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TEDH, 12 de maio de 2017, Simeonovi c. Bulgária.

15 maio 2017

Assalto violento a casa de câmbios. Morte de dois empregados mediante disparos de arma de fogo. Roubo de avultada quantia de dinheiro. Prisão e condenação do arguido. Deficientes condições materiais de detenção. CEDH, art.º 3.º, violação. A questão de saber, em relação com a inicial prisão, se o processo foi equitativo e justo. CEDH, art.º 6.º pars. 1 e 3c) não violação.

Simeonovi envolveu-se com uma mulher que trabalhava numa casa de câmbios em Burgas, na Bulgária. Esta veio a deixá-lo por se ter envolvido com um colega, que também trabalhava nesta agência. Simeonovi contratou um co-agente e assaltaram a casa de câmbios. Este último tinha obtido uma arma de fogo e disparou sobre dois funcionários da empresa que morreram sob os tiros. Estes factos ocorreram em Julho de 1999.

Simeonovi foi detido e, depois, preso em Outubro de 1999, tendo permanecido três dias incomunicado na esquadra de polícia. Pediu a representação de um advogado que lhe foi concedida ao fim destes três dias e prestou a seguir os seus depoimentos e confissões no primeiro interrogatório, na presença da polícia.

Queixou-se de sofrer maus tratos em detenção e de ter sido condenado em pena de prisão perpétua. Queixou-se ainda de que o seu processo penal, que culminou com a sua condenação, teria sido não equitativo, em violação do artigo 6.º pars. 1 e 3 c) da CEDH, nomeadamente porque não foi assistido desde a primeira hora por um advogado, tendo permanecido três dias incomunicado, quando a lei búlgara determina o direito a advogado, a cumprir em simultâneo ao ato de detenção e prisão, a pedido do suspeito/arguido.

A primeira instância condenou-o em pena de prisão perpétua e Simeonovi não obteve a modificação da sua condenação, em segunda instância. Queixou-se ao TEDH, que, em Seção, considerou que a Bulgária violou o art.º 3.º da CEDH (proibição da tortura) quanto às condições materiais de detenção que lhe foram infligidas, mas que não considerou a questão da duração perpétua da pena de prisão, e considerou não existir a violação do art.º 6.º pars. 1 e 3 c) da CEDH, por o processo penal, apesar de certas deficiências ter sido globalmente equitativo e justo.

Simeonovi pediu então o reenvio do caso à Grande Chambre do TEDH, como lho permitem a CEDH e o Regulamento de processo.  Voltou a pedir a apreciação pela GC da questão da sua condenação em pena perpétua.

A Grande Chambre entendeu ser o caso merecedor da sua atenção e aceitou o reenvio. Decidindo sobre o alargamento da sua competência pedido por Simeonovi, em relação à duração, perpétua, da sua condenação, entendeu que a Seção, ao rejeitar esta parte do pedido, delimitou a competência da GC de modo não alterável por esta.  Destarte, não admitiu a questão do exame das penas de duração perpétua, à luz da CEDH, que as aceita dentro de certas condições, como aceita, para os Estados que não ratificaram o Protocolo n.º 6, a manutenção, dentro das condições de ética e de legitimidade democráticas, que ela própria define, da pena de morte.

Considerando o pedido, deixou a questão da detenção incomunicado por três dias para o momento do exame da equidade do processo à luz do artigo 6.º da CEDH. E debruçou-se sobre o art.º 3.º da CEDH, para concluir que, face aliás às observações do CPT do CoE, pelas condições materiais de detenção a que Simeonovi foi e está sujeito, com relação com a duração longa da sua pena, se verifica uma violação do art.º 3.º da CEDH, proibição da tortura ou penas e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Simeonovi tem, com efeito, ainda está em cumprimento de pena, vivido em celas sobrelotadas, com pouco espaço de vida por recluso, com pouca ventilação, sem acesso, muitas vezes, a um pátio, com pouca luz natural, por vezes apenas filtrada por claraboias das portas das celas.

Quanto ao artigo 6.º pars. 1 e 3 c) entendeu que, apesar de certas deficiências como a manutenção do recluso incomunicado por três dias quando não existiam razões compulsórias para esta incomunicabilidade e como a não informação ao preso de que podia pedir, a partir do momento da sua detenção, a assistência de um advogado segundo a lei búlgara, o processo terá sido geralmente equitativo e justo, nomeadamente porque o primeiro interrogatório policial registado apenas teve lugar na presença do advogado de Simeonovi e que terá sido neste quadro que ele confessou vários dos elementos do crime porque foi investigado e condenado. Não houve, assim, para o TEDH a violação do art.º 6.º pars. 1 e 3 c) da CEDH, neste caso.

Dos dezassete juízes que formam o Pleno que compõe a Grande Chambre, cinco, uma minoria, apesar de tudo algo significativa, não concordam.

Para os juízes Sajó, Lazarova-Trajovska, Vucinic e Turkovic e para o juiz Serghides, o pomo da discórdia está na interpretação dos critérios que o TEDH desenvolveu na sua jurisprudência relativa ao processo equitativo e ao direito à representação por advogado.

Estes juízes notam que a Seção reconheceu que houve um interrogatório informal nos três dias da detenção incomunicado, que não mereceu aliás qualquer registo da parte da polícia, a não ser do dia e da hora da detenção, que o arguido sustentou ter existido, juntamente com o seu advogado e que constituiu o cerne da sua posição judicial diante do TEDH em relação ao argumento da violação do artigo 6.º pars. 1 e 3 c). Ora a GC ignorou pura e simplesmente este aspeto, para considerar que por o primeiro interrogatório policial registado ter decorrido em presença do advogado e apesar de ter reconhecido alguma negligência da parte da polícia em não informar Simeonovic de que, segundo a lei búlgara podia pedir e obter imediatamente a representação por advogado, e por o demais processo ter corrido os seus termos com o exercício pela defesa dos seus vários direitos, como o de recurso, o processo de que foi alvo Simeonovic e que culminou com a sua condenação, foi equitativo e justo.

Um dos problemas para estes magistrados está em que ao colocar-se nesta posição, a GC contraria o seu próprio critério de prova. Assim sustenta sempre e, mais uma vez o fez no presente acórdão, que o seu método de prova assenta no princípio da demonstração além de toda a dúvida razoável, para a parte que está onerada com o encargo de provar, o Estado, uma vez que foi quem deteve e prendeu e condenou, e que conta com meios probatórios que não estão à disposição de um queixoso, o qual apenas tem de dar um princípio de prova de que o seu caso é sustentável, trazendo uma prova prima-facie. Ora, ao ignorar o momento de detenção incomunicado, como se ele não tivesse existido, e apesar do reconhecimento pela Seção de que terá existido um interrogatório policial informal sem acompanhamento por advogado nestes primeiros três dias, a GC acaba por onerar o próprio arguido, que normalmente apenas deveria demonstrar a existência de um problema por resolver, trazer um começo de prova; com a prova para além de toda a dúvida razoável de que o interrogatório informal (que não mereceu o exame da GC) aconteceu nos três dias da sua detenção incomunicado. Ora, independentemente do bem fundado nos ordenamentos internos do sistema de prova que repousa na asserção segundo a qual é ao alegante que compete fazer a prova toda (affirmanti incumbit probatio), em consideração da parte vulnerável que é sempre um queixoso a bater-se contra um aparelho de Estado equipado, e dotado de poderosos meios, nomeadamente de prova, o TEDH optou assumidamente pelo sistema da prova anglo-saxónico, da prova beyond any reasonable doubt, para além de toda a dúvida razoável, a cargo do Estado. Ao ignorar os três dias de detenção incomunicado do arguido e a possibilidade registada no acórdão da Seção de ter havido um interrogatório informal sem a presença do advogado, para não considerar a questão da violação do direito a um processo equitativo, o TEDH procedeu a uma perigosa inversão, para os seus parâmetros de entidade judiciária supranacional, dos seus critérios relativos ao ónus da prova.

 

por: Paulo Marrecas Ferreira