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TEDH, 3ª Secção, Uzbiyakov c. Rússia, Acórdão de 5 de maio de 2020

12 maio 2020

CEDH, Artigo 8.º §1. Direito à vida privada e familiar. Direito de um pai a ver a sua paternidade judicialmente reconhecida. Violação.

Uzbiyakov (o queixoso) queixou-se contra a Rússia pela violação do seu direito à vida privada e familiar, tutelado pelo artigo 8.º § 1 da CEDH. Era fundamento da sua queixa a adoção por terceira família, da sua filha e a recusa dos tribunais nacionais em reconhecerem a sua paternidade biológica.

A criança em questão é filha de Uzbiyakov e da sua companheira, entretanto falecida. Tiveram 4 filhos, cuja paternidade de Uzbiyakov foi regularmente estabelecida, e esta quinta criança, cuja paternidade de Uzbiyakov as autoridades judiciais recusaram reconhecer, por esta ter sido, entretanto, adotada. Uzbiyakov migrou do Uzbequistão para a Rússia nos anos 90, tendo sido regularizada a sua permanência após ter permanecido algum tempo em situação irregular. Conheceu a companheira, ambos juntaram-se, desta união tendo nascido os cinco filhos. Em 2011 Uzbiyakov foi preso preventivamente por ser arguido da prática de um roubo, crime de que veio posteriormente a ser ilibado, vindo a ser colocado em liberdade no mesmo ano.

Quando o queixoso estava na prisão, a sua companheira faleceu, o que determinou a confiança das crianças a uma instituição pública. Os quatro mais velhos foram para um orfanato, mas a irmã mais nova, ainda bebé (com catorze meses) foi colocada numa instituição para bebés. Assim que, ainda preso, Uzbiyakov soube do falecimento da companheira, encetou diligências no sentido do reconhecimento da sua paternidade relativamente às cinco crianças. No tempo que mediou entre a colocação da filha num lar para bebés e o pedido de reconhecimento da paternidade do queixoso, a menina foi confiada a uma família com vista à sua adoção. Neste processo correu a informação de que a mãe tinha falecido e de que a menina não tinha pai. Ainda foi dito que os quatro irmãos tinham sido confiados, para adoção, a outra família. Nesta conformidade, o Tribunal de família e menores confirmou a adoção da menina pela nova família, o que cortava cerce as relações preexistentes que pudessem subsistir com a família originária.

Inconformado com esta decisão, o queixoso recorreu para uma instância superior ao tribunal de família e menores que decidira (o tribunal de círculo na organização judicial russa), tendo o seu pedido sido rejeitado, com fundamento em incompetência do tribunal.  Uzbiyakov recorreu para a segunda instância, a qual também declinou a sua competência. Ainda assim, esta instância observou que a ação teria de ser proposta junto do tribunal territorialmente competente em relação à jurisdição do tribunal de família e menores que decidira, e que existiam deficiências processuais que determinariam a absolvição da instância, a subsistirem, mas que, supridas, tornariam a petição inicial suscetível de ser recebida para exame judicial.

O queixoso propôs, então, a competente ação judicial de reconhecimento de paternidade e pediu a devolução das crianças à sua autoridade parental. Os quatro filhos mais velhos foram-lhe entregues com o reconhecimento da sua paternidade. Ao pedido de Uzbiyakov juntou-se o Procurador em exercício no Tribunal, apoiando o seu pedido, no sentido, também, do reconhecimento da paternidade quanto à filha mais nova e a sua consequente confiança ao seu pai. Foi, então, aberto um processo de investigação de paternidade em relação a Uzbiyakov. E foi, então, que este tomou conhecimento de que a sua filha fora adotada. Juntou à petição o pedido de revogação da adoção, para que a criança pudesse ser restituída à sua guarda. Alegou que a adoção violara a lei e que era contrária ao melhor interesse da criança. Apesar da resistência da mãe adotiva, registaram-se no processo intervenções favoráveis ao pedido do queixoso. Nomeadamente, apesar de acusações que lhe eram dirigidas, estas tomadas de posição registavam a estabilidade da vida familiar dele e da companheira, tendo nomeadamente o representante da Comissão de proteção de menores apoiado o pedido de Uzbiyakov. Na decisão final que veio a ser adotada, sob a forma de uma sentença, o tribunal entendeu que Uzbiyakov já tinha quatro filhos a cargo, que era precário, não gozando de estabilidade laboral, e que os pais adotivos da menina gozavam de uma relação estável entre si e gozavam de estabilidade financeira. Por outro lado, não se registava qualquer conduta culposa dos pais adotivos em relação à menina, a qual seria, de resto, o único fundamento juridicamente relevante para justificar a revogação da adoção. No momento desta adoção, a menina já vivia com a família adotiva havia mais de um ano e meio e a interrupção do decurso desta vida familiar seria suscetível de prejudicar o desenvolvimento harmonioso desta criança. Foi, assim, rejeitado o pedido de reconhecimento da paternidade de Uzbiyakov e negada a consequente restituição da confiança da filha ao seu pai.

Uzbiyakov recorreu para a segunda instância, tendo merecido o apoio do representante da instituição nacional de defesa dos direitos humanos. Ainda assim, atendendo aos argumentos expendidos no acórdão da primeira instância, o tribunal de recurso rejeitou o pedido por improcedente. O queixoso não se conformou e recorreu para o Supremo tribunal federal russo, o qual, mais uma vez, rejeitou o recurso. Mesmo assim, nos seus obiter dicta, reconheceu a possibilidade da revogação da adoção no caso de conduta culposa da parte dos pais adotivos.

Uzbiyakov queixou-se, então, ao TEDH da violação do seu direito à vida privada e familiar na vertente do direito à não perturbação da relação entre os pais e os filhos. Fora privado da confiança da sua filha e, previamente, do reconhecimento judicial da sua paternidade em relação a esta. Examinando a admissibilidade o TEDH teve em conta uma modificação do direito processual civil russo, o que fez com que a queixa de Uzbiyakov ainda fosse tempestiva.

Quanto ao âmbito do artigo 8.º, reconheceu ser esta disposição da CEDH aplicável às relações de filiação e paternidade. Examinando a questão quanto ao mérito, o TEDH estabeleceu a supremacia do critério do melhor interesse da criança em relação a qualquer outro. Este critério é reconhecido em Direito internacional público como o critério superando quaisquer outros nas questões envolvendo laços familiares entre crianças, progenitores e adotantes. Neste sentido, uma medida que atinja o núcleo essencial das relações de filiação e paternidade, que afete a própria relação de paternidade, apenas é aceitável em circunstâncias excecionais.  Além do dever de respeitar este modo de ser das relações pais-filhos, competem aos Estados obrigações positivas. Primeira, a da reunião dos pais naturais com os filhos biológicos; segunda, a imposição ao julgador de uma fortíssima atividade de ponderação das consequências de qualquer decisão que possa afetar este relacionamento. Existindo sempre alguma margem de apreciação do Estado, esta não pode prejudicar o exercício rigoroso do balancear dos interesses em presença, sendo que a própria margem de apreciação varia, no sentido da sua redução, em função da importância dos interesses em jogo. Assim, ao TEDH compete examinar, nestes casos, se as razões prestadas pelos Estados são “relevantes e suficientes” para a justificação das soluções por que estes optaram.

Aplicando estes princípios gerais ao caso sub judice, o TEDH entendeu que a questão essencial era a de saber se as autoridades judiciais tomaram todas as medidas necessárias cuja escolha seria razoavelmente de esperar, para assegurar à menor uma vida o mais possível normal, com os irmãos e o pai. Apesar da falta de estatuto parental juridicamente definido do pai quando a companheira faleceu, o certo é que a adoção da menina aconteceu sem que, por estar na condição de preso preventivo, o pai pudesse consentir ou opor-se. Certamente que na circunstância era necessária a intervenção das autoridades públicas para cuidarem das crianças. Mas o TEDH ficou impressionado com a rapidez com que a menina, ainda bebé, foi confiada a um casal para adoção. Não houve o cuidado, da parte das autoridades, em saber se não existiria uma alternativa à confiança para adoção e a subsequente adoção. Isto, tanto mais que os quatro irmãos mais velhos permaneceram institucionalizados mais tempo. Era obrigação positiva das autoridades verificarem o verdadeiro substrato da vida familiar da menor e terem o cuidado de a procurarem restituir a este quadro de vida. Havia, nomeadamente, que saber dos irmãos, que vieram mais tarde a ser confiados a outra família (vindo a seguir, no quadro do processo proposto pelo pai a ser esta adoção revogada e os filhos restituídos à confiança do pai), e havia que procurar saber qual o estatuto penal do pai, relevando o facto de este ter sido ilibado no mesmo ano em que foi constituído arguido e que foi preso preventivamente. Por fim, no processo, apurou-se que o pai tinha conhecimento da sua relação com os seus filhos, conhecendo com precisão a sua data de nascimento e os seus nomes e apelidos, nomeadamente. Por tudo isto, não podia ser razão suficiente o simples registo de nascimento da menina com a menção “pai incógnito”, por este se encontrar no momento do registo na condição de preventivo. O TEDH verificou, ainda, negligência no controlo do processo de adoção pela família adotante, pela forma muito rápida como esta adoção se processou e como acabou por ser confirmada a adoção plena da menina. Enfim, o TEDH registou a diligência do pai biológico em reaver a confiança dos seus cinco filhos, encetando os competentes processos judiciais, renovando as instâncias sempre que errara, recorrendo sempre que vencido, e merecendo, nomeadamente, apoio institucional. Nesta conformidade, os tribunais nacionais não ignoravam o vínculo do pai à filha, nem analisaram se, na verdade, o desenvolvimento desta estaria em perigo se fosse confiada ao pai. Para o TEDH o melhor interesse da criança não pode ser avaliado por meio de considerações genéricas, como fizeram os tribunais nacionais neste caso, mas a sua ponderação deve ser concreta. Tudo isto revelou falta de diligência e de cuidado das autoridades, as quais acabaram por ser as responsáveis da separação da filha do pai. O próprio tempo de duração da confiança da menina à família de adoção (de dezoito meses) não é, em si, justificação bastante, pois a menor era muito jovem e poderia adaptar-se ao regresso à confiança ao seu pai biológico.  Enfim, as autoridades judiciais russas não cuidaram de investigar cuidadosamente os contornos de como se passou a confiança e a adoção da menor pela sua família de adoção, o que prejudicou o reconhecimento da paternidade do pai e a entrega da sua filha a este, em violação do artigo 8.º § 1 da CEDH. Por todas estas razões se verificou a violação do artigo 8.º § 1 da CEDH.

O Acórdão foi adotado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos