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TEDH, 14 de fevereiro de 2017, Maslova c. Rússia..

20 fev 2017

Detenção de pessoa na via pública por agentes da polícia. Transporte em veículo da autoridade. Chegada do detido à esquadra sem possibilidade de locomoção. Morte na esquadra após cinco horas estendido sem socorro.

Em 2005, Liamov foi interpelado por um agente da autoridade, P., em Aksavo, na região de Orenburgo. Foi transportado, depois de aí ter entrado pelo próprio pé, em veículo da polícia até à esquadra local. Não pôde sair do carro e teve de ser transportado para o interior da esquadra onde foi estendido no chão. Veio a falecer ao fim de cinco horas. A ambulância que havia sido chamada chegou depois do óbito, o qual foi verificado por pessoal médico.

A irmã de Liamov, Maslova, iniciou um conjunto de diligências para apurar o que se passara e de obter alguma reparação para além da condenação e punição dos responsáveis. Foi esgotando os recursos com decisões de primeira instância por vezes favoráveis, regularmente revogadas em sede de recurso e mandadas baixar para nova apreciação dos factos. No final, conseguiu obter o apuramento de que P., no interior do veículo que conduzia Liamov à esquadra, abusou do seu poder e produziu maus tratos de gravidade sobre aquele. Mas P., tendo um passado exemplar enquanto polícia, nunca foi reconhecido culpado do homicídio de Liamov.

Apurou-se, quanto a este que para além de múltiplos ferimentos, nomeadamente na região das pernas, tinha sofrido em vida, uma torsão da cabeça para o lado esquerdo, seguida de uma brusca flexão no sentido da nuca, para detrás do corpo.  Esta prática, conhecida dos serviços médicos que operam com forças de segurança, é de natureza apta a provocar a morte entre uma hora e uma hora e meia após o seu exercício sobre a vítima, a qual foi depositada sem possibilidade de se movimentar no chão da esquadra e veio a falecer enquanto esperava por uma ambulância tardiamente chamada. O apuramento da morte foi feito por serviços das autoridades de medicina russos.

P. veio a ser condenado em três anos de prisão efetiva pelos ferimentos que causou a Liamov mas não pelo seu homicídio. E a administração tributária russa foi condenada a pagar uma indemnização a Maslova pelos maus tratos que a administração causou a Liamov (não, contudo, pela morte deste).

Maslova não se conformou e queixou-se ao TEDH que julgou a queixa admissível apesar da oposição da Federação Russa.  Para o TEDH, as autoridades russas reconheceram o seu próprio excesso no tratamento dado a Liamov, uma vez que P. foi condenado em pena de prisão efetiva e que Maslova obteve uma indemnização. Significa que as próprias autoridades nacionais a julgaram ter a qualidade de vítima. Além do mais, para o TEDH, a indemnização concedida a Maslova não foi uma indemnização pela morte, nem quanto ao seu estatuto, por não ter sido reconhecida como tal pela Federação Russa, nem quanto ao seu montante, de valor relativamente reduzido.  Uma vez que o reconhecimento dos maus tratos não se estendeu à morte de Liamov e que a reparação não considerou a morte, nem quanto ao seu montante (para as autoridades a morte de Liamov não lhes era imputável e por isso o quantum indemnizatório atribuído foi baixo); Maslova continuava, ao queixar-se, a possuir a qualidade de vítima. A sua queixa foi, assim, aceite pelo TEDH.

Este analisou a queixa, quanto ao fundo, sob o ângulo do direito à vida e da proibição de tortura e maus tratos ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, nas suas vertentes materiais, e processuais e não procedeu a mais nenhum exame jurídico da causa, nomeadamente não examinou a questão da privação injustificada de liberdade que Maslova também colocou invocando a violação do artigo 5.º par. 1 da CEDH, por a entender consumada pelas anteriores verificações.

E concluiu que, atendendo a que Liamov entrou são no veículo da polícia e saiu morto da esquadra, impendia sobre as autoridades russas um ónus, o de desfazerem a dúvida relativa a maus tratos por cuja prática eram suscetíveis de ser condenadas. Observou que as autoridades concluíram pela culpa de P. no tocante aos maus tratos que não a morte, mas como a morte veio entretanto a ocorrer, a Rússia foi condenada pela violação do artigo 2.º da CEDH na sua dimensão material (direito à vida).  Também foi condenada pela violação do artigo 3.º da CEDH (tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes), na sua vertente material, uma vez que Liamov, foi efetivamente torturado no veículo de polícia. Este ponto acaba por ser pacífico entre a própria Rússia que condenou o agente da autoridade, P., e o TEDH, o Governo Russo defendeu-se alegando a reparação entretanto ocorrida, mas para o TEDH venceu, por unanimidade, a tese do cometimento de atos de tortura não reparados.

Uma vez que a Federação Russa não reconheceu a violação do direito à vida de P., o inquérito que conduziu sobre a morte deste não foi efetivo.  Tanto mais que impendia sobre este Estado o ónus de demonstrar que em nenhuma caso esta morte era da sua responsabilidade. Houve assim, para o TEDH, também aqui, a violação do direito à vida de Liamov na sua vertente material, uma vez que não foram profundamente apuradas as circunstâncias nem a responsabilidade concreta de alguém na morte de Liamov.

Já, quanto ao art.º 3.º da CEDH, não se verificou a sua violação no domínio processual, uma vez que P. foi condenado pelos maus tratos que  infligiu a Liamov, em pena efetiva de três anos de prisão. O TEDH verificou, quanto a este ponto, que existiu uma investigação relativa aos maus tratos que sofreu Liamov e que esta chegou ao resultado de que P. foi o responsável pelos atos de tortura praticados sobre aquele.

Quanto ao artigo 13.º também invocado, uma vez que o TEDH se debruçou sobre as violações processuais dos artigos 2.º e 3.º, esgotou a  questão da efetividade das investigações. Neste sentido, já não era necessário proceder ao exame da efetividade sob o ângulo do art.º 13.º, o que o TEDH não fez. Sobre a privação injustificada de liberdade, o TEDH entendeu que não era necessário pronunciar-se sobre esta, uma vez que o exame das violações materiais e processuais dos art.ºs 2.º (direito à vida) e 3.º (proibição da tortura) a consumava. 

 

por: Paulo Marrecas Ferreira