 processos penais contra o queixoso. Na instrução dos processos, foi sempre negado ao queixoso o acesso à documentação pertinente para a sua defesa (eventualmente terá sido mantido em segredo de justiça, ou seja, sem conhecer exatamente os fundamentos precisos que legitimavam as acusações penais [não em sentido técnico mas no sentido de imputações nos termos do art.º 6. da CEDH]), tendo sido rejeitadas todas as suas objeções. Foi realizada uma busca domiciliária em casa do queixoso, a pedido do MP de Diyarbakir, cujos resultados determinaram a prisão do queixoso, mais 12 Deputados à AR. No dia da sua prisão o queixoso beneficiou do auxílio de 3 advogados e, apesar da oposição deduzida, veio a ser colocado em prisão preventiva com o fundamento da sua pertença a uma organização terrorista armada e à incitação pública ao crime. Apesar da invocação do benefício da imunidade parlamentar pelo queixoso, o juiz que ordenou a prisão preventiva justificou-a com a exclusão constitucional da imunidade no caso dos crimes terroristas. Uma vez que o queixoso fora preso com base na suspeita da prática destes crimes, ficava excluída a sua imunidade. Oito outros Deputados vieram a ser presos, em várias localidades da Turquia por esta ocasião, com o mesmo fundamento. Todos os recursos desta decisão interpostos pelo queixoso ficaram sem efeito. Um tribunal de júri de Diyarbakir examinou a decisão do Juiz de instrução criminal (o JIC) que validara a prisão preventiva e confirmou-a, com vários fundamentos, alguns dos quais em formulações previstas na CEDH a título de exceções ao regime dos direitos, liberdade e garantias constantes da mesma. Após cerca de um ano em prisão preventiva, o MP veio a proferir a acusação penal, em Janeiro de 2017, acusando o queixoso de participação em formação terrorista armada, e de apologia do terrorismo, num documento de 500 fls. (excluindo os numerosos anexos contendo a abundante prova documental). O queixoso voltou a pedir a colocação em liberdade, mantendo-se à ordem do processo e do julgamento, pedidos que foram rejeitados. Foi pronunciado pelos crimes de que era acusado. As razões da manutenção da prisão preventiva no decurso do julgamento foram a gravidade dos crimes imputados, a especial complexidade do processo e o perigo para a prova que ainda pudesse ocorrer. Por razões de segurança o tribunal competente foi desaforado de Diyarbakir para Ankara, tendo o tribunal de Ankara mantido a prisão preventiva do queixoso, com as referidas razões. Ainda assim, por meio de decisão adotada em 2018, o queixoso obteve uma prestação pecuniária a título de indemnização, pelo facto de os tribunais não terem examinado ex officio a questão da licitude da sua prisão preventiva, tendo este exame apenas ocorrido por impulso processual da defesa. Em dezembro de 2017, o tribunal criminal de Ankara em formação de júri, procedeu à primeira audiência de julgamento do queixoso. Este arguiu a ilegitimidade da sua prisão e dos vários processos contra si aduzidos em forma de processo único, radicando esta ilegitimidade no facto de o regime o ter pretendido silenciar e impedir a sua atividade parlamentar, a qual fora conduzida pacificamente e sem incitação à violência. Os argumentos da defesa e os correspondentes recursos foram todos negados. À data da prolação do Acórdão da GC do TEDH, o queixoso ainda se encontrava em prisão. Sendo o recurso ao Tribunal Constitucional (o TC) que um requerente tem de esgotar para ver admitida a sua queixa junto ao TEDH segundo a jurisprudência deste tribunal relativa à Turquia (trata-se, neste País, de um recurso de amparo constitucional o qual, por ser um recurso concreto de queixa, tem a potencialidade de esgotar o processo interno mediante uma decisão favorável a um requerente, dando assim mais uma possibilidade ao Estado de resolver o problema de direitos humanos perante ele colocado, segundo os critérios da CEDH), o queixoso esgotou este recurso judicial interno numa primeira oportunidade, tendo sido confrontado com uma decisão de inadmissibilidade da parte do TC. Para esta jurisdição existiria uma forte presunção a cargo do queixoso, de que este teria cometido um conjunto de actos criminais gravíssimos, conjunto que se encontrava inserido na tipologia dos fundamentos constitucionais de levantamento da imunidade parlamentar, nos termos da recente Revisão constitucional. O TC ainda afirmou que da sua jurisprudência não constava nenhum Acórdão em que o TC houvesse concluído pela ilicitude da condenação penal de um Deputado cuja imunidade tivesse sido levantada nos termos do processo que o queixoso enfrentava. Não apenas teria sido legítima a decisão de levantar a imunidade parlamentar como o fora a decisão de colocação em prisão preventiva, legítima, não apenas à luz da lei mas ainda à luz do princípio da proporcionalidade, pois o levantamento da imunidade fora decidido antes da decisão de colocação em prisão preventiva. Para mais, no seu recurso de amparo, o queixoso não tinha especificado concretamente a falta de razões bastantes e suficientes para justificar a sua colocação em prisão preventiva. Daqui decorreria, sem sombra de dúvida, quer legal quer lógica e argumentativa, a inadmissibilidade da restante argumentação do queixoso, nomeadamente no tocante à liberdade de expressão, uma vez que ele tinha falhado na invocação, em termos de pressupostos, do seu alegado direito. Ainda assim um juiz do TC lavrou um voto de vencido, estimando que, embora existisse uma forte presunção do cometimento de um grupo de ofensas da parte do queixoso, resultava da jurisprudência do TEDH proferida no caso Buzadji c. Moldova, que a prisão preventiva não seria proporcional uma vez que os tribunais não se tinham dado ao trabalho de elencar concretamente as razões bastantes e suficientes que sustentavam esta prisão preventiva. O processo penal prosseguiu o seu curso tendo sido julgado, entretanto, no tribunal de Istambul um dos crimes de que o queixoso fora arguido (um crime de participação em organização terrorista) condenando-se este em pena de quatro anos e seis meses de prisão. Em segundo grau de jurisdição penal a segunda instância de Istambul manteve o decidido pela primeira instância, tendo sido decidida, em 2019, a suspensão da execução da pena, na pendência da evolução do restante quadro processual. O queixoso foi, em consequência, colocado em liberdade provisória, pelo tribunal de Ankara à ordem de cujo julgamento se encontrava, mas o MP, sempre face ao perigo para a segurança do Estado, a complexidade do processo e o receio de destruição de prova que ainda pudesse ocorrer, veio a pedir a colocação do arguido, novamente, em prisão preventiva, à ordem do julgamento do tribunal de Ankara. Este requerimento do MP foi concedido pelo tribunal. Neste preciso contexto processual, o queixoso veio a formular um novo recurso de amparo constitucional ao TC. Para o efeito de clareza na exposição da matéria, o TEDH qualificou o grupo de recursos de amparo ora feitos pelo queixoso (foram vários), de 2.ª queixa ao TC por oposição à anteriormente referida. Nesta 2.ª queixa, o TC decidiu em favor do queixoso pois a prisão preventiva fora excessivamente longa, mesmo em relação à questão da gravidade dos crimes imputados e da especial complexidade dos processos em relação à disposição constitucional correspondente ao art.º 5.º § 3 da CEDH (um tempo de espera do julgamento demasiado prolongado). Ainda assim, para o TC, uma vez que impendia sobre o arguido um conjunto de imputações extremamente grave, a prisão preventiva inicial fora corretamente assumida. O TC censurou às jurisdições internas a falta de exame suficiente das razões bastantes e razoáveis para justificar a prisão preventiva e, por isso, concedeu uma indemnização a título do dano moral ao queixoso. Os demais argumentos do queixoso foram todos assumidos como improcedentes. Concedeu uma indemnização a título do dano moral ao queixoso. Este queixou-se ao TEDH.

Procedendo ao exame da queixa, o TEDH deu destaque a material do Gabinete do Parlamento europeu para a promoção da democracia parlamentar relativo à imunidades dos deputados, a vários pareceres da Comissão de Veneza sobre a integração do conceito de participação em movimento terrorista armado e sobre a suspensão de direitos constitucionais, na Turquia, bem como sobre a então ainda proposta de modificação constitucional do regime das imunidades parlamentares e outra, ainda, sobre as competências e o funcionamento dos tribunais criminais na Turquia. O TEDH destacou ainda um Memorandum do Comissário do CoE para os DH, após visita à Turquia, em 2016, em que este sublinhou, nomeadamente, a prática de assédio judicial no sentido de limitar o debate parlamentar, uma Decisão do Conselho Governador da União interparlamentar (a IPU), de 2017, relativa à liberdade de expressão, um Relatório de Amnesty international sobre a situação dos DH no mundo, de 2017/2018. Quanto à apresentação da queixa propriamente, o CoE observou que é sua jurisprudência constante, o âmbito da queixa ser delimitado pela Seção que a admitiu e inicialmente julgou. Assim sendo, não pode ser trazida matéria “nova” em relação a esta delimitação prévia operada pela Seção a quo. O Governo opôs 5 exceções. A primeira de que estaria pendente queixa junto da IPU, o que excluiria a jurisdição do TEDH, no sentido de observar o respeito do princípio ne bis in idem em beneficio dos Estados, exceção de inadmissibilidade que, após debate, a GC excluiu, pois a IPU não tem competências judiciais no sentido das competências atribuídas pela CEDH ao TEDH. A segunda exceção foi relativa ao não esgotamento do recurso de amparo perante o TC sobre cada um dos pontos específicos da queixa. O TEDH não apenas verificou que o queixoso se queixou por duas vezes ao TC, mas que a última resposta do TC, que o queixoso considerou insatisfatória, foi a que despoletou o recurso de queixa diante do TEDH. Este meio foi, assim, esgotado. Relativamente ao segmento de queixa sobre a violação dos art.ºs 5.º § 3 e 18 da CEDH em relação com o art.º 3.º do P1 à CEDH; o TEDH entendeu que, embora o Governo sustentasse que o queixoso não colocou esta questão às jurisdições internas, o tema do 1.º recurso ao TC foi precisamente este tema, o qual mereceu a observação de um juiz conselheiro em voto de vencido referida acima. Por esta razão, a exceção não procedeu. Outra exceção oposta foi relativa à não introdução de uma ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado pelas violações alegadas. A Seção decidira que, para esta ação dever ser proposta, deveria ter possibilidades razoáveis de êxito. A GC entendeu que, precisamente, o sentido da regra do esgotamento dos recursos judiciais disponíveis internos é a de um requerente apenas esgotar aqueles que estão disponíveis e são suficientes. Recursos legalmente disponíveis mas não efetivos não têm de ser esgotados. Esta ação típica não assumiria a necessária eficácia no contexto do caso, pelo que não era de excluir. Também neste ponto a GC decidiu no sentido da admissibilidade. Outra questão, para além do domínio limitado da admissibilidade, foi a questão do estatuto de vítima do queixoso. O Governo argumentou que, tendo sido atribuída indemnização ao queixoso pela privação ilegal da liberdade, este perderia o estatuto de vítima para o efeito da legitimidade da queixa ao TEDH. Embora o TEDH reconhecesse que a competência nesta definição do estatuto processual do queixoso que aciona a jurisdição europeia está em parte nas mãos do Governo, também reconheceu que uma medida favorável ao queixoso pode não ser bastante para lhe retirar o seu estatuto de vítima. Tratando-se da privação da liberdade, a compensação não basta para considerar o meio judicial efetivo e a concessão desta compensação não basta para fundamentar a perda do estatuto de vítima para o efeito do processo de queixa. Tem mesmo de existir a colocação em liberdade numa situação em que esta liberdade acabou por deixar de existir. Havia, ainda, que saber se, enquanto recluso preso, o queixoso beneficiou de um recurso efetivo da detenção, suscetível de o colocar em liberdade. Ora, apesar da compensação entretanto concedida, o certo é que os vários pedidos de colocação em liberdade, no contexto do 1.º pedido ao TC, e do 2.º não puderam ser satisfeitos no sentido da liberdade pessoal, tendo o juiz vencido no 1.º recurso de amparo apontado que não se verificou uma fundamentação bastante da medida de colocação em prisão preventiva. Por esta razão se verificou a violação do art.º 5.º § 3 quanto ao tempo que mediou entre a prisão do queixoso e o fim do período da prisão preventiva. Decidindo no tocante ao art.º 10.º da CEDH (direito à liberdade de expressão), o TEDH reteve o sentido da intervenção de terceiros (amicus curiae) da Sra. Comissária para os DH do CoE, segundo a qual a prisão do queixoso fez parte de um conjunto mais alargado de repressão, da parte do Governo turco, naquele período de tempo, em relação a vários oponentes do regime que criticavam a política seguida por este. A IPU e as ONG’s intervenientes destacaram a importância da liberdade de expressão dos políticos em sociedades democráticas. A GC do TEDH admitiu este segmento de queixa, sublinhou a urgência e a necessidade de respeitar a liberdade de expressão dos Deputados à AR, reconheceu ter existido uma interferência da parte do Governo e procurou a previsão legal desta intervenção e a sua necessidade numa sociedade democrática (o teste de proporcionalidade segundo o método de adjudicação do caso seguido pelo TEDH). No domínio da previsão legal, deve ter lugar uma concretização, no sentido de saber se existe a previsibilidade da sanção legal no momento do proferimento do discurso incriminador. Este ponto da questão levou o TEDH a examinar o regime jurídico-constitucional das imunidades dos parlamentares em vários Estados. Segundo os diferentes regimes jurídicos a imunidade ora redunda na simples irresponsabilidade política, ora se traduz numa total inviolabilidade do personagem político em relação às suas atividades de natureza política. Para a GC a imunidade do político em relação às atividades conexas com o seu mandato é da segunda natureza, ou seja insuscetível de violação da parte de quaisquer autoridades, tendendo a ser absoluta. Sucede que o queixoso fez prova, consistente e bastante, da conexão dos seus discursos e das suas várias tomadas de posição com o seu mandato político, e conseguiu demonstrar a sua natureza não violenta. Neste contexto é a própria Constituição da República Turca (a CRT) que oferece uma série de salvaguardas contra o arbítrio dos poderes públicos. O TEDH observou que o regime da revisão constitucional, que admite o levantamento das imunidades, ofende as regras constitucionais turcas e que tal foi destacado pela Comissão de Veneza nos pareceres citados. A GC partilhou o entendimento desta Comissão de que a emenda constitucional é uma emenda ad homines (dirigida às concretas pessoas visadas), que não tem precedentes na história constitucional da Turquia. A luz da legislação e da CRT, bem como da prática constante, um Deputado em exercício de funções não pode prever que lhe vai ser aplicada a sanção legal do levantamento da imunidade em razão do seu normal envolvimento na sua atividade política dentro da correspondente coletividade política. No específico contexto do combate ao terrorismo, a situação não muda de figura, no caso da Turquia, uma vez que o TEDH já condenou este País em razão da aplicação de pesadas penas por força do exercício da atividade política. Além disso, o novo regime das imunidades não define o que seja organização armada, deixando esta cláusula geral com um conteúdo e um âmbito de concretizações possíveis extremamente amplo, o que não é aceitável nos regimes penais de direito continental em que se inscreve o regime penal da RT. Também conceitos indeterminados como pertença a organização armada ou relação orgânica (com organização?) são demasiado vagos para corresponderem a uma tipologia penal com as garantias próprias deste ramo do direito sancionatório, segundo a cultura jurídica europeia continental em que o regime penal da RT se integra. Em conclusão, antes mesmo da observação da existência de uma necessidade atendível numa sociedade democrática (e assim da legitimidade desta medida à luz da sua proporcionalidade), o TEDH concluiu pela deficiência da lei em termos da sua qualidade. Verificou-se, assim, a violação do direito à liberdade de expressão do queixoso.

Passando às violações alegadas dos art.ºs 5 §§ 1 e 3 da CEDH, a primeira questão que o queixoso levantou foi a falta de real fundamento para a consolidação de uma suspeita contra ele que fosse bastante forte para autorizar a sua prisão preventiva. O TEDH observou que o período a considerar neste segmento de queixa no sentido da aferição da violação, vai de 4/11/2016, dia em que o queixoso foi preso, até 7/12/2018, a data da sentença cuja execução iniciou posteriormente. Levantou-se a dúvida de saber se o termo final do período a considerar foi Setembro ou Dezembro de 2018 por a sentença ter sido proferida em Setembro e o cumprimento da pena em razão da condenação definitiva ter sido iniciado em Dezembro de 2018. Para o TEDH, na medida em que o queixoso continuou em detenção à disposição das autoridades e até à fixação do termo inicial do cumprimento da pena imposta pela condenação definitiva, o termo final da prisão preventiva a considerar foi Dezembro de 2018. A prisão preventiva durou assim 2 anos, 1 mês e 3 dias. Sobre a falta de suspeita razoável de ter cometido a infração por que foi arguido, o queixoso avançou que foi preso em razão das suas convicções políticas. Neste sentido também se pronunciaram a Sra. Comissária para os DH do CoE e as ONGs. Após ter declarado este segmento de queixa admissível, a GC passou ao fundo. O TEDH enfatizou que o grande princípio geral que subjaz ao art.º 5.º é o direito a viver livre e em segurança, o que implica a necessária cuidadosa fundamentação legal de aplicações de medidas privativas de liberdade e a rigorosa obediência do intérprete aplicador da lei a esta fundamentação legal taxativa. Nem sempre pode o direito ser flexível. Embora este viver livre em segurança seja mais mitigado nas questões de terrorismo (Fox, Campbell e Hartley) não deixa de ser aplicável e necessário. Sucede que o Governo apresentou ao TEDH um conjunto de provas (vg. registos de escutas telefónicas) que não foi referido nas decisões internas. Apenas foram citados os tuites inicialmente referidos nesta Divulgação. As autoridades não conseguiram estabelecer prova bastante para justificar uma ligação suficiente entre as ações do político e a sua prisão preventiva. Estas suspeitas não alcançaram, assim, a condição de razoabilidade (suspeita razoável) requerida pelo art.º 5.º da CEDH, tendo-se registado a violação deste preceito (o art.º 5.º§1). Quanto ao art.º 5.º § 3 relativo ao tempo de duração da prisão preventiva o qual seria excessivo e não suficientemente justificado (a não ser mediante fórmulas genéricas e o recurso a padrões vagos); a Sra. Comissária para os DHs do CoE censurou a vaguidade extrema desta fundamentação tendo sido acompanhada pela IPU. A GC admitiu este segmento de queixa e, tendo considerado, no terreno do art.º 5.º § 1 que a fundamentação era insuficiente, destacou esta mesma insuficiência para estabelecer a violação do art.º 5.º § 3 da CEDH.

No que concerne a violação invocada do art.º 5.º § 4 da CEDH, direito ao recurso da detenção, a argumentação foi no sentido de que os recursos de amparo constitucional formulados pelos políticos presos (o único meio efetivo disponível na RT para impugnar a detenção ilegal), são, regra geral, decididos de modo extremamente moroso pelo TC, o que os inviabiliza na prática. A GC admitiu este segmento da queixa, aceitou quanto ao fundo a relação entre a demasiada morosidade e a ineficiência do recurso disponível, para aferir da sua própria existência. Acabou, à luz da evidência, por aceitar as observações da Sra. Comissária para os DH do CoE e rejeitar a conclusão da Seção a este respeito, e verificou a violação do direito ao recurso da detenção previsto no art.º 5.º § 4 da CEDH. Quanto à violação do art.º 3.º do Protocolo n.º 1 à CEDH, o queixoso estabeleceu a ligação entre o seu processo penal e a violação do direito a eleições livres por sufrágio secreto e exercício da participação política, previsto neste dispositivo. A Sra. Comissária dos DH do CoE enfatizou que é prejudicial à atividade política a prática destes processos e a sua materialização em longas prisões preventivas. A IPU sustentou que a prisão preventiva impediu o queixoso de se dedicar às suas atividades políticas no que foi seguida pelas ONG’s. A GC admitiu este segmento de queixa e considerou o respetivo mérito, destacando que a democracia é um elemento fundamental da ordem pública (ordre public) europeia. Salientou que a previsão legal do art.º 3.º do Protocolo n.º 1 à CEDH está construída de modo a assegurar a autodeterminação plena do povo mais do que está orientada em torno da liberdade de votar, o que pode não ser bastante para o funcionamento da democracia, e observou que o propósito da CEDH é o de assegurar que as suas disposições sejam materialmente efetivas. Embora possam estar vertidos vários direitos no art.º 3.º do Protocolo n.º 1 afastados os critérios da necessidade ou da justificação social da medida derrogatória (como efetivamente esta disposição afasta estes critérios, não aceitando derrogações), permanecem aplicáveis os critérios da não aceitação convencional do arbítrio e da proporcionalidade de uma medida contrária ao art.º 3.º deste Protocolo, que eventualmente ainda pudesse caber (Mathieu-Morin). O queixoso sustentou, precisamente, que a sua privação de liberdade não justificada (tal já foi várias vezes confirmado em pontos anteriores do Acórdão) o impediu de participar na vida política, não apenas na qualidade de eleitor mas na qualidade de eleito. E o TEDH não pôde aceitar a argumentação segundo a qual o queixoso não teria estatuto de vítima porque teria sido compensado. Além de, em termos gerais, não ter perdido este estatuto de vítima como se viu acima, na hipótese em que se admitiria que teria perdido este estatuto quanto aos demais fundamentos da queixa, não deixaria nunca de o possuir e de o manter neste domínio particular, pois foi efetivamente impedida a sua participação política e de modo definitivo quanto às atividades prejudicadas. Verificou-se assim, a violação do art.º 3.º § 1 do Protocolo n.º 1 à CEDH.

Quanto à alegada violação do art.º 18.º da CEDH, segundo o qual a restrição dos direitos convencionais tem de respeitar os termos em que a Convenção os admite, o queixoso arguiu que foi preso pelo exercício da sua expressão política. A Sra. Comissária para os DH do CoE destacou a verificação de práticas de assédio judicial em relação aos oponentes políticos na Turquia, tendo sido acompanhada pelas ONG’s. Após ter declarado também este segmento da queixa admissível, a GC dedicou-se ao seu mérito, acabando por chegar à conclusão que a prisão preventiva do queixoso não assentou numa suspeita razoável deste ter cometido os crimes por que foi arguido. Ainda assim a violação do art.º 5.º§ 1 por si só não é bastante para estabelecer a violação do art.º 18.º da CEDH. À luz das observações do queixoso e da Sra. Comissária para os DH do CoE, o TEDH teve então de aferir se as restrições cuja fundamentação foi, em todo o caso, deficiente, teve na realidade a finalidade de impedir a sua participação política, caso em que violaria o art.º 18.º por ir além da finalidade admitida das restrições aos direitos convencionais. Neste caso, das restrições admitidas pela CEDH aos direitos à liberdade e segurança. Forçoso foi estabelecer que à luz do ambiente vivido no período de tempo do processo penal contra o queixoso, um conjunto importante de figuras políticas foi impedido da sua participação na vida política. Além disso, são conhecidas as tomadas de posição marcadas do queixoso. Também o “retorno” mediante requerimento nesse sentido do MP, ao cumprimento da prisão preventiva do queixoso neste quadro se afigura extremo e repressivo. Tanto mais sabendo que o processo penal ainda corre seus termos contra o arguido e que este, em Dezembro de 2020, ainda se encontrava em cumprimento de pena. Enfim, o conjunto de materiais e de informação disponível, Pareceres da Comissão de Veneza, etc… referidos, apontam para a existência de um ambiente mau na Turquia. Concordando este feixe de indícios, e à luz da própria experiência processual e judiciária do queixoso, ficou confirmada a verificação da ultrapassagem da finalidade das restrições ao direito à liberdade e à segurança em relação aos patamares aceites na CEDH. Verificou-se, assim, a violação do art.º 18.º da CEDH.

Em sede de aplicação dos art.ºs 41.º e 46.º da CEDH, mais particularmente em termos de execução de sentença (do TEDH), a GC decidiu a libertação imediata do queixoso e concedeu-lhe indemnização pelo dano moral.

O Acórdão, tocando matérias convencionais sensíveis, mereceu várias opiniões concordantes e dissidentes parciais.

Concordante parcial-dissidente parcial de Wojtyczeck. Exprimiu a sua posição relativamente ao processo de queixa e de recurso à GC; sobre a conceção da imunidade parlamentar, não seria um direito do próprio mas uma imunidade concedida no interesse geral, sendo que o Deputado não representa apenas o próprio partido, mas o povo todo. De todo o modo, o direito à liberdade de expressão é aplicável precisamente por causa das razões que legitimam a imunidade parlamentar. Sobre a questão da previsibilidade da lei que atinge a imunidade, tendo em atenção a qualidade do político, o juiz Wojtyczeck entende que o político tem de saber que o poder pode alterar a lei. A questão não muda de solução na prática, mas a fundamentação da resposta poderia ter assentado na ilegitimidade da parte do poder em proceder à modificação constitucional, de que eventualmente poderia decorrer a legitimidade da resistência da oposição e a natureza abusiva da repressão política. Por fim, o juiz Wojtyczeck sublinhou o paralelo com o recente Acórdão Mammadov (também objeto de divulgação nesta página), entendendo que teria sido recomendável, no sentido da orientação seguida em Mammadov, uma posição mais forte em relação à Turquia. Tratar-se-ia de condenar este País sistematicamente em todos os casos conexos, enquanto a violação neste concreto caso (manutenção em prisão do queixoso) se verificasse (fórmula de uma clausula rebus sic standibus). No fundo, sem o referir, o juiz Wojtyczeck proporia que se optasse pela formulação de um Acórdão piloto contra a Turquia, que a forçasse e a ajudasse a repor o direito na ordem interna, em sede do art.º 46.º da CEDH

O juiz Chanturia exprimiu uma opinião dissidente parcial, pedindo a consideração pela GC de um Acórdão do TC turco que iria no sentido dos pedidos do queixoso (uma posição que a GC recusou, em termos de raciocínio, voltaria a estar-se confrontado com a eventual ineficácia material desta resposta).

Opinião dissidente parcial dos juízes Yuksel e Paczolay que contestam a manutenção do estatuto de vítima do queixoso à luz do art.º 5.º § 3, pois teria sido compensado precisamente neste item. Existiria uma subsidiariedade europeia em relação à margem de apreciação das autoridades internas. Em seu entender mantém-se a questão que foi justificada pelo TEDH, no sentido de este considerar a manutenção do estatuto de vítima. Ora o próprio TEDH destacou que a 1.ª queixa ao TC não foi considerada na adjudicação da solução da 2.ª queixa ao TC por este tribunal, que deixou sem reparação a vítima na 1.ª queixa. Sobre o art.º 46.º distinguem os períodos de prisão preventiva e de execução em cumprimento de pena. Entendem que a execução de pena, em razão da condenação definitiva, deveria manter-se. Ora foi precisamente em razão de um conjunto de ilicitudes graves que conduzem à verificação de um processo político contra o queixoso que o TEDH optou por esta solução em sede de execução do seu Acórdão, à luz do art.º 46.º e ordenou a libertação incondicional e imediata do queixoso (à luz desta resistência das autoridades interessadas à solução do TEDH compreende-se a posição do juiz Wojtyczeck que propõe, no fundo, um regime de aplicação de sanções europeias ao Estado infrator enquanto o Acórdão não for cumprido, por meio de condenações sistemáticas, através da solução de um Acórdão Piloto em sede do art.º 46.º).

Opinião concordante parcial, discordante parcial de Yuksel sobre a liberdade de expressão (art.º 10.º). Esta disposição não teria sido violada por existir previsão legal, a qual seria bastante. Contradiz todo o raciocínio expendido no Acórdão, transforma a questão numa oposição “palavra contra palavra” e impede a fundamentação. Prossegue, analisando a questão da qualidade da lei que retira a imunidade parlamentar, avançando numa posição algo semelhante quanto à forma com a do juiz Wojtyczeck mas que vai no sentido oposto, ou seja de desautorizar a resposta do TEDH e de não aceitar um direito de resistência dos interessados. Sobre a queixa em torno do art.º 5.º § 1: liberdade e segurança e suspeita razoável. Entende que a suspeita seria razoável, mais uma vez o exercício é palavra contra palavra e impede a fundamentação de uma resposta à luz dos critérios da CEDH.  Sobre a queixa em torno do art.º 5.º § 3 entende ter sido perdida a qualidade de vítima (cfr. comentário ao voto anterior). Sobre a queixa em torno do art.º 3.º do Protocolo n.º 1, relativa a eleições em escrutínio secreto e participação política livre. Aceita que o direito do queixoso à participação política tenha ficado prejudicado. Sobre a restrição de direitos convencionais contrária aos fins da sua admissão pela CEDH: opõe-se sem fundamentar propriamente, novamente palavra contra palavra num exercício mais próprio de argumentação de um agente do Governo do que de um juiz do TEDH. Impede a fundamentação de uma solução racional à luz dos critérios convencionais.

Da parte de quem lê este Acórdão para o efeito da sua divulgação resulta que, mesmo em contexto de dificuldades no presente da vida coletiva dentro de um Estado (por vezes nem sequer se verificam e os contextos mais difíceis produzem-se em contexto de afirmado otimismo em relação ao futuro), compete a quem controla o poder numa sociedade, assegurar a observância do pluralismo e da tolerância necessários ao convívio equilibrado entre os vários participantes na vida coletiva, sem o que é a própria noção de aceitação recíproca que acaba por ser posta em causa, gerando-se eventualmente pesadas situações de exclusão social. No fundo compete a quem detém o poder, em razão do sufrágio (a um ditador não interessam nem a fundamentação democrática do seu poder em torno do sufrágio, nem o financiamento contributivo pelos cidadãos por meio do imposto, tanto das funções do Estado, quanto do investimento público na proteção social, quanto da função redistributiva do imposto), assegurar dentro do quadro legal legítimo a indisciplina necessária à vida em comum, a qual é o nutrimento da própria democracia e sem a qual esta inexiste.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos