Simp

Está aqui

TEDH, 13 de abril de 2017, Primeira Secção, Tagayeva c. Rússia

5 maio 2017

Ano de 2004. Contexto de ataques terroristas na Rússia. Ocupação por terroristas do Liceu de Beslan, na Ossétia do Norte, de 1 a 4 de Setembro. Resolução do problema da parte das autoridades russas. CEDH, artigo 2.º, direito à vida, substancial e processual, violação. Planeamento e controlo da operação, e uso de força letal além do necessário, violação. Artigo 13.º, direito a um recurso efetivo em relação à conduta das autoridades, não violação.

O Cáucaso do Norte vem sendo regularmente alvo de ataques terroristas da parte de elementos que não se conformam com o não acesso à independência dos seus Estados respetivos, sendo expoente máximo deste descontentamento, a situação na Chechénia. Assim vem sucedendo desde os anos 90, tendo o ano de 2004 sido particularmente rico em acontecimentos, com, nomeadamente a tomada em refém de um teatro em Moscovo e o assalto ao Liceu de Beslan, na Ossétia do Norte. É a este ataque e à situação das suas vítimas que se reporta o presente acórdão.

Em 1 de Setembro de 2004, a Escola de Beslan celebrava o Dia do Conhecimento, que marcava também o início do ano letivo. 1 200 pessoas assistiam e tomavam parte na cerimónia, nomeadamente pais de alunos e os seus filhos. Cerca de 32 homens armados cercaram os celebrantes, pouco depois das 9.00, obrigando-os a concentrarem-se no interior do liceu que fecharam, centrando-os no respetivo ginásio. Cercaram o ginásio com uma rede de explosivos e duas mulheres terroristas, vestindo cintas de explosivos, colocaram-se no meio dos reféns. Foi entretanto comunicado o envenenamento da água, forçando-se as vítimas a beberem a própria urina, obrigando-as a manterem-se numa posição sentada desconfortável, e tendo-se separado alguns idosos do conjunto dos reféns. Muitos homens foram forçados a colaborar com os agressores na colocação dos engenhos explosivos, vindo a ser por estes executados de seguida.

Após um início de negociação, cerca de 29 crianças foram colocadas em liberdade.

A escola foi entretanto cercada por forças militares e de polícia russas que contavam com tanques de guerra e lança-chamas. Na manhã de 3 de Setembro três explosões ocorreram no Ginásio da escola, queimando gravemente alguns dos reféns e matando algumas pessoas, entre terroristas e vítimas. Não se sabe ao certo se estas explosões se ficaram a dever à ação dos terroristas ou das autoridades russas.

Alguns reféns fugiram pelas brechas abertas no edifício, tendo os terroristas disparado sobre eles.

O general Andreiev, que comandava as operações, ordenou a invasão e a tomada do edifício. Foram disparados os canhões dos tanques e acionados os lança-chamas. Os explosivos do Ginásio rebentaram, ferindo mais reféns, mas tornando possível a fuga de outros. Alguns reféns foram levados para a cantina do estabelecimento, onde permaneceram sob sequestro. Estes reféns, cujo número se aproximava de 300 pessoas foram obrigados a colocar-se nas janelas do edifício onde foram alvejados por disparos das forças da ordem. Entre eles contavam-se crianças e mulheres. No final, os tanques penetraram no pátio da escola, disparando os seus canhões. Seguiu-se um incêndio generalizado, não tendo havido sobreviventes. Dos terroristas, apenas um escapou com vida.

Em 4 de Setembro, o Presidente Putin visitou Beslan. Fez-se uma contagem e a identificação sumária dos corpos a que foi possível proceder-se, procedeu-se à limpeza do local e a ordem regressou a Beslan.

As vítimas iniciaram então um longo percurso de queixas e reclamações de natureza penal, administrativa e civil.  O único terrorista sobrevivo, Kurlaiyev, veio a ser condenado em pena de prisão perpétua. Shamil Basayev, um independentista Checheno, terá sido a cabeça do ataque de Beslan. Não estava no lugar no momento dos acontecimentos. Veio a morrer, em 2006, numa explosão alegadamente conduzida pelas forças de segurança russas. No domínio dos acontecimentos de Beslan, intentou-se um processo contra a polícia local que poderia eventualmente ter prevenido o ataque, mas sem êxito. Um relatório das autoridades concluiu que estas tinham sido perfeitas em todos os elementos da sua intervenção, nomeadamente, na poupança de vidas humanas, com exceção da prevenção em que reconheceram ter falhado. Este relatório, contudo, veio a ser invalidado por um tribunal de Vladikavkaz. Mas nem por isso as queixas das vítimas foram atendidas, sendo certo que alguns processos não se encontram ainda hoje encerrados. O processo da tomada de reféns, conduzido contra os terroristas era formado, em 2012, por 235 volumes de 200 a 350 páginas cada.

Vários grupos de queixosos vieram a formar-se entre 2007 e 2011, queixando-se da atuação da Rússia nestes acontecimentos de Beslan. O TEDH identificou as queixas e apensou-as, descrevendo o seu conteúdo e autores no anexo contendo a lista dos queixosos.

Os queixosos queixaram-se da violação do seu direito à vida (art.º 2.º da CEDH) nas vertentes substancial e processual, e da falta de acesso ao processo penal contra os tomadores de reféns. Queixaram-se ainda de não possuírem qualquer meio de recurso contra a inércia das autoridades, de acordo com o artigo 13.º da CEDH.

Depois de numerosas páginas contendo a descrição dos factos e o conjunto de eventos, nomeadamente processuais, que rodearam estes casos internamente, o TEDH concedeu o estatuto de vítima aos sucessores das vítimas falecidas, e entendeu que as autoridades russas tinham tido a possibilidade de impedir o trágico evento da escola de Beslan. Conheciam a situação no Cáucaso do Norte, possuíam a informação dos movimentos de grupos armados pelas estradas e caminhos da região e, apesar de um controlo infrutífero por um polícia sobre um carro dos terroristas, em que o polícia veio a ser privado da sua arma e deixado na estrada, resolveram responder pela inercia à atividade dos terroristas. Entendeu aqui o TEDH que o direito à vida implica a obrigação positiva de proteger a vida das possíveis vítimas pelo que a Rússia devia ter envidado todos os esforços para prevenir esta agressão, o que não fez. Houve assim, uma violação substancial do direito à vida na pessoa de cada uma das vítimas do ataque de Beslan. Na medida também em que a investigação não foi efetiva, que houve pouco trabalho de perícia médico-legal sobre as vítimas e que as próprias autoridades se confessaram ultrapassadas pelo elevado número de vítimas cujos processos deviam tratar, verificou-se a violação do art.º 2.º da CEDH, na sua vertente processual, na pessoa de cada uma das vítimas. Ainda quanto ao artigo 2.º, na medida em que as autoridades não mostraram o receio da perda de vidas inocentes ao conduzirem as operações de combate ao terrorismo, que acabaram por ser mais operações de manutenção da ordem, do que de salvamento das vítimas e assistência a estas, verificou-se mais uma violação do direito das vítimas à vida. E, sempre no domínio do direito à vida, o TEDH conduziu uma análise muito fina e muito exigente do critério da absoluta necessidade do uso da força, imposto pelo n.º 2 do artigo 2.º, para concluir que o emprego da força letal pelo Estado foi para além da necessidade absoluta, não se tendo limitado a esta nas operações de reposição da ordem. Houve, assim, mais uma violação do direito à vida dos reféns por esta não proporção da conduta das autoridades no seu uso da força.

Mas desiludiu, como o salienta muito bem o juiz Paulo Pinto de Albuquerque, na sua opinião parcialmente dissidente, ao decidir que não se verificou a violação do artigo 13.º da CEDH, entendendo que, porque várias entidades como a própria Duma Russa se pronunciaram sobre o processo em curso, este teria suficientemente chamado a atenção das autoridades e, por isso, entendeu não ter havido violação do artigo 13.º da CEDH, direito a um recurso efetivo… da inação das autoridades. O certo é que alguns processos ainda hoje correm e que os particulares, vítimas, não conseguiram exprimir com alguma possibilidade de sucesso a sua posição nestes processos. 

 

por: Paulo Marrrecas Ferreira