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TEDH, 21 de julho de 2016, Foulon e Bouvet c. França

25 jul 2016

Contratos de gestação por outrem. Filhos dos pais biológicos que pretendem a transcrição dos assentos de nascimento. Vontade dos pais biológicos e dos filhos biológicos. Oposição a esta vontade com fundamento na escolha deliberada do progenitor de colocar uma criança assim como ele próprio fora da lei. Interesse superior da criança. Referência aos casos Mennesson e Labassee c. França. Direito à vida privada e familiar das crianças. CEDH, art.º 8.º , violação.

Didier Foulon, casado com Emilie Foulon e Philippe Bouvet em parceria registada com M [S], procuraram registar os assentos de nascimento na Índia dos seus filhos.

Em ambos os casos, o Ministério Público opôs-se à transcrição e ao registo em França dos assentos de nascimento indianos, alegando tratar-se de contratos de gestação por outrem, proibidos à luz da lei francesa e a cuja proibição, de ordem pública, nem sequer seria oponível o interesse superior da criança.

Em ambos os casos, os tribunais de primeira instância, fundamentando-se em que a ordem jurídica francesa não se pode opor ao reconhecimento da nacionalidade de um conjunto de cidadãos franceses, pelo nascimento e pelo sangue (os pais são biológicos), deu vencimento aos pedidos de Foulon (pai) e de Bouvet (pai), ordenando a transcrição no registo civil dos assentos de nascimento indianos dos seus filhos. O MP recorreu e, num dos casos, a Cour d’Appel entendeu que o progenitor, que escolheu deliberadamente colocar-se a si próprio e à criança fora da lei, não se pode valer dos direitos humanos, dos instrumentos de direito internacional, nem do interesse superior da criança para obter a transcrição do assento de nascimento indiano das crianças no registo francês.

Foram esgotados os demais recursos disponíveis, a Cour de Cassation manteve as decisões das Cour d’Appel, tendo agravado uma delas.

Correspondendo a um debate interno, entende o ordenamento jurídico francês que a questão é de tal modo de ordem pública que nem o superior interesse da criança é oponível à solução escolhida, apesar do TEDH ter registado uma evolução favorável à questão na jurisprudência da Cour de Cassation e do Conseil d’Etat desde os casos Mennesson (também objeto de notícia, a seu tempo, nesta página) e Labassee.

Ainda assim, a evolução não foi suficiente para corresponder, no plano dos interesses e dos direitos das crianças, ao fim almejado pelo artigo 8.º da CEDH, garantir o direito à vida privada e familiar, do modo mais pleno e mais amplo possível no espaço europeu.

Assim, e estes considerandos encontram-se no acórdão Mennesson, para o qual remete o presente acórdão, a ausência de um assento de nascimento redigido em francês, resultante da transcrição do assento (americano no caso de Mennesson) indiano, levantará uma suspeita sobre a condição de franceses das crianças, e a sua situação jurídica, de cada vez que venham a precisar de se valer destes documentos (por exemplo, uma inscrição na faculdade); não beneficiando da transcrição do assento, um dia poderão surgir dúvidas – apesar do desmentido formal das autoridades a este respeito – dúvidas sobre o seu direito a estar e permanecer em França. Em caso de falecimento de um dos progenitores inscritos no assento, ou de separação destes, haverá dificuldades na resolução das questões jurídicas e judiciais relativas às crianças (regime de guarda e de responsabilidades parentais ou direitos de sucessão, por exemplo). As crianças encontrar-se-iam, assim, se França persistir na solução que escolheu, numa situação de forte incerteza jurídica contrária ao seu desenvolvimento enquanto pessoas. Por fim, não deixa de ser verdade que existe um elo biológico entre os pais e os filhos, comprovável se necessário for, com testes de ADN. Privar os pais e os filhos deste laço, existente e por eles reconhecido e desejado, não faria sentido à luz da conceção da vida privada e familiar, predominante enquanto valor no espaço europeu, que é certamente aquela que a França também acolhe e é aquela que enforma o artigo 8.º da CEDH.

Na medida em que os progenitores encontram sempre alguma tutela no ordenamento nacional que não os priva dos seus direitos, não há, para o TEDH, violação do art.º 8.º da CEDH na sua esfera.

Mas existe, pelas razões apontadas, violação do artigo 8.º da CEDH, direito à vida privada e familiar, na esfera jurídica das crianças, dos filhos nascidos destes pais biológicos mediante um contrato de gestação por outrem.

Em execução de acórdão as autoridades nacionais irão certamente determinar a transcrição, no registo civil francês, dos assentos de nascimento indianos destas crianças.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira