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TEDH, Grande Chambre, X. e Outros c. Grécia, Acórdão de 2 de fevereiro de 2021

15 fev 2021

CEDH, Artigo 3.º tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, e vida privada e familiar. Violação processual da proibição da prática de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes (art.3.º). Outras violações invocadas não foram atendidas.   .

Cinco cidadãos italianos queixaram-se ao TEDH contra a Bulgária da prática de abusos sexuais cometidos sobre os 3 filhos adotivos do casal, enquanto estes estavam confiados à guarda de uma instituição para acolhimento e proteção de menores, na pendência da sua adoção. A Secção do TEDH a quem a queixa foi inicialmente distribuída entendeu não se ter verificado qualquer violação em sede dos invocados art.ºs 3.º e 8.º da CEDH, tendo os queixosos recorrido para a Grande Chambre do TEDH.

Os 3 filhos menores do casal nasceram na Bulgária, foram abandonados pela mãe e subsequentemente colocados, na pendência da sua adoção, na referida instituição de acolhimento e proteção de menores. Um dos menores (os três são duas meninas e um rapaz) desenvolveu um comportamento de natureza sexual com as irmãs, a tal ponto que os pais adotivos encararam a possibilidade de o devolver à instituição de onde provinha. Foram desaconselhados de o fazer por um psicólogo, procurando-se reintegrar o rapaz no contexto de um bom comportamento. Confrontadas com o psicólogo, as meninas justificaram o comportamento do irmão com uma prática seguida na instituição de acolhimento e proteção, a título de brincadeira, e exprimiram o receio de que o irmão fosse devolvido para a Bulgária. Seguindo as leges artis da psicologia, as crianças foram interrogadas e o rapaz descreveu vários comportamentos de que fora vítima na instituição de acolhimento e proteção de menores. A família e os psicólogos procederam à denúncia criminal destes factos, tendo a polícia registado o seu inicial depoimento. Acionaram uma associação de proteção de menores (telefono azzuro) e levaram a queixa ao Ministério Público (o MP). Contactaram também as autoridades búlgaras de proteção da criança e comunicaram com um periódico italiano de investigação, o qual veio, após uma investigação no terreno, a publicar um artigo sobre práticas pedófilas nas instituições de acolhimento e proteção de menores, na Bulgária. Em sede de cooperação judiciária internacional em matéria penal, as autoridades do MP italiano e búlgaro conduziram a sua investigação. Foi determinada a inspeção da instituição de acolhimento e proteção de menores em concreto, a qual concluiu pela inexistência de abusos sexuais na instituição, o que conduziu a uma campanha da imprensa eletrónica búlgara contra a Itália, em razão da publicação do artigo, em contexto de jornalismo de investigação. Consequentemente, o MP búlgaro arquivou a investigação. Uma associação de defesa dos direitos das crianças visitou o estabelecimento onde as práticas sexuais teriam decorrido e concluiu negativamente quanto à existência de abusos, vindo a criticar os pais adotivos pelo modo como conduziram esta questão.  O Ministério da Justiça (o MJ) búlgaro comunicou o arquivamento do inquérito preliminar ao MJ italiano e foi aberto na Bulgária um processo relativo à verificação da competência dos pais adotivos para cuidarem dos menores à sua guarda. A imprensa búlgara identificou todos os participantes neste processo e divulgou as identidades de cada uma das crianças.

A associação telefono azzurro e os pais adotivos não se conformaram, vindo o MP italiano a abrir um segundo inquérito preliminar. O MJ, italiano, em sede de cooperação judiciária internacional em matéria penal, voltou a solicitar o seu homólogo búlgaro, no sentido de este, mediante o exercício da jurisdição do Estado sobre o estabelecimento, proceder à competente investigação. Mais uma vez o relatório do inquérito preliminar atestou as maravilhas do funcionamento da instituição de acolhimento e proteção de menores, nomeadamente a sua supervisão semanal pelo MJ, dando um resultado negativo à investigação. Veio a ser aberto na Itália um processo relativo à verificação da idoneidade dos pais adotivos para exercerem as suas competências parentais relativamente aos menores adotados. Por seu turno, o jornal que procedera à investigação reiniciou a sua investigação, descrevendo, em novo artigo, as práticas seguidas na Bulgária, a existência efetiva dos lugares descritos pelos menores nos seus depoimentos, e verificou ainda que, junto da instituição de acolhimento e proteção de menores em que os factos se teriam produzido, existia uma agência de fotografia, cujo animador tinha um perfil no Facebook cujos contactos eram, na sua maioria menores. No quadro do processo na Itália, os 3 menores foram interrogados e as suas respostas foram suficientes para convencer o julgador que sofreram, efetivamente, abusos sexuais. Esta convicção íntima do julgador foi adquirida mediante o recurso constante, da parte do coletivo, às perícias psicológicas autorizadas segundo o grau de desenvolvimento atual das respetivas leges artis. Na sua decisão judicial, em sede de verificação da competência dos pais adotivos para exercerem as correspondentes responsabilidades parentais, este tribunal de família e menores (o TFM) entendeu que os pais não tinham conduzido adequadamente a identificação das práticas criminais de que os menores foram vítimas, uma vez que se deviam ter imediatamente queixado ao tribunal de família e menores, mas que, não obstante, possuíam os requisitos necessários à prossecução das suas responsabilidades parentais com os menores adotados. O TFM indicou, na sentença, a necessidade de se abrir uma investigação criminal sobre estas práticas, o que levou o MJ, novamente, a solicitar o auxílio das autoridades búlgaras em sede de cooperação judiciária internacional em matéria penal. Após um conjunto de diligências de natureza processual, o MP búlgaro arquivou o processo por falta de prova, tendo sido o MJ italiano informado deste arquivamento. Após uma série de desenvolvimentos na Bulgária, e em razão de uma nova política da Justiça neste país, foi adotada uma política de desinstitucionalização, visando a colocação o mais possível das crianças em situação de abandono, em famílias de acolhimento, vindo o centro litigioso a ser definitivamente encerrado.

Uma vez confrontados com a falta de cooperação das autoridades búlgaras, os cinco queixosos apresentaram queixa ao TEDH, contra a Bulgária. Examinando a matéria de facto em torno desta queixa, o TEDH reuniu materiais de direito internacional, nomeadamente a Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança (a CRC), de 20 de novembro de 1989, a jurisprudência do Comité dos direitos da criança, nomeadamente as suas Observações gerais relativas à interpretação dos artigos da CRC sobre práticas de bullying entre crianças e de adultos sobre crianças, os abusos sexuais de menores, a pornografia infantil bem como a distribuição destes materiais, sendo que a Observação geral n.º 19 especifica que o envolvimento das autoridades no combate a estas práticas pode implicar o exercício da ação penal. Do Conselho da Europa (o CoE) reteve a Convenção de Lanzarote de 12 de julho de 2007 (entrada em vigor em 1 de julho de 2010), relativa à prevenção e ao combate à exploração sexual e ao abuso de menores. Nesta Convenção são previstas medidas de proteção de menores bem como a denúncia de crimes contra menores e o seu tratamento pelas autoridades, sendo admissíveis ações encobertas. A mesma Convenção prevê a incriminação penal (em sede de direito substantivo interno) dos abusos sexuais de menores, bem como a atribuição às autoridades do estado, mediante acto legislativo, de jurisdição no sentido da imposição de sanções, nomeadamente penais, as quais devem ser efetivas, proporcionais e dissuasoras, tendo em conta a seriedade das ofensas. Por fim está prevista a apreensão e a perda dos instrumentos do crime, e sendo disso o caso, a perda dos produtos do crime. A Carta Social Europeia (a CSE) também prevê a proteção especial das crianças e dos jovens relativamente ao perigo físico e moral a que estão expostos, devendo ser adotadas todas as medidas necessárias à proteção da criança contra a negligência e a violência da exploração. Também foram apreciadas pelo TEDH as Linhas diretrizes sobre Justiça amiga da criança adotadas pelo Comité de Ministros (o CM) do CoE na sua Sessão de 17 de outubro de 2010. As diretrizes sobre justiça amiga das crianças contém um plano preventivo, preveem a proteção e o desenvolvimento das crianças como critério da realização desta justiça, e elencam os direitos das crianças nos planos processual e judicial, e o quadro processual penal em que eventualmente esta justiça pode vir a desenrolar-se. É preocupação permanente a observância das medidas de integração e proteção de menores. Enfim, o TEDH estudou a Recomendação Rec (2005)5 do CM sobre os direitos da criança a viver em instituição de acolhimento e proteção. No plano da EU, o TEDH deu conta da Diretiva 2011/93 EU do Parlamento europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa ao combate ao abuso sexual e à exploração sexual de crianças e à pornografia infantil, as regras mínimas sobre a definição de ofensas criminais e de sanções nesta área, as novas disposições relativas à proteção de menores e à prevenção do crime. Enfim, no contexto da EU, é aplicável entre Estados membros, a Convenção de assistência mútua em matéria criminal de 29 de maio de 2000.

Apreciando o direito, o TEDH acolheu a decisão de admissibilidade prévia da Seção, destacou que dos cinco queixosos, apenas era admissível a queixa dos três menores, mantendo esta posição apesar dos pais terem reiterado o seu pedido de verem examinada a sua posição própria nesta queixa.  Em sede de admissibilidade, o Governo búlgaro  opôs o abuso do direito de queixa a cargo dos menores, citando a jurisprudência do TEDH proferida sobre o abuso do direito de queixa no caso Gross c. Suíça de 2014 (também objeto a seu tempo de divulgação nesta página). O TEDH destacou que a figura do abuso do direito de queixa em sede de admissibilidade não contempla a questão de saber se os menores teriam ou não, manipulado a verdade. Esta questão acaba por ser decidida no plano do mérito, em particular sempre que o TEDH conclui mediante Acórdão (uma vez que admitiu a queixa, examinando a questão de fundo), pela improcedência de uma queixa. A figura do abuso de direito relevante para o efeito da inadmissibilidade de uma queixa, manifesta-se nomeadamente pelo emprego de uma linguagem exagerada, a qual pode incorporar insultos. Manifestando-se destarte o abuso de queixa, esta é logo declarada inadmissível. Assim não sucedeu no presente caso. Apesar do emprego da expressão “pedofilia” na queixa, uma vez que o respetivo tema era o designado pela mesma expressão, o uso desta não podia integrar a noção de insulto para o efeito da inadmissibilidade da queixa.

Quanto à substância, os queixosos invocaram os artigos 3.º, 6.º, 8.º e 13.º da CEDH, e alegaram que foram vítimas de abusos sexuais enquanto viviam numa instituição de acolhimento e proteção de menores na Bulgária e que as autoridades búlgaras falharam na observância dos deveres de proteção a seu cargo, no sentido de os proteger contra estes maus tratos (dimensão substantiva das violações), bem como no sentido de conduzir uma investigação capaz relativa a estes mesmos maus tratos (dimensão processual das violações). Recorde-se que o artigo 3.º é relativo à proibição dos maus tratos, o 6.º à iniquidade processual, o 8.º ao direito à vida privada e familiar e o 13.º ao direito a um recurso efetivo das violações destes direitos (devendo este preceito ser lido em articulação com a disposição precisada CEDH cuja violação é invocada).

Seguindo o seu método, o TEDH definiu os princípios gerais aplicáveis a estas questões, destacando em particular que o art.º 3.º contém um dos mais importantes valores da vida em sociedade, proibindo em termos absolutos a tortura e os tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. São critérios de aferição a existência destes maus tratos na pessoa da vítima, além das demais circunstâncias do caso, a duração do tratamento, os seus efeitos físicos e mentais na vítima, e em certos casos, o sexo, a idade e o estado de saúde desta. Citou, a título de referência, a jurisprudência proferida no caso Nicolae Virgiliu Tanase c. Roménia (2019). Ao Estado, no exercício do seu dever de cumprir os direitos que são assegurados às pessoas sob a sua jurisdição pela CEDH, compete adotar medidas que assegurem que estas pessoas não sejam submetidas a maus tratos, incluindo-se nestes os maus tratos infligidos às vítimas por pessoas e entidades atuando na sua competência privada (O’Keefe c. Irlanda [GC] 2014 e M.C. c. Bulgária, 2003). Estas obrigações, embora o conteúdo do dever seja negativo (não proceder à prática de maus tratos), são obrigações positivas que requerem uma atividade enquadrada na prevenção destas práticas e na sua repressão, tanto no plano público como na esfera privada. A primeira destas obrigações positivas é a de instituir um quadro legislativo e regulatório de proteção adequados. A obrigação positiva do Estado de adotar medidas operacionais positivas de proteção, significa não uma vigilância, que seria esgotante para as autoridades, mas a instituição de mecanismos de prevenção que sejam efetivos a partir do momento em que são despoletados, mediante a verificação segura e rápida das condições do seu acionamento. Em particular, não podem as autoridades ignorar a existência destes maus tratos ou a suscetibilidade destes virem a acontecer. É o caso, em especial, das crianças e das pessoas vulneráveis. Para que a violação desta segunda obrigação positiva tenha lugar, é preciso conseguir estabelecer que as autoridades conheciam ou deviam conhecer a existência de um perigo real e iminente. A obrigação positiva de conduzir uma investigação efetiva no caso de queixas por violação desta proibição de maus tratos, devendo proceder-se ao estabelecimento dos factos e à identificação dos responsáveis, não é de resultado, mas de meios. Ou seja, se mediante uma atividade eficaz o Estado não encontrar a matéria de prova, basta-lhe demonstrar que empregou toda a diligência necessária ao apuramento dos factos. Naturalmente, deve esta investigação ser o mais rápida possível e o seu resultado, a final, deve ser acessível às vítimas. Enfim, tratando-se de vítimas que sejam crianças o art.º 3.º da CEDH exige dos Estados o cumprimento das obrigações positivas de assegurar que o melhor interesse da criança seja sempre considerado. No caso sub judice, as crianças enquanto crianças sós, isoladas no contexto institucional em que se encontravam na Bulgária, eram tanto mais vulneráveis quanto, além de menores, estavam completamente isoladas. O TEDH passou então à verificação do cumprimento pontual, pela Bulgária, de cada uma destas obrigações positivas. No tocante à instituição de um quadro legal e regulatório competente, o TEDH verificou a existência de um arsenal de material legislativo, processual e judicial, desde a Constituição e o Código penal a vária legislação processual e outra aplicável, bem como à existência das instituições judiciais com as respetivas competências atribuídas. No tocante às medidas preventivas operacionais, esta questão levanta-se, em particular, no tocante à instituição de acolhimento e proteção de menores relativamente a cujo funcionamento, as autoridades não podiam ignorar que existia um perigo particular destes menores virem a ser abusados sexualmente. Havia, então, que exercer uma vigilância estreita sobre o funcionamento desta instituição e supervisionar o modo como os menores eram tratados.

Face à registada falta de colaboração das autoridades búlgaras em relação aos pedidos em sede de cooperação judiciária internacional das autoridades italianas, o TEDH apenas pôde verificar que as autoridades búlgaras impossibilitaram que pudesse ser feita a prova destas violações. E, encargo do Julgador que procura estabelecer matéria de facto controvertida entretanto prejudicada por uma das partes, confrontado com a sua própria impotência em estabelecer os factos materiais, o TEDH não pôde senão verificar a inexistência da violação desta obrigação positiva, apesar da prova prima facie já aduzida pelas crianças que confortara a aquisição da convicção do julgador italiano no processo de verificação da competência dos pais adotivos, de que as crianças foram efetivamente abusadas. Onde? Possivelmente na instituição, o mais é desconhecido.

No tocante à obrigação positiva de conduzir uma investigação, o TEDH observou que os relatórios prestados pelas autoridades búlgaras às autoridades italianas em sede de cooperação judicial internacional em matéria penal eram muito detalhados em termos de descrição (um pouco à maneira dos relatórios nacionais das autoridades que descrevem a fundo um regime jurídico e a sua fundamentação constitucional e legal em direito interno, o financiamento, o quadro de pessoal, etc… de uma instituição, mas que são inconclusivos sobre o que esta instituição na realidade pratica, por exemplo em prol de determinadas matérias dos direitos humanos nas áreas da sua competência), mas inconclusivos quanto à matéria concretamente inquirida pelas autoridades italianas. No entanto, estas operaram com a diligência devida, formulando por três vezes o pedido de cooperação judiciária internacional em matéria penal, facultando nomeadamente ao Governo búlgaro indícios criminais por onde este poderia ter prosseguido a investigação. Observando o tempo de espera das autoridades búlgaras, o TEDH verificou que este fora breve nos três casos (et pour cause…), verificou que a Convenção de Lanzarote do CoE relativa à proteção dos menores contempla a possibilidade de proceder a uma queixa no seio do Estado (no caso a Bulgária) e que as autoridades búlgaras não deram conhecimento aos queixosos no contexto da cooperação internacional em matéria penal de qual seria o meio competente. Além desta omissão, e à luz da impossibilidade a que as autoridades búlgaras deram origem quanto ao estabelecimento dos factos, o TEDH verificou a violação da disposição do art.º 3.º da CEDH em sentido processual, uma vez que as autoridades búlgaras não conduziram uma investigação que fosse efetiva no sentido de aferir a existência ou inexistência (sendo obrigação de meios) da violação.

O TEDH decidiu por unanimidade não se ter verificado a violação do conteúdo substancial do art.º 3.º, e, por 9 votos contra 8 entendeu ter-se registado a violação processual deste artigo. Pela sua importância este Acórdão mereceu a formulação de votos concordantes de Turkovic, P.P. Albuquerque, Bosnjak e Sabato; concordante parcial de Serghides e concordante parcial, dissidente parcial de Spano, Kjolbro, Lemmens, Grozu, Vehabovic, Ranzoni, Eicke e Paczolay.

Os votos,pela luz que trazem aos contornos do caso, são importantes e merecem referência.

Voto concordante de Turkovic, Albuquerque, Bosnjak e Sabato. O propósito deste voto foi o de esclarecer melhor o âmbito da dimensão processual do art.º 3.º da CEDH, salientando a questão da importância da verificação dos abusos cometidos sobre crianças fora do seu contexto próprio natural (out-of-home children).

Concordante parcial Serghides. Salientou que não existe apenas o ambiente sobre o qual a CEDH se aplicara no passado, mas que o contexto e a própria CEDH têm uma dimensão evolutiva própria. Neste sentido descreveu a importância de integrar a CEDH com a observação dos textos do demais direito internacional público. Sublinhou a importância do princípio de efetividade de um direito que significa que, para este ser efetivo à luz da CEDH, tem de ser considerado o conjunto de exigências formuladas nos vários instrumentos internacionais que integram a interpretação do direito convencional europeu. Esta observação é importante uma vez que religa a efetividade de um direito da CEDH ao modo como este é encarado no direito internacional público.

Concordante parcial, discordante parcial de Spano, Kjolbro, Lemmens, Grozou, Vehabovic, Ranzoni, Eicke e Paczolay. Para estes magistrados, o TEDH ultrapassou a esfera das competências que lhe são atribuídas pela própria CEDH ao dar, segundo eles, uma interpretação demasiado lata dos maus tratos previstos no art.º 3.º da CEDH, o que prejudicaria a própria leitura do direito à vida privada e familiar do art.º 8.º. Esta incerteza poderia afetar negativamente o direito à proteção da vida privada em relação a uma vigilância desnecessária e a buscas desrazoáveis. Este Acórdão encorajaria a adoção de medidas intrusivas demasiado alargadas, o que poderia vir a dificultar a posição de outras crianças. Concordam que não houve a violação do art.º 3.º na sua vertente substancial, mas o problema está, segundo eles, no princípio da efetividade dos direitos convencionais. Examinaram a questão, nomeadamente à luz da Convenção de Lanzarote, a qual não atribuiu competência ao TEDH para a interpretação das suas disposições. Significaria que, da parte do TEDH, socorrer-se destas disposições para integrar a noção, à luz da CEDH, seria imprudente. A questão concreta é relativa aos §§ 221 a 223 do Acórdão, em que a Grande Chambre refere a possibilidade de ações encobertas com outras crianças, como meio de obter o indício da existência de práticas pedófilas no contexto da instituição (o que tem, nota do leitor, algo de perverso, sabendo que se o agente, suspeito de pedofilia, for um adulto, deverão as autoridades empregar crianças para o aliciar?), uma vez que estas estão previstas no art.º 30.º (5) da Convenção de Lanzarote, citado no § 10 do voto de vencido (mais uma vez choca o leitor a extensão eventual e o âmbito destas medidas. Como, até onde, quem, desempenhará a função de “engodo”?). Neste ponto, com efeito, esta opinião dissidente coloca uma dúvida forte sobre a legitimidade, em relação às vítimas, dos próprios meios de investigação.

Enfim, este importante voto de vencido coloca a questão propriamente da “efetividade” da investigação, sabendo que esta, sendo uma obrigação de meios, não deve conduzir necessariamente a um resultado. Aqui os magistrados debatem sobre os factos que chegaram ao conhecimento das autoridades italianas (as queixas das crianças em relação a outras e a adultos), e ao modo como as perguntas foram feitas pelas autoridades italianas às autoridades búlgaras, que podem não ter possibilitado, a estas, a providência de resposta adequada.  Nesta medida verificar-se-ia uma não responsabilidade completa, em benefício da Bulgária, pela não efetividade da investigação, uma vez que as autoridades italianas, pelo modo de perguntar, teriam de certo modo também prejudicado a investigação. Neste sentido, estes magistrados são da opinião que a Bulgária nem sequer teria violado o art.º 3.º da CEDH a título processual.

Se ao leitor deste complexo Acórdão, e da deveras terrível matéria nele enunciada, for permitido acrescentar uma luz a este caso resultante do seu pré-entendimento, vale o que vale, além de destacar a extrema perversidade para o próprio agente encoberto, se for um menor, de participar em ações encobertas contra pedófilos presumidos, os quais, a confirmar-se a dúvida, são certamente capazes do pior (quais os efeitos na psicologia e no desenvolvimento futuro de uma criança resultantes da sua utilização numa ação encoberta?), sendo, por conseguinte, o emprego de um menor para este efeito, da parte das autoridades, além de perigoso para o menor, um exercício perverso propriamente;

A avaliação psicológica dos menores foi bastante para estabelecer a convicção do Julgador italiano (em sede de confirmação da competência dos pais adotivos para exercerem a autoridade parental), de que as crianças foram abusadas. Significa que as crianças conseguiram, na qualidade de queixosos ao TEDH, estabelecer, nos termos do método probatório seguido por esta instituição, uma prova prima facie, que conduziria a Bulgária a ter de rebater, para além de toda a dúvida razoável, as imputações constantes da queixa, o que esta não fez. Pelo contrário, da leitura do Acórdão, chega a Grande Chambre (a GC) à verificação da sua própria impotência em apreciar a substância dos factos ocorridos na instituição de acolhimento e proteção de menores, e isto leva a GC, em razão da verificação da sua própria impotência, a considerar que não se verificou a violação do art.º 3.º na sua dimensão substancial. É esta verificada impotência que, de certo modo, fundamenta a verificação, em meu entender correta, da violação processual desta disposição. Significa que o Acórdão torna claro que a Bulgária impossibilitou, verdadeiramente, a prova da substância dos factos, inutilizou a prova e não permitiu saber o que se passou entre crianças e entre crianças e adultos na instituição.

Se os menores conseguiram provar prima facie (segundo a doutrina alemã desde 1973, de acordo com as regras da experiência) a violação imputável à Bulgária e se esta impediu a produção da prova porque a inutilizou, sendo, com efeito, a partir de então, impossível condenar a Bulgária pela violação substancial da proibição dos maus tratos do art.º 3.º da CEDH, pode, pelo menos, concluir-se que foi certamente violado o art.º 34.º da CEDH relativamente ao exercício do direito de queixa, uma vez que ficou definitivamente prejudicada a queixa dos menores neste segmento. A jurisprudência nem sequer é nova, datando do virar do Milénio o primeiro caso de condenação por este tipo de violação, que, desde então, é frequente na jurisprudência do TEDH; este primeiro caso, então notícia a que foi dada a natural publicidade pelo próprio TEDH, foi feliz com o seu importante avanço, um caso em que o Azerbaijão, pelas suas práticas, ainda hoje conhecidas de assédio judicial e de dissimulação e destruição da prova, foi condenado (Mammadov c. Azerbaijão, a seu tempo, nos idos de 2000 ou 2001, também objeto de divulgação nesta página).

A luz da gravidade dos crimes imputados à Bulgária, à necessidade hoje reconhecida (pelo próprio TEDH, sempre a falar na restitutio in integrum) de uma justiça restaurativa, que contemple as vítimas e não apenas a função punitiva do Estado, à luz do hoje afirmado primado do melhor interesse da criança, o TEDH (compreendo que é sempre mais fácil fazer uma leitura post factum finitum, do que na produção e prolação de um Acórdão, mas este trabalho é a competência e a razão de ser do TEDH), mais uma vez, teve dificuldade em sair da zona de conforto intelectual e, ao omitir ter em conta que a Bulgária realmente prejudicou o exercício do direito de queixa (porque deveria ter merecido alguma sanção), tornou possível a transmissão da ideia, em razão do mesmo conforto intelectual, de que, afinal, a Bulgária seria completamente inocente e eventualmente a parte diligente, a Itália, seria quem eventualmente seria responsável pelo fracasso da queixa, na sua substância, pois teria formulado, apesar dos louváveis mas certamente não meritórios nem bastantes esforços, as suas perguntas incorretamente.

Fica em todo o caso o sabor algo amargo, a que nos vimos habituando desde há alguns anos nos nossos contextos institucionais, de que não se pode ter tudo…


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos