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TEDH, 12 de abril de 2016, R.B. c. Hungria

18 abr 2016

Aldeia com minoria cigana importante. Marcha anti-ciganista. Demonstração de força com insultos. Mulher com crianças ameaçada. “Vamos construir a nossa casa com o teu sangue”. Manifestantes com bastões e chicote nas mãos.

Por altura de uma marcha de vários partidos de extrema direita numa aldeia com forte concentração da minoria cigana na Hungria, uma mulher que estava à porta de casa com os filhos e que não recolheu perante o slogan “ciganos, queremos-vos dentro das vossa casas”, foi insultada e ameaçada por manifestantes com bastões, um deles empunhando um chicote.

R.B. queixou-se, a polícia entretanto conseguiu afastar os manifestantes, tendo, à partida, os mais virulentos, sido afastados pelos seus próprios companheiros. No processo, apesar de várias insistências, o Ministério Público procurou arquivar a queixa-crime. Chegado o julgamento o juiz encerrou o caso por falta de prova apesar de alguns manifestantes terem sido identificados e de o Código penal húngaro prever o crime das injúrias racialmente motivadas.

No fim desta batalha judicial, que acabou por ser longa e penosa, R.B. queixou-se ao TEDH.

Os seus fundamentos foram a violação do art.º 3.º da CEDH (proibição da tortura) alegando que as ameaças de conteúdo discriminatório encerram maus tratos contrários a este artigo, verificando-se assim, segundo R.B., também a violação do art.º 14.º da CEDH (tortura, art.º 3.º, cometida com fundamento discriminatório, art.º 14.º); bem como a violação do artigo 8.º da CEDH, direito à vida privada e familiar, no sentido de que a tranquilidade a que tem direito na condução da sua vida foi perturbada por esta invasão racista, não impedida pelas autoridades.

O TEDH examinou a queixa e reconheceu que a discriminação quando orientada para uma minoria étnica é fundamento da violação do art.º 14.º da CEDH e do art.º 3.º. Ou seja, atingindo um certo patamar de gravidade e sendo tolerada ou não impedida pelas autoridades, é tortura. Assim o disse no caso da congregação das testemunhas de Jeová de Gldani c. Geórgia e em vários outros casos, sendo esta modalidade de maus tratamentos também reconhecida no plano das Nações Unidas, cujo Comité contra a Tortura investiga os Estados, no domínio desta prática, com fundamento em discriminação.

Aqui, no entanto, entendeu que a polícia esteve sempre por perto e que apesar das ameaças discriminatórias, na medida em que estas não chegaram a vias de facto (embora seja difícil afirmar que a voz e a demonstração mesmo sem ofensas corporais não sejam já vias de facto), acabou por não haver violação do art.º 3.º articulado com o art.º 14.º da CEDH.  Mas não analisou este ponto da queixa na substância, simplesmente eliminou-o, à partida, no domínio da admissibilidade. A queixa, foi assim, neste ponto, declarada inadmissível.

Já no domínio do artigo 8.º, o TEDH entendeu existir um direito à vida privada assente na etnicidade, na pertença a uma etnia determinada. Aí o discurso não foi nem prevenido nem punido porque o julgamento foi inefetivo tendo sido a falta de prova um meio para a justiça se exonerar do dever de julgar a seu cargo. Para o TEDH a inefetividade do julgamento que foi, para mais, permitida por uma investigação deficiente, corporizou, da parte da Hungria, uma violação do artigo 8.º da CEDH. De interesse é o obiter dictum, já muito próximo de ratio decidendi, segundo o qual o artigo 8.º, quando a relação litigiosa ocorre entre partes privadas (neste caso os manifestantes e as vítimas do discurso), tem relevo para o Estado, na medida em que este tem o dever de assegurar um desenvolvimento harmonioso e estável da vida privada de qualquer pessoa sujeita à sua jurisdição. A violação da vida privada não é assim, apenas relevante, quando esta violação acontece por um acto das autoridades. Verificou-se assim para o TEDH a violação do direito à vida privada e familiar, em razão da etnicidade, de R.B. e dos seus filhos.

Por fim, de interesse, é também o voto dissidente do juiz Wojtyczech.  Para este alto Magistrado a violação do artigo 3.º em articulação com o artigo 14.º não deveria ter sido afastada no plano da admissibilidade. O TEDH devia ter admitido a queixa, por fundada, e examiná-la quanto ao fundo. Aí se teria verificado a existência de uma grave discriminação racial, tolerada pelas autoridades, que apenas garantiram que não se chegasse à violência física mas que não impediram o discurso discriminatório, o que seria atestado pelo facto de o juiz do fundo ter arquivado o processo por falta de prova, como meio de poder não exercer a justiça, como o acórdão o verificou. Esta situação aproximaria o caso sub judice do caso da comunidade de Gldani. Segundo este juiz o facto de o TEDH ter enquadrado a questão no artigo 8.º, alarga indesejavelmente o âmbito desta disposição. No plano da jurisprudência internacional, o artigo 8.º deveria ser interpretado de modo a abranger unicamente o direito ao segredo e à intimidade e o direito a ter um desenvolvimento são, garantido pelas autoridades.

A situação sub judice, na opinião do juiz Wojtyczech deveria ter sido, assim, examinada no quadro dos artigos 3.º e 14.º (não discriminação associada à tortura) deixando à noção de vida privada e familiar o seu particularismo associado à vida pessoal, íntima, de alguém, ou à vida de uma família.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira