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TEDH, Grande Chambre, Vavricka e Outros c. República Checa, Acórdão de 08 de abril de 2021

20 abr 2021

CEDH, Artigo 8.º direito à vida privada e familiar, não violação. A questão do eventual conflito entre a necessidade inadiável da proteção da saúde pública e a proteção da intimidade do corpo humano, apenas disponível mediante o consentimento do lesado.  Art.º 9.º Direito à liberdade de pensamento, consciência e religião. Não violação. Protocolo n.º 1 à CEDH, art.º 2.º Direito à instrução. Não violação.


Seis famílias de cidadãos da República Checa queixaram-se contra a República Checa em razão de, por terem recusado cumprir o dever de vacinação dos filhos menores, lhes terem sido impostas condições alegadamente inconciliáveis com o art.º 8.º § 1 da CEDH (cada família é designada “O queixoso”, sabendo que o titular da queixa é o menor interessado).

As queixas foram distribuídas à 1.ª Seção do TEDH que, após exame da matéria de facto disponível mediante a documentação apresentada, entendeu ser de submeter a competência para a adjudicação destas queixas à Grande Chambre (a GC). Foram 3.ºs intervenientes (amicii curiae) várias associações operando em sentido crítico em relação à vacinação e o Centro europeu para o direito e a justiça. Vários Estados intervieram também.

A questão central radica na lei checa de 2000, a qual impõe, para as crianças de idade inferior a 15 anos, a observância, a cargo dos pais, do dever de as submeter a um conjunto de 9 vacinas obrigatórias para doenças muito graves, assumida esta obrigação como um quadro de deveres ditos “de rotina”, o qual deve sempre ser cumprido. As modalidades de execução do programa previsto nesta lei estão contidas em vários diplomas de execução (portarias, despachos normativos, regulamentos) que dão corpo ao Serviço de Saúde Pública (o SSP). Correspondentemente à obrigação legal de vacinação, é imposto o dever, a cada centro educativo (pré-primário, primário, secundário), de recusar a matrícula nos cursos, de crianças que não sejam portadoras do boletim de vacinas atualizado pelas autoridades competentes. A despesa com as vacinas obrigatórias é assumida pelo SSP. Em caso da concretização de perigo em relação com a vacina, procede-se à verificação de ter sido ou não a vacina administrada segundo o estado da arte (leges artis, o conhecimento e a prática disponíveis), mediante uma ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado, prevista por lei para o efeito.

No quadro da matéria de facto disponível, o 1.º Queixoso, tratando-se de duas crianças menores, opôs-se à vacina contra a poliomielite, a hepatite B e o Tétano, alegando, nomeadamente, que a 1.ª doença estaria definitivamente erradicada desde 1960; tendo desenvolvido uma argumentação relativa à toxicidade das vacinas quanto às outras patologias. Invocou a Convenção de Oviedo, do Conselho da Europa (o CoE) sobre direitos humanos e biomedicina (a Convenção de Oviedo), bem como a violação do seu direito à vida privada e familiar. Foi multado em 110 €, recorreu, esgotou os recursos judiciais disponíveis, e queixou-se ao TEDH. Nas suas observações sobre o processo, o Tribunal Constitucional (o TC) salientou que existia um dever de adaptar a sanção imposta por lei sempre que uma pessoa dentro da respetiva previsão e estatuição, justificasse com motivo atendível uma exceção. Não sendo o caso, o argumento oposto não colheria e a sanção seria aplicável. O 2.º Queixoso viu a criança inicialmente admitida em instituição pré-primária mediante um Boletim de vacinas não totalmente preenchido em que o pediatra veio a descobrir que faltava a vacina contra o sarampo. A criança foi excluída, com o seu regresso dependente da condição da satisfação da vacina. Os argumentos expendidos e o quadro processual até à queixa ao TEDH foram de teor análogo. Concretamente, neste caso, o TC acrescentou mais um obiter dictum de interesse, segundo o qual a vacina deve ser administrada de acordo com a dignidade humana. Não se demonstrando o contrário, nem se conseguindo opor exceções atendíveis, o dever de vacinação é para cumprir. O 3.º Queixoso apresenta um caso de uma criança, hoje adolescente, que não recebeu qualquer vacina, embora na infância tenha sofrido de várias patologias. Teve, em resultado, um percurso educativo algo perturbado, em razão de existir a consciência da contradição, à luz do direito vigente, da sua situação em relação ao dever de vacinação. Nomeadamente, existiu um episódio de falsidade documental quanto a um atestado que garantiria o terem sido cumpridas as vacinas. Desenvolveu-se um quadro argumentativo e processual de teor análogo aos anteriores até à queixa ao TEDH. Os 4.º e 5.º Queixosos apresentaram queixas em relação a crianças nascidas em 2011, relativamente às quais os pais se opuseram pura e simplesmente à ministração da vacina. Também aqui o quadro processual até à apresentação da queixa ao TEDH foi análogo. O 6.º caso é relativo a uma criança filha de biólogos que elaboraram um plano de vacinas para o filho. Acabou por ser vacinado mais tarde para um determinado quadro de patologias, não o tendo sido no remanescente. Mais uma vez a evolução do processo interno bem como a apresentação da queixa foram idênticos aos demais casos. Uma Sra. Conselheira do TC, em voto de vencida, observou que a extensão do dever de vacinação a 9 patologias muito graves formaria um quadro de exigências demasiado amplo, impondo um excessivo encargo aos beneficiários das vacinas. As considerações expendidas pelo TC estariam em torno de considerações genéricas sobre solidariedade, mas, na realidade os direitos fundamentais dos queixosos em torno do debate público sobre a vacinação ser obrigatória ou não , teriam sido ignorados pelo TC.

Seja permitido ao leitor deste Acórdão, se opinar for legítimo, exprimir, em razão, nomeadamente de já não ser particularmente jovem, alguma preocupação com o facto de a vacinação em relação a determinadas doenças muito graves ser considerada dispensável por estas se terem, de modo adquirido, por definitivamente erradicadas. Sucede que em, relação a algumas destas doenças especialmente graves, é precisamente a imposição das vacinas acrescida de práticas de higiene generalizadas que barra o desenvolvimento destas patologias. Ou seja, em linguagem eletrónica, a vacinação opera como uma firewall em relação a estas demasiado graves patologias. Ponto deverá ser que as vacinas e o seu programa de aplicação sejam geridos por um serviço público de saúde que tenha em conta as especificidades e as carências próprias do conjunto populacional sobre o qual as vacinas vão ser aplicadas. Naturalmente esta tomada de posição vale o que vale.

Dentro do quadro da abundante matéria de facto exposta, o TEDH considerou a lei interna (a qual integra os factos na análise jurídica deste tribunal que aplica a CEDH) e, além desta, a evolução jurisprudencial interna pertinente no contexto das várias áreas de intervenção relevantes de interpretação, integração e aplicação da lei. De seguida observou a existência, em outros países, de programas de vacinação obrigatória, nomeadamente completada com jurisprudência como a do Conseil Constitutionnel françês; húngara, da Macedónia do Norte, italiana, moldava, sérvia, eslovaca, e do Reino-Unido. Uma decisão da Court of Appeal de 22/05/2020 expende interessantes considerandos nesta matéria: embora no UK a vacinação seja obrigatória, o consenso científico disponível recomenda a sua prática no melhor interesse da criança, a não ser que exista uma contra indicação atendível num determinado caso, sendo nomeadamente possível obter o suprimento da oposição dos pais à vacina se se lograr obter um consentimento consciente e informado da parte da criança. A questão da vacinação sendo matéria corrente não é considerada suficientemente séria ou grave em direito que legitime a sua recusa. É critério do melhor interesse da criança a definição constante da Convenção das Nações Unidas relativa aos direitos da criança de 1989. Embora seja sempre de considerar a posição dos pais esta não ultrapassa este melhor interesse da criança. O TEDH citou ainda os art.ºs 12.º (direito à saúde do Pacto internacional relativos aos direitos económicos, sociais e culturais, o PIDESC, em vigor na R. Checa), a Observação geral n.º 14 relativa ao alcance do mais elevado possível padrão de vida no quadro do PIDESC, do Comité ESC (o CESC), segundo a qual este padrão de vida implica um conjunto de prestações, compreendendo o controlo das doenças epidémicas, endémicas, ocupacionais e outras. Enfim, o CESC, nas suas observações conclusivas relativas a relatórios nacionais de aplicação, vem destacando a necessidade de cumprir o mais possível o dever de vacinação preventiva, tendo destacado preocupação com o Cazaquistão, o declínio do programa de vacinas no Egito e apelou para a reversão da tendência decrescente em matéria de vacinação na Ucrânia. Da CRC referiu o art.º 24.º relativo ao mais alto padrão de saúde, bem como o dever de reduzir a mortalidade infantil e as patologias da infância; além da definição do melhor interesse da criança constante do art.º 3.º. Destacou, ainda, a Observação geral n.º 15 do Comité da CRC, relativo à necessidade de generalizar a imunização das crianças contra as doenças infantis. Por seu turno, a Organização Mundial da Saúde (a OMS) publicou, em 2013, um “plano de vacinação global”, reconhecendo que pelo menos 90% da população mundial seja coberta pela vacinação preventiva na infância. Da Carta Social Europeia (a CSE), foi destacado o art.º 11.º relativo ao direito à proteção da saúde entre o qual o dever dos Estados, de prevenir o mais possível doenças epidémicas, endémicas e outras. O TEDH salientou, ainda, uma Decisão de mérito do Comité dos direitos sociais (o CDS), sobre o art.º 11.º § 3 da CSE, explicando que a vacinação generalizada é, não apenas um meio de prevenir uma concreta doença num indivíduo, mas contribui (com a higiene, a alimentação, etc…) para a prevenção geral da sociedade (a firewall referida supra) contra a generalização das doenças infeciosas e epidémicas. O CDS pode nomeadamente chamar a atenção de um Estado Parte para as dificuldades no seu sistema de vacinação (Médecins du monde international c. France, QC 67/2011, Conclusão XV-2 Bélgica, 31712/2001, Conclusões Rep. Checa 02/01/2010, estas últimas para destacar considerar a R. Checa estar em conformidade com os seus deveres à luz da CSE). O TEDH ainda abordou a Convenção de Oviedo a qual tem nomeadamente o interesse de definir o consentimento informado e consciente (eventualmente em termos de consentimento do lesado, necessário para uma intervenção médica , vg. uma cirurgia, o qual pode ser a todo o tempo retirado).

Na sua Recomendação 1317 (1997) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (a APCE), intitulada “Vacinação na Europa” esta alertava para o facto de o dever de vacinação não dever apenas ser imposto aos Estados em transição, mas também em relação aos países ditos do Ocidente, os quais não deveriam abrandar o seu empenhamento na prevenção das doenças infeciosas, epidémicas e endémicas. Por sua vez a Resolução da APCE 1845 (2011) relativa a “Direitos fundamentais e responsabilidades”, apela à consciência de que o viver junto implica um conjunto de deveres a cargo de cada um em relação com o outro na sociedade, sendo um destes deveres de solidariedade, o cumprimento da vacinação pelo interessado. Enfim, no direito da União Europeia (a U.E.), o Título XIV III Parte do Tratado de funcionamento da U.E. (o TFUE) consolidado, prevê a política de saúde na União (art.º 168.º); sendo o art.º 35.º da Carta dos Direitos Fundamentais relativo ao dever de solidariedade, este refere a política de saúde pública da U.E., a qual deve observar a implementação de um elevado nível de materialização da proteção da saúde. Neste contexto, foi instituído em 2005, o Centro europeu para a prevenção e o controle da doença, com o objetivo de identificar, avaliar e alertar em relação às ameaças à saúde humana em razão de doenças infeciosas. O próprio Governo Checo juntou um conjunto amplo de peritagens e pareceres justificando a imposição da vacinação obrigatória no seu país.

Posto este quadro de material de facto e informação e direito internacional disponível (na abordagem integrada de um problema de direitos humanos, as fontes de direito internacional não são matéria de facto), o TEDH passou à apreciação, em sede de mérito, das várias queixas. Fixou o contexto destas, observando que o seu tema é a vacinação de crianças em relação a doenças que são bem conhecidas da ciência médica e, que, tendo as queixas sido apresentadas entre 2013 e 2015, são relativas à política de vacinação obrigatória do Estado. Apensou as queixas. Procedeu à apreciação de cada uma das queixas, examinando a respetiva admissibilidade e o seu mérito, e apreciando a queixa do 1.º Queixoso, rejeitou a exceção à admissibilidade da queixa oposta pelo Governo e destacou o reduzido valor da coima imposta. Quanto aos 4.ºe 5.º Queixosos, remeteu a objeção à admissibilidade oposta pelo Governo, ao mérito e admitiu as demais queixas. Debruçando-se sobre o mérito, após ter apreciado os argumentos dos queixosos e do Governo analisou as intervenções de 3.º do Estado francês favorável à vacinação obrigatória generalizada sem concessão; da R. F. da Alemanha que precisou que a vacinação obrigatória é relativa a um dever de sofrer a vacina em determinadas situações e não à administração coativa da vacina; da Polónia, para quem serem as vacinas obrigatórias não ofende a CEDH; da Eslováquia que salientou que as queixas são relativas, não ao dever de sofrer a vacina, mas andam em torno das consequências em termos de incumprimento deste dever. Apreciou ainda as intervenções de 3.º da ONG’s.

Passando ao mérito das queixas orientado para a decisão do caso, o TEDH notou que o tema das queixas não é a vacinação ser obrigatória, mas está nas consequências assacadas ao incumprimento do dever de sofrer a vacina. Reconheceu ter existido uma ingerência do Estado no direito à vida privada e familiar dos queixosos (art.º 8.º § 1 da CEDH), e, seguindo o seu método inquiriu, além da previsão legal da ingerência (decorrente da própria lei e do seu direito derivado de execução), da sua justificação. Nesta, cabe em 1.º lugar, o fim legítimo da ingerência (a proteção da saúde individual e coletiva cuja exposição em termos de não proteção acabaria por colocar a própria sociedade em perigo). Reconheceu que este objetivo encontra guarida na exceção ao § 1 que o § 2 do art.º 8.º (razões de ordem pública) admite em relação ao direito à vida privada e familiar. A 2.ª dimensão é a necessidade da medida controvertida numa sociedade democrática.

Mais uma vez, seguindo sempre o seu método, fixou o quadro de princípios gerais. A necessidade de uma medida controvertida numa sociedade democrática resulta de corresponder a uma necessidade inadiável (pressing social need), em particular quando os fundamentos invocados pelas autoridades mostram-se “relevantes e suficientes” para prosseguir o fim contido na medida, sendo ainda, eventualmente necessário um teste de proporcionalidade (notando-se que é na própria legitimidade de uma medida numa sociedade democrática que radica o critério último de aferição da proporcionalidade: sempre que esta, apesar da sua gravidade, ainda encontra justificação na operação de uma sociedade democrática, apesar de alguma sua aparente violência, esta medida ainda é proporcional, logo legítima). Acresce a este quadro de princípios o reconhecimento de que o sistema da CEDH é subsidiário, cabendo em 1.º lugar às autoridades nacionais definir, neste caso, a sua política de saúde. Neste sentido as autoridades nacionais gozam de uma margem de apreciação que ao TEDH não cabe discutir (salvo quando a conduta ultrapassa de modo manifesto esta margem de apreciação à luz dos patamares mínimos de proteção dos direitos impostos pela CEDH). Foi, portanto, verificando-se o motivo relevante e bastante à luz da justificação legal e da necessidade inadiável, que torna aceitável a vacinação obrigatória, a questão da existência, na lei, de uma margem de apreciação, em benefício das autoridades e da respetiva extensão, o tema de análise do TEDH neste passo do cumprimento do seu método. Uma questão central foi, então, a das consequências do não cumprimento do dever de sofrer a vacina, imposto por lei, nomeadamente o da proporcionalidade de medidas tais, não as coimas, mas a recusa de matrícula em estabelecimento de educação e ensino. Embora o TEDH reconhecesse que tal medida seja de alguma severidade, reconheceu que existem alternativas admitidas fora do sistema público de ensino, ainda que eventualmente onerosas. Isto poderia tornar a consequência da recusa da matrícula contestável, mas não, e no entender do humilde leitor deste Acórdão que vem acompanhando há anos a jurisprudência do TEDH, bem; uma vez que o recurso ao sistema de educação alternativo, particularmente oneroso, corresponde a um ónus a cargo dos pais. Ou seja, se estes aceitarem que os filhos sofram a vacina, a matrícula é materializada e a criança cumpre a sua escolaridade. Se não for cumprido este ónus de cumprir a vacinação obrigatória, os pais terão de suportar o encargo do ensino particular dos filhos. Ora a medida é tanto mais de atender em termos de construção em torno de um argumento jurídico, (,seja mais uma vez perdoada esta intervenção a título pessoal do leitor desta Acórdão), na medida em que, pessoalmente, como eventual pai de uma criança a quem eu teria recusado a vacinação, vindo esta a contrair em consequência desta omissão, uma patologia grave, que teria de suportar para o resto da sua vida, a condição de pai ficaria definitivamente afetada com todo o encargo da pena que anda junta. Embora este argumento possa ser criticado por falta de objetividade (as ciências exatas ensinam no seu estádio atual, que a verdade em torno de determinada matéria é fruto de um consenso que vai sofrendo com felicidade, as revisões do progresso científico, bem como dos novos patamares de verdade objetivada alcançados). E foi precisamente a esta conclusão que muito acertadamente o TEDH com a sua pertinente e cuidadosa análise jurídica em redor da aplicação do seu método, chegou. Não se verificou, assim, a violação do art.º 8.º § 1 da CEDH.

Os queixosos a quem foi aplicada uma coima ainda invocaram a ofensa por esta imposição do seu direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, constante do art.º 9.º da CEDH.  Após ter estudado as posições das partes bem como as intervenções dos amicii curiae, o TEDH revelou que a apresentação desta matéria ao exercício da sua jurisdição é uma questão nova no seu acervo jurisprudencial. Ou seja, fora alguns considerandos da Comissão europeia dos direitos humanos (do tempo da operação conjunta desta Comissão e do Tribunal europeu, em formação não permanente, anterior à entrada em vigor do Protocolo n.º 11 à CEDH), no caso Boffa e outros. A Comissão EDH tinha então destacado que o dever de sofrer vacinas  não conflitua com o direito a um comportamento diferenciado na sociedade em razão das suas crenças e convicções íntimas pessoais, de cada um. Referiu casos de proximidade ao dever de sofrer vacinas, como o da objeção de consciência ao serviço militar (Bayatyan c. Arménia, 2011, também objeto a seu tempo de divulgação nesta página) em que a extensão do cumprimento dos deveres militares em relação à consciência de cada um, deve ser apreciado em concreto, em particular, para o efeito de determinar a operação da previsão, estatuição e consequência, do art.º 9.º da CEDH. Outro caso limite, confinando com o problema sub judice, é o do conhecido caso Pretty vs. UK 2002, em que, apesar de alguém desejar a assistência para o suicídio numa situação extrema, em fim de vida, este desejo, enquanto convicção íntima do sujeito, não tem necessariamente de ser atendido em sede de liberdade de pensamento, de consciência e de religião, na medida em que, dentro da necessidade numa sociedade democrática, as autoridades dispõem de margem de apreciação para rejeitar a prática do suicídio assistido, à luz do art.º 9.º da CEDH.  A esta luz, quanto mais não seja por um argumento ad maiori ad minus, o TEDH entendeu que não podia colher esta pretensão à luz do quadro normativo do art.º 9.º da CEDH. Não se verificou, assim, a violação do art.º 9.º da CEDH na pessoa dos queixosos a quem foi imposta uma coima.

Enfim, os vários queixosos invocaram a violação do seu direito de acesso à instrução, tutelado pelo art.º 2.º do Protocolo n.º 1 à CEDH. Nomeadamente, o TEDH observou as várias intervenções de 3.º, tendo o Governo da R. F. Alemanha notado que a gravidade da eventual violação do direito à educação dos queixosos (apesar da legitimidade da construção jurídica para o efeito de verificar a não violação do art.º 8.º § 1) seria de considerar se os níveis de educação (escolarização, sucesso escolar, etc…) fossem baixos na R. Checa. Sendo este o caso, poderia não se verificar a violação do art.º 8.º § 1 mas poderia ocorrer a violação do direito das crianças à instrução (art.º 2.º do Protocolo n.º 1 `CEDH). O Governo da Eslováquia considerou que o direito à educação não seria absoluto e salientou que a jurisprudência do TEDH não contempla a obrigação, a cargo dos Estados, de admitir, em qualquer caso, as crianças no pré-primário; e a República francesa salientou que a restrição de acesso à educação a uma criança não vacinada era justificada no contexto da CEDH. A esta luz, e reportando-se ao muito correto raciocínio expendido (correto em termos de método e de urgência) a propósito do art.º 8.º § 1, o TEDH entendeu não se ter verificado a violação do art.º 2.º do Protocolo n.º 1 da CEDH.

Rejeitou as queixas quanto ao mais e adotou o seu Acórdão com uma votação nem sempre unanime quanto às várias questões que apreciou.

O juiz Lemmens formulou uma opinião concordante parcial, dissidente parcial, na qual exprimiu o seu apoio ao Acórdão, exceto no que concerne à questão do direito de acesso á educação, constante do art.º 2.º do Protocolo n.º 1 à CEDH. Previamente à sua abordagem desta questão, trouxe uma luz esclarecedora sobre a noção de “solidariedade social”, no sentido de esta não estar apenas a cargo das autoridades do Estado. Na medida em que nenhum de nós vive só, a solidariedade social que é apenas exigível à coletividade, sendo a coletividade expressa não apenas em relação ao Estado, mas também em relação a cada um de nós. Desincumbindo-se as autoridades da prevenção da doença por meio da vacinação obrigatória, compete a cada cidadão ser socialmente solidário e aceitar sofrer a vacinação. Neste contexto torna-se perfeitamente legítima a imposição de determinados deveres com as correspondentes restrições aos cidadãos, a qual resulta do modo de ser democrático das nossas sociedades. Quanto à questão, propriamente, do art.º 2.º do Protocolo n.º 1 à CEDH, o juiz Lemmens, sem tomar uma posição tão adiantada quanto a do Governo alemão, é do entendimento de que que a questão deveria ter sido equacionada de modo a destacar a necessidade, apesar do incumprimento a cargo dos pais, de os integrar no ambiente coletivo e social que a educação faculta. Além das competências propriamente técnicas adquiridas pelas crianças, estas vão integrar as competências humanas e sociais que as integram na coletividade em que participam por meio da atividade educativa (a esta luz se lê melhor a só por si muito útil observação que este magistrado teceu em torno do princípio da solidariedade social, cuja interiorização na pessoa de cada um começa na escola). Avançando na análise, o juiz Lemmens entende que daí resulta não ser necessário e logicamente decorrente da construção do acesso à educação, um pouco à maneira de um ónus a cargo dos pais, a propósito da não violação do art.º 8.º § 1 (e quanto a esta questão apenas, a do art.º 8.º § 1, muito bem equacionado), que deva ficar prejudicado o acesso das crianças atingidas pela medida, à educação e ao ensino. Teria preferido se o TEDH se tivesse demorado um pouco mais no detalhe do exame destas questões.

O juiz Wojtyczech também exprimiu uma opinião dissidente. Concorda com a necessidade inadiável de um sistema público de vacinação obrigatória mas entende que os argumentos do Governo, que foram atendidos pelo TEDH, não estão bem construídos.

Em termos de processo, o juiz Wojtyczeck colocou a questão interessante na gestão do seu processo judicial por uma parte, segundo a qual não lhe deve ser imposto pelas autoridades judiciais “que espere sempre o pior” (e o mais seria sempre benefício). Analisou a questão em torno de 3 etapas. 1. A qualidade do processo de queixa e a função do TEDH, 2. O ónus da prova, e 3. O estabelecimento da matéria de facto mediante o reconhecimento tácito pelas partes. 1. Quanto à função do TEDH, a questão anda em torno da busca da verdade material como objeto da atividade judicial e da possibilidade de o juiz europeu agir segundo os seus poderes discricionários no contexto do processo. Para ele, ficar no dispositivo (o processo é propriedade das partes e o juiz está limitado à produção por estes da sua prova e argumentos),l ou ser o juiz o titular do processo (tendência dos modernos processos internos, em que, apenas como exemplo, se a matéria cível dentro de um litígio de direito privado é, salvas as limitações decorrentes de disposições legais de caráter imperativo, está na disponibilidade das partes, por ser direito privado, o processo é direito público administrativo. Se as partes podem dispor, dentro de certos limites, dos seus direitos em matéria cível, não lhes cabe a disponibilidade do processo judicial, cujo “dono” é o tribunal enquanto órgão de soberania de que o juiz é o titular). Embora para o juiz Wojtyczeck, a CEDH não dê resposta clara sobre a questão, o art.º 38.º da CEDH confere ao TEDH, em sendo necessário “o poder de conduzir uma investigação”, de modo a estabelecer a matéria de facto relevante. Significa que deve procurar estabelecer alguma medida de verdade material. Depois de referir abundante jurisprudência em torno do princípio da oficiosidade do juiz no exercício do seu cargo, chega à conclusão que o TEDH desenvolveu um conjunto de presunções de facto (que reproduz de Acórdão a Acórdão), que o faz apoiar-se na argumentação das partes, atribuindo-lhes determinado valor dentro do que aceita ser o operar legítimo destas presunções. O método (muito legítimo) de distribuição do ónus da prova pelo TEDH, leva-o a fazer vencer uma presunção sempre que esta não consiga ser ilidida pela outra parte, geralmente a que está onerada com a prova para além de toda a dúvida razoável (o que torna a proteção dos direitos humanos na Europa bastante eficaz, pois geralmente, o resultado é certeiro e seguro).  Reconhecendo, embora, a valia e a legitimidade desta solução (para o leitor destes Acórdãos um método importante, pois confere segurança em relação à confiabilidade e à adjudicação dos casos concretos pelo TEDH, sendo geralmente o que causa insatisfação, a não correspondência de um concreto Acórdão aos critérios próprios que o TEDH anteriormente estabeleceu; o juiz Wojtyczeck apela a que o TEDH possa sair da zona habitual da sua prática, embora esta seja segura, para descer, ex officio, à apreciação da materialidade de um contexto de vida, tomando o próprio TEDH a iniciativa da produção (e não apenas da adjudicação desta) da prova. Existem, de resto, corroborando a preocupação do juiz Wojtyczeck e fazendo jus aos poderes de iniciativa que, em casos extremos, o TEDH reconhece caberem dentro da sua competência judicial, exemplos desta atividade judicial oficiosamente exercida pelo TEDH.  Assim, no recente Acórdão proferido pela 1.ª Seção no caso Feilazoo c. Malta, de 25 de março passado, foi o próprio juiz presidente do coletivo que instruiu a Secretaria no sentido de esta receber a queixa do peticionante e de a por em condições de ser apreciada pela formação judicial, sendo que Feilazoo venceu no processo de queixa que foi assim conduzido contra Malta. Em matéria de prova, com o acionamento do art.º 38.º da CEDH, o juiz Wojtyczeck referiu o caso Ilascu e Outros c. Moldova e Rússia [GC], 2004, também objeto, a seu tempo, de  divulgação nesta página; em que o TEDH se socorreu de um sistema misto de presunções de facto articuladas entre si e de investigações por ele próprio conduzidas. Sobre este ponto, o juiz Wojtyczeck não exprimiu mais, mas avançou como critério de produção de prova, a possibilidade de uma investigação oficiosa pelo TEDH.  2. O critério do ónus da prova e os padrões de argumentação. O juiz Wojtyczeck, citando novamente jurisprudência do TEDH recordou que, além da investigação oficiosa sempre disponível como ferramenta para o TEDH, o princípio do contraditório é tema central da atividade judicial do TEDH: ou seja, o TEDH não pode decidir sempre que uma parte tenha sido concretamente ouvida no ponto que aprecia. No fundo, concretamente, o que o juiz Wojtyczeck aqui contesta, de certo modo, é o facto de, por as partes não terem esgotado o tema da dignidade humana em relação à imposição da vacinação e da necessária presença, pelo menos como matéria a examinar, do tema do consentimento do lesado, embora esta tenha sido arguida pelas partes civis e não tenha sido contestada pelo Governo, tomando-a como pressuposto de raciocínio e passando à primazia do inadiável interesse na vacinação, o TEDH não considerou estes segmentos de queixa como fundamentos de queixa (griefs) para o efeito de lhes atribuir a relevância que poderiam ter merecido, uma vez que foram esgrimidos pelas partes civis com este propósito. O que incomodou o juiz Wojtyczeck aqui, e também me desassossega, enquanto leitor humilde em busca do entendimento, foi o ter-se feito funcionar os critérios da urgência e da necessidade inadiável, certamente prementes, o que não se contesta, ignorando a métrica da operação das presunções de facto que poderiam esclarecer a questão. Existiu um argumento prima facie ao qual não se deu relevância para provocar a resposta para além de toda a dúvida razoável, o que conferiu insegurança ao estável modelo de decisão judiciária do TEDH. Ou então, este investigava a materialidade da situação da vida oficiosamente.

Embora a questão pareça ser rigidamente formalista (e o direito é tema da substância da vida, quem quer fazer forma e estética, vá estudar matemática), o problema é mais fundo. Embora a questão tenha sido abordada na economia do Acórdão, não é deste momento da leitura que se refere a problemática do consentimento do lesado, esta questão da aceitação de uma intervenção que de outro modo não deveria ser autorizada sobre o seu corpo, da parte do respetivo titular (a própria pessoa por este corpo suportada) tem por significado que a margem de apreciação das autoridades em matéria de consentimento do lesado (a figura jurídica que exprime a questão do consentimento sobre atos de disposição do próprio corpo e é sobejamente conhecida nos vários ordenamentos jurídicos) é extremamente reduzida, contra a muito ampla, reconhecidamente ampla e justamente ampla, margem de apreciação das autoridades quando enfrentam a necessidade inadiável de apagar o incêndio que representaria o regresso das mais horrendas patologias e cuja prevenção é tema deste mesmo combate ao fogo. Numa argumentação um pouco à maneira do juiz Lemmens, o juiz Wojtyczeck, embora numa fórmula ligeiramente mais severa, teria apreciado que o TEDH se debruçasse mais em detalhe sobre esta questão.

3. Ainda em torno da matéria processual de queixa, o fundamento e a justificação da decisão judicial da matéria de facto. O critério-quadro é aqui, o de que não basta duas partes oporem palavra contra palavra. É, ainda, necessário corroborar cada palavra com a matéria da prova a qual tem de ser produzida e ponderada para, mediante a decisão judicial desta matéria de facto, se poder proceder à adjudicação do caso segundo o direito, por meio da aplicação do silogismo judiciário. A dificuldade para o juiz Wojtyczeck está em que as partes civis aduziram, nos fundamentos de queixa anteriormente referidos nas etapas já vistas da análise deste processo de queixa, argumentos que fundamentaram com peças emanadas de organismos internacionais, nomeadamente, como a OMS, no tocante a segmentos eventualmente atendíveis das queixas (e é precisamente a função do juiz, de decidir sobre a prova num ou noutro sentido, justificando). Como se viu acima estes factos esgrimidos pelas partes civis foram dados como assentes, sem que nenhum benefício lhes adviesse por esta razão, pelo menos em termos de equilíbrio da decisão judicial do caso. Pareceria ser repetição, mas mais acima, o mesmo tema serve para equacionar a necessidade da produção oficiosa de prova quando a métrica das presunções de facto é deixada inoperante, eventualmente por razões legítimas associadas à decisão; aqui tem um outro propósito, o de, completando o anterior raciocínio chamar a atenção do TEDH para definir mediante o seu método jurisprudencial qual o valor a dar à prova aduzida como fundamento de queixa, mas tacitamente reconhecida pelas partes como pressuposto de raciocínio, o que fez desmerecer a esta prova a análise corrente dos factos pelo TEDH.

O juiz Wojtyczeck passou às questões de substância. A questão foi aqui essencialmente a dos critérios do TEDH para medir a justificação da ingerência (no fundo o critério da sua necessidade numa sociedade democrática). As questões do juiz Wojtyczeck centram-se em torno de: 1. A medida do escrutínio adotada pela maioria; 2. A base factual do julgamento; 3. O modo de adjudicação do conflito de valores; 4. A avaliação do processo nacional de decisão. Em jeito de introdução às respostas deste magistrado, a questão para ele, não é, claramente, a da legitimidade da vacinação obrigatória, a qual está assente de modo muito claro; está na legitimidade do estado à luz da CEDH para impor sanções pelo incumprimento do dever de sofrer a vacina. No fundo, há que saber se o valor trazido pela imposição da vacina justifica a restrição à liberdade de escolher. 1. A medida do escrutínio adotada nesta matéria. A questão anda em torno da integridade do corpo da pessoa em relação com a sua dignidade humana (um pouco como a liberdade corpórea é critério e medida do prazo de garde à vue, devendo ser legitimada pela intervenção judicial. Passado o prazo legal (48h) sem decisão de validação da detenção o preso pode invocar o direito a dispor da sua liberdade corpórea: habeas corpus. Aqui trata-se do direito à autodeterminação em torno de atos materiais de disposições sobre o próprio corpo, legitimando a operação do necessário consentimento do lesado). O juiz Wojtyczeck referiu com citações de trechos de importância significativa os Acórdãos do TEDH proferidos nos casos Salomokhin c. Ucrânia, 2012; Purillo, Paradiso e Campanelli c. Itália, 2017, nomeadamente. Destaca-se desta jurisprudência a reduzida margem de apreciação do Estado em matéria de disponibilidade do corpo de um cidadão a exigir o consentimento do lesado, em particular, quando os vários ordenamentos nacionais chegam a um consenso (Europa) nesta matéria, impondo restrições à intervenção das autoridades, equilibrada pelo reconhecimento de que não existindo este consenso e havendo inadiável premência, pode a margem de apreciação das autoridades alargar-se. Em tudo isto, em torno do corpo e da sua disponibilidade, verifica-se o reconhecimento, da parte do próprio TEDH, de que aqui radica a última autonomia da pessoa e que este é o reduto final da sua integridade pessoal. Para o TEDH este quadro de princípios é de tal modo significativo que mesmo na ausência do chamado “consenso europeu”, a margem de apreciação o Estado é reduzida. Neste sentido abona também o art.º 5.º da Convenção de Oviedo, relativamente ao consentimento informado e consciente do destinatário da intervenção no próprio corpo. Significa para este magistrado que sem uma apreciação detalhada da questão do consentimento consciente e informado do lesado, a verificação da não violação do art.º 8.º § 1 da CEDH pelo TEDH foi um exercício fácil sem grande suporte argumentativo. Com os próprios argumentos a que recorreu o TEDH deveria, em qualquer caso, ainda que por um fundamento relativamente alheio à questão central e imperiosa da necessidade inadiável da vacina, mas em torno das várias facetas da questão do consentimento informado e consciente do lesado,  ter concluído pela violação em determinado segmento das queixas do art.º 8.º § 1.  Para manter a inequívoca opção como o fez, da não violação deste preceito, deveria ter abordado em profundidade o tema do consentimento do lesado e transitar de um Acórdão de 64 páginas, para um Acórdão de 128 pps. Ai possivelmente, à força de tanto cavar a argumentação (vide a fábula de Lafontaine que deixa em herança aos filhos um terreno por cavar, no qual diz existir um tesouro. Em busca da arca perdida que não encontrarão nunca, os filhos amassarão uma considerável fortuna em proventos da lavoura tanto cavada), teria fundamentado de modo consistente e seguro, nomeadamente em termos de precedente, a não violação do disposto no art.º 8.º § 1 da CEDH que no meu entender de modesto leitor é a solução que se impõe. No fundo esta é a oportunidade de dar vida ao direito na sua função auto recriadora, autopoiética de ser vivo que a si próprio em função da vida e perante os seus problemas se regenera. “ 2. A base factual do julgamento. O juiz Wojtyczeck entende que as 9 doenças previstas no programa de vacinação obrigatória do SSP, representando um leque muito diverso de doses, a justificação da legitimidade da ingerência das autoridades em relação a cada vacina deveria ter sido feita ponto a ponto, exame de doença a exame de doença, para aferir a legitimidade da imposição de sanções por incumprimento do dever de sofrer a vacina. Haveria nomeadamente que estudar o modo de transmissão da doença, a velocidade da transmissão, o custo do tratamento em relação a cada doença (e em particular o custo humano concreto para o próprio de vir a sofrer uma sequela da patologia) por doente não vacinado, as possibilidades de êxito deste tratamento (mais uma vez o custo humano, certas sequelas não se apagam mais), a efetividade precisa de cada vacina, o risco de efeitos colaterais da vacina, o custo médio de cada tratamento por efeitos não desejáveis da administração da vacina, a percentagem de pessoas em relação a uma comunidade necessária dentro de cada sociedade para que opere com êxito, em relação a todos, para que a concretização do programa de vacinação seja dado como operacional.

A crítica do juiz Wojtyczeck não está no reconhecimento urgente da necessidade inadiável em vacinar, está no ter-se dado esta necessidade como um valor de tal modo adquirido que nem sequer mereceria uma análise mais concreta, sendo por aqui que pecaria o Acórdão. No  fundo a assunção desta importância, inadiável, efetiva e reconhecidamente urgente, como não discutível não permitiu o operar do pré entendimento de quem identifica os factos porque é experiente no manejamento das figuras jurídicas, mas veio operar como um preconceito que condicionou toda a estrutura do Acórdão e o prejudicou.

3. A apresentação da questão em termos de conflito de valores. De novo, a necessidade inadiável e premente, versus o consentimento informado e consciente do lesado, impondo o encargo aos pais no sentido de vacinarem os filhos menores de muito tenra idade. Em torno desta questão o consentimento do lesado e a demonstração da existência de um consenso europeu. Para algumas destas neve vacinas, não há consenso europeu e existem Estados que propõem soluções alternativas à vacinação obrigatória. Significa que o preconceito levou o julgador europeu a tomar o conjunto de vacinas como um todo indispensável e não questionou o saber se não existiam á disposição das autoridades Checas, pelo menos no tocante às vacinas dispensadas por certos Estados europeus que as substituíram por soluções alternativas, meios outros que a imposição da vacina para assegurar a proteção contra a doença. A censura dirigida pelo juiz Wojtyczeck ao coletivo da GC na sua maioria é o de não se ter socorrido de um critério que resulta da própria elaboração jurisprudencial do TEDH, da procura de “uma restrição alternativa menos gravosa”, a qual a existir, seria a solução porque a R. Checa deveria ter optado. Para o juiz Wojtyczeck o facto de a decisão da maioria do coletivo da GC ter sido reforçada por um caso de falsidade documental que excluiria em razão da censurabilidade do comportamento, qualquer consideração do problema, teria uma dimensão sancionatória que aumentaria o teor preconceituoso do Acórdão. Sempre a cultura da culpa do sujeito muito ao gosto das nossas culturas, a qual da religião teve o aproveitamento a que se assistiu nos piores regimes totalitários da Europa. Ou seja, o caso sub judice traduz já uma existente e algo manifesta desconfiança dos cidadãos no seu quadro institucional, desconfiança que vencendo sem convencer, este Acórdão mais terá vindo acentuar.

O juiz Wojtyczeck pronunciou-se ainda sobre o segmento da queixa relativo à alegada violação do direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião constante do art.º 9.º da CEDH. Exprimiu algum desconforto com a preocupação algo formalista (quod non est in actis non est in mundo?) da maioria do coletivo no sentido de não aceitar a argumentação porque não totalmente esgotada, quando o próprio TEDH não cuidou de se pronunciar sobre a matéria do consentimento do lesado, no qual, consentimento informado, esclarecido e consciente, em relação à disposição do próprio corpo do sujeito de direito, estaria na verdade a sede da violação eventual (não quer dizer, mais uma vez que se dê esta violação por assente, havia simplesmente que produzir algum mais esforço) ou da não violação do artigo 8.º§ 1 direito à vida privada e familiar.

Concluindo, o juiz Wojtyczeck com o seu método jurídico estudado e ponderado, preocupado com a sua função judicial de assegurar a proteção dos direitos humanos na mais alta jurisdição para este efeito instituída do espaço Europeu, entende pelas razões que expôs, como o diz no seu voto dissidente a final, que o Acórdão da GC nesta tão importante e delicada matéria, enferma de múltiplos “shortcomings”.

Não compete a um modesto leitor da jurisprudência do TEDH; sempre formada por tão importantes e perfunctórias decisões em termos de análise jurídica e de formação do próprio, tomar uma posição definida que não seja de humildade. O certo é que a vida é relativa porque as pessoas estão em relação umas com as outras e em relações de dependência mútua entre si e na rede social e coletiva dos diversos estratos em que se movem (institucional, económica, sentimental, familiar, etc…). Que a vida é frágil e precária. Que mais do que nunca os cidadãos pedem justiça e legitimidade às suas instituições e eventualmente, menos preconceito, causador de tanta e tão profunda dor. Aqui também existe certamente uma necessidade inadiável, un besoin social impérieux, ein dringend not, a pressing social need.

 

Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos