Declarações de político turco. Genocídio arménio. Sua negação. Condenação pelo crime de negacionismo. Questões várias em torno da promoção do genocídio e da sua negação. CEDH, artigo 10.º Liberdade de expressão. Violação.
Perincek, um político e historiador turco, de um quadrante de extrema esquerda, que já sofreu prisão no seu país, veio a negar a existência do genocídio arménio de 1915, em três conferências proferidas na Suíça. Segundo ele, a acusação de genocídio imputável à Turquia foi obra de uma combinação de imperialismos políticos, norte-americano, europeu ocidental e russo, sob a determinação, quanto a este, do Imperador Nicolau. Os arménios teriam na realidade sido deslocados de um território para outro da Turquia, com a finalidade de os proteger de um conjunto de agressões vigentes no conflito mundial de 1914-18.
Veio a ser condenado, por aplicação do art.º 261.º, n.º 4 do Cód. penal suíço, pela prática do crime de negação de genocídio. A sua pena foi de noventa dias de multa, à razão de 100 CHF por dia, suspensa por dois anos, acrescida de uma multa de 3 000 CHF, ou, em alternativa, de trinta dias de prisão acrescidos de multa de 1000 CHF. Percorreu o circuito judicial suíço, esgotando todos os meios, sem resultado, e veio a queixar-se ao TEDH por violação do seu direito a não sofrer pena sem lei (art.º 7º da CEDH) e pelo seu direito a exprimir-se livremente (art.º 10.º § 2 CEDH).
No seu longo acórdão, o Tribunal Europeu apreciou detalhadamente a questão à luz do direito internacional, dos vários ordenamentos jurídicos europeus e das várias conceções relativas à liberdade admissível, por exemplo, no debate histórico.
O TEDH afastou a questão do art.º 7º da CEDH, pela simples verificação da existência do art.º 261.º do CP. Debruçando-se sobre o fim da medida, no sentido de saber se foi ou não legítimo, o TEDH concluiu que as intervenções, pouco numerosas, de Perincek não eram de natureza a perturbar a paz e a tranquilidade públicas. Mas a intervenção judicial justificou-se à luz da necessária proteção do interesse da comunidade arménia. Neste quadro de uma finalidade de intervenção legítima, o TEDH colocou a questão da sua necessidade. E equacionou várias formas de negacionismo. Considerando que a liberdade de expressão não abrange apenas o discurso consensual mas também a emissão de ideias que perturbam, chocam e preocupam, o TEDH distinguiu a intervenção de Perincek do discurso de ódio, punível por incitar ao ódio, do negacionismo nazi, punível porque existe a conceção, fundada, na Europa, de que o negacionismo nazi incita de qualquer modo – sempre – ao ódio, e por isso é sempre punível, e do debate histórico, em que intervenções que não sejam neutras, na medida em que incitem a alguma forma de ódio, devem ser punidas.
A dificuldade que o TEDH sentiu resulta do caráter muito amplo do art.º 261.º do CP suíço. Ou seja, pune qualquer forma de negacionismo e de revisionismo. Pelo que tanto estão cobertos o negacionismo dos crimes nazis como o negacionismo do genocídio arménio ou qualquer outro, como o dos kemeres vermelhos.
O TEDH acabou por entender que a decisão da justiça suíça não tinha sido obtida por via de um bom equilíbrio entre o direito à expressão livre de Perincek (art.º 10.º da CEDH) e o direito à dignidade do povo arménio (art.º 8.º, direito à vida privada), por considerar que o orador não exprimiu ódio ou desprezo para com os arménios, não incitou a qualquer ódio contra eles, não os estigmatizou nem sequer quando os qualificou como grupo, e por ter um historial longo de defesa diante do próprio TEDH, com várias queixas em que foi vencedor, no plano dos direitos humanos.
A solução dada pelo TEDH, que considerou, assim, haver violação, da parte da Suíça, do art.º 10.º da CEDH não foi pacífica. Nos seus votos concordantes e discordantes, vários juízes trazem uma luz nova ao acórdão. Para o juiz Nussberger, não existe da parte da Suíça uma violação substancial do art.º 10.º por ser difícil não reprovar o negacionismo, mas apenas uma violação processual, por as suas autoridades não terem sabido equilibrar o direito à livre expressão com o direito à dignidade arménia. Por outro lado, o TEDH socorreu-se de um critério de tempo e de distância geográfica para justificar a sua posição, que não é legítimo, pois um genocídio de há noventa anos não é menos atroz que um genocídio de há setenta, e por ter ocorrido longe do espaço europeu, na Turquia, não o faz menos condenável.
Para os juízes Spielmann, Casadevall, Berro, De Gaetano, Sicilianos, Silvis e Kuris, este argumento de espaço físico e temporal também não favorece o acórdão do TEDH. Mas há mais. O genocídio arménio foi mesmo um genocídio, pelo que o TEDH deveria tê-lo claramente assumido. Por outro lado, o tom do requerente, nos seus discursos, não foi de amizade para com os arménios. Para estes magistrados, houve insulto ao povo arménio da parte de Perincek. A suposta falta de consenso europeu na questão, que faz com que nem todos os Estados condenem o negacionismo, não afasta a noção comum de que se está, nalguns casos, perante genocídios, entre os quais o caso arménio. A justiça suíça terá equilibrado muito bem os direitos ao condenar Perincek.
E estes juízes vão mais longe. Num voto adicional socorrem-se do art.º 17.º da CEDH que proíbe o abuso de direito, no sentido de utilizar algum direito previsto na CEDH para proceder à sua destruição (uma cláusula que alguns constitucionalistas, por razões conhecidas, apelidam de cláusula de Weimar). E dizem que a queixa nem sequer deveria ter passado o crivo da admissibilidade, pois Perincek ao utilizar o direito à liberdade de expressão previsto pelo art.º 10.º da CEDH terá atentado contra a própria integridade da CEDH, colocando a em perigo. E assim, por abusar do direito de invocação de um dos artigos da CEDH, a queixa de Perincek nem sequer deveria ter sido admitida.
Autor: Paulo Marrecas Ferreira