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TEDH, 13 de dezembro de 2016, Paposhvili c. Bélgica.

2 jan 2017

Imigrante sofrendo de doença grave que coloca em perigo a própria vida. A questão de saber se o padecimento de doença grave é fundamento de não expulsão à luz do art.º 3.º da CEDH, proibição da tortura ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Acórdão em sentido negativo da Seção. Mudança de jurisprudência no plano da Grande Chambre. O art.º 3.º da CEDH bem como o art.º 8.º da CEDH teriam sido violados se Paposhvili tivesse sido expulso da Bélgica. 

Paposhvili entrou com a mulher e um filho, na Bélgica, no virar do milénio, e cometeu uma série de crimes, alguns de gravidade neste país. As autoridades belgas, em consequência, no quadro do cumprimento das penas a que ia sendo condenado, entendiam que Paposhvili devia ser expulso da Bélgica. Este veio a estar, entretanto, gravemente doente, sofrendo de leucemia e de tuberculose, tendo ainda padecido de um acidente vascular cerebral. Enquanto o seu estado de saúde não fosse estabilizado, as autoridades entendiam que o deviam tratar e apenas efetuar um último exame médico antes da expulsão para confirmar se ele podia ser expulso num quadro clínico estabilizado. Na opinião concordante do juiz Lemmens, anexa ao acórdão da Grande Chambre, esta posição das autoridades que o Conseil d’Etat belga retomou para justificar a decisão de expulsão, entretanto ocorrida mas nunca concretizada, foi a questão que o Estado colocou indiretamente ao TEDH, na sequência da queixa  de Paposhvili, para obter dele resposta.

O quadro clínico de Paposhvili era de gravidade. Sofria de leucemia, teve um AVC que lhe paralisou o braço esquerdo e contraiu uma tuberculose que foi evoluindo rapidamente. As autoridades, desejosas de o expulsar, nunca o fizeram, apesar das decisões judiciais internas, precisamente por causa desse quadro patológico intenso, de evolução rápida que não conseguia estabilizar. Mas as decisões judiciais sedimentaram-se na afirmação de que, assim que o estado de saúde de Paposhvili estabilizasse, este seria deportado para a Geórgia, seu país de origem. E foi destas decisões que Paposhvili apresentou queixa, assentando em dois argumentos. A sua expulsão seria contrária ao artigo 3.º da CEDH, uma vez que colocaria a sua vida em perigo, por ele estar gravemente doente e não haver a certeza de que na Geórgia existiria um tratamento igual em qualidade; e seria contrária ao artigo 8.º da CEDH, porque as autoridades aceitaram que a mulher e os dois filhos poderiam ficar na Bélgica por reunirem os pressupostos das leis de imigração. A separação da família quebraria a reunificação familiar e haveria assim lugar à violação do artigo 8.º da CEDH, direito ao respeito da vida privada e familiar de Paposhvili.

Paposhvili perdeu na Seção do TEDH e faleceu na primavera de 2016. A família, cuja legitimidade para prosseguir a queixa foi aceite pelo TEDH, recorreu para a Grande Chambre.

Em Seção, o Tribunal seguira a sua jurisprudência habitual.  Excetuados casos extremos a saúde débil não era, regra geral, fundamento de oposição à expulsão, sendo inexigível dos Estados que estes assumissem todos os cuidados de saúde de que carecesse um imigrante ou um refugiado, ou até uma pessoa a entregar ou a extraditar que estivesse doente. Como as autoridades belgas aguardavam que a saúde de Paposhvili, mediante os tratamentos que ia recebendo, estabilizasse, não era exigível do Estado a não expulsão de mesmo, que tinha pelo seu comportamento com relevância penal, perdido os seus direitos à luz das regras da imigração, e por isso, não haveria violação do artigo 3.º nem do artigo 8.º da CEDH.

O Centro de direitos humanos da Universidade de Ghent, terceiro interveniente neste processo, entendeu que esta posição do TEDH, já consolidada em jurisprudência anterior, que só aceitava a não expulsão em casos extremos, era de uma grande insensibilidade, na medida em que seria necessário, previamente à expulsão, avaliar se o Estado de destino do expulsando tinha condições de o acolher, o que nem sempre é o caso. Ora verifica-se que no quadro das patologias de que Paposhvili sofria, não era seguro, apesar das garantias prestadas pela Geórgia, também terceiro interveniente, que este Estado possuísse as estruturas e os meios capazes de continuar com estabilidade, os tratamentos de Paposhvili. Aqui, muito claramente, para este Centro de direitos humanos, a posição do TEDH era muito dura, pautada até por uma certa pobreza, uma certa secura.

O certo é que Paposhvili veio a falecer no quadro do processo de queixa perante o TEDH. E que, segundo a jurisprudência consolidada deste Alto Tribunal, a família tinha legitimidade para prosseguir a queixa. E fê-lo, pedindo a constituição na qualidade de vítima e o reenvio do caso à Grande Chambre.

A Grande Chambre não foi, desta vez, insensível ao problema, operando claramente a uma modificação na sua anterior jurisprudência já consolidada nesta questão, dizendo, ela própria, que é necessário reequacionar o problema (é interessante, a este respeito a articulação, nomeadamente, dos parágrafos 181, 182 e 191, 192 e 193), e falando, a própria Grande Chambre, na necessidade de rever a sua posição anterior. E, no final de um percurso de raciocínio interessante, esta formação de recurso concluiu que o artigo 3.º da CEDH, proibindo a expulsão de estrangeiros com fundamento no perigo de estes serem submetidos a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes no país de destino, não limita estes tratamentos cruéis ou desumanos a práticas policiais ou judiciais ou de natureza política, ou de envolvente de (in)segurança (que torna as pessoas merecedoras de proteção internacional, segundo a jurisprudência do TEDH), mas compreende as condições de saúde e a suscetibilidade que o expulsando tem de receber, ou não, os tratamentos adequados ao seu estado clínico. E o TEDH avança, numa posição deveras inovadora, afirmando que não compete ao Estado destinatário (neste caso a Geórgia) prestar a garantia de que o paciente será bem tratado, mas ao Estado que procede à expulsão certificar-se que a pessoa que expulsa para um determinado país receberá um tratamento adequado à sua condição de saúde.

Assistimos com este importante acórdão a uma inversão da jurisprudência do TEDH que consiste num alargamento significativo do âmbito de aplicação do art.º 3.º da CEDH às condições de saúde do expulsando e à suscetibilidade deste receber um tratamento adequado no país de destino. Suscetibilidade que deve ser avaliada com cuidado pelo Estado que procede à expulsão.

Concluiu a Grande Chambre dizendo que se Paposhvili houvesse sido expulso (o que não aconteceu), a Bélgica violaria o art.º 3.º da CEDH ao colocar a sua vida em perigo, em razão do seu estado de saúde frágil.  E que, uma vez que a mulher e os filhos podiam permanecer na Bélgica, o artigo 8.º da CEDH, direito ao respeito da vida privada e familiar de Paposhvili seria violado, uma vez que este seria separado da mulher e dos filhos, não tendo já mais familiares na Geórgia. 

 

por: Paulo Marrecas Ferreira