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TEDH, 10 de novembro de 2016, Zlatkov Nikolov c. França

14 nov 2016

Zlatkov Nikolov foi investigado relativamente à sua participação numa rede de prostituição e de tráfico internacional de pessoas. Preso, foi condenado e cumpriu a sua pena. Queixou-se ao TEDH de não ter sido imediatamente presente a um juiz, de não ter beneficiado do registo áudio, vídeo, do seu primeiro interrogatório e de não ter havido recurso efetivo para pôr termo a, ou reparar, estas violações.  CEDH, art. 5.º par. 3, 6.º e 14.º¸ e 13.º; não violação.

Por meio da emissão de um mandado de detenção europeu, Zlatkov foi detido na Alemanha, entregue às autoridades francesas em Estrasburgo e presente ao juiz de instrução pouco mais de quatro dias após a prisão, pelo forte nevão que bloqueou parte da circulação rodoviária francesa.

Queixou-se por este facto, uma vez que a lei francesa impõe um período máximo de quatro dias para apresentação para primeiro interrogatório, alegando a violação do art.º 5.º par. 3 da CEDH que dispõe que o arguido deve ser apresentado no mais breve trecho a um juiz para validar ou invalidar a detenção.  Sobre este ponto, o TEDH entendeu que Zlatkov beneficiou de todas as garantias e que pelo facto de o nevão ter atrasado a presença de Zlatkov ao juiz de instrução, aparecendo como um caso de força maior, e o arguido tendo beneficiado da aplicação de um conjunto importante de disposições legais, não resultou violado o art.º 5.º par. 3 da CEDH.

Perante o juiz de instrução, porque a qualificação do crime de que era arguido se enquadrava na criminalidade grave, abrangendo o terrorismo, o tráfico de seres humanos e a criminalidade económica altamente organizada, Zlatkov não beneficiou das regras do Código de Processo Penal que impõem o registo áudio e vídeo do primeiro interrogatório perante o juiz de instrução. Esgotou os recursos internos e o Conseil d’Etat admitiu a sua queixa para declarar inconstitucionais para futuro, por violação do princípio da igualdade relativamente aos arguidos pelos demais crimes, as disposições do CPP que excetuavam do dever de registo áudio/vídeo o primeiro interrogatório judicial perante o juiz de instrução. Estas disposições foram revogadas (abrogées) para futuro, pelo que Zlatkov não beneficiou desta decisão do Conseil d’Etat.

O TEDH entendeu que não houve, apesar de tudo, aqui, violação do artigo 6.º par. 1 da CEDH combinado com o artigo 14.º, uma vez que Zlatkov evidenciou ter-se defendido no processo relativamente a todas as questões e que não lhe faltou nenhum elemento para poder contestar as posições dos diferentes magistrados que conduziram o seu processo.

Por fim, queixou-se da inefetividade dos meios de recurso quanto a este segundo ponto, porque de nada lhe valeu todo o seu trabalho de argumentação e o seu pedido não foi atendido. O TEDH entendeu que por ter beneficiado do mais amplo leque de garantias, apesar de hoje já não estarem em vigor as disposições que isentavam do registo áudio e vídeo nos casos de criminalidade muito grave, Zlatkov, mais uma vez, beneficiou de todas as garantias pelo que se queixou sem razão, tanto mais que não lhe causou um prejuízo significativo a falta de registo áudio e vídeo do seu primeiro interrogatório perante o juiz de instrução.

E é em torno deste critério, a ausência de prejuízo significativo, que se levantam as dificuldades no caso de Zlatkov.  Neste caso, uma vez que as opiniões separadas dos três juízes que as exprimiram concordam com a solução dada ao problema pelo acórdão, as dificuldades não são, no plano concreto, de gravidade.

Mas são de monta no plano dos princípios.  É que se o critério da ausência de prejuízo significativo foi, nas sucessivas reformas do mecanismo de queixa da CEDH, consagrado enquanto meio para aumentar a eficiência deste mecanismo no plano do tratamento e da decisão das queixas pelo TEDH, foi também consagrado nas mesmas sucessivas reformas, um importante contrapeso a este critério. Qualquer questão, mesmo que não importando um prejuízo significativo, deverá ser examinada se levantar uma questão importante de direitos humanos.  E aqui a questão importante de direitos humanos poderia ter emergido.  Sucedeu contudo que os outros casos em que esta diferenciação entre criminalidade grave e menos grave para o efeito da dispensa, por razões de eficiência e segurança, do registo áudio e vídeo do primeiro interrogatório perante o juiz de instrução, já estavam julgados.  E, no caso de Zlatkov, verificou-se que este beneficiou efetivamente de todas as garantias.  Sobre o futuro, foi o próprio Zlatkov que despoletou a resolução do problema: com a decisão do Conseil d’Etat, deixaram de vigorar as disposições controvertidas que poderiam levantar a questão fundamental de direitos humanos, a discriminação associada com o artigo 6.º da CEDH.   Ou seja, foi o Conseil d’Etat ele próprio que debateu a questão essencial de direitos humanos e a resolveu, não deixando neste ponto mais nenhuma questão essencial de direitos humanos por debater ao TEDH.

Foi por um fio. Desta vez o Acórdão do TEDH, como o dizem os próprios magistrados que levantam o véu sobre este problema, não sofreu nenhum deslize, mesmo quanto à questão essencial de direitos humanos.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira