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TEDH, 15 de dezembro de 2015. Bono c. França

21 dez 2015

Processo penal relativo a suspeito de terrorismo. Carta rogatória pedindo o interrogatório do arguido pelas autoridades sírias. Atos de tortura. Desentranhamento, dos autos, de peça processual. Críticas de advogado feitas dentro do espaço do tribunal. Aplicação de sanção disciplinar. Inexistência de críticas ad hominem. CEDH, art.º 10.º, violação. 

Bono, advogado, representou S.A. suspeito e arguido de práticas de terrorismo.  Este, em fuga, foi detido pelas autoridades sírias no ano de 2004. A justiça francesa seguindo a evolução dos acontecimentos, fez deslocar um magistrado à Síria para acompanhar a execução de uma carta rogatória na qual foi rogado o interrogatório de S.A.

Ficou patente o facto de que S.A. foi torturado para obtenção do seu depoimento. O magistrado francês não foi autorizado a assistir ao seu interrogatório. Mediante alegações de Bono, e o próprio conhecimento da parte das autoridades judiciais da situação, as peças processuais obtidas,  viciadas pela prática de atos de tortura, nomeadamente o interrogatório em execução da carta rogatória, foram retiradas do processo, tendo sido declaradas nulas pelo tribunal francês no momento do julgamento de S.A., entretanto entregue às autoridades francesas.

Bono comentou a utilização da carta rogatória para o interrogatório do arguido, a qual não deveria ter sido utilizada face à notoriedade da prática de tortura da parte das autoridades sírias. E disse que a tortura era tão flagrante nesse país que empregar uma carta rogatória equivalia a ser conivente com a prática da tortura. Referiu-se aos magistrados em geral e, exprimindo indignação, não manifestou ódio relativamente a nenhum deles em particular, não proferindo, assim, declarações ad hominem.

A Cour d’Appel, em que o processo culminou, manifestou prudência e não tomou posição sobre as declarações de Bono. Já terminado o processo, o magistrado do ministério público junto da Cour d’Appel, requereu ao Conselho de disciplina da Ordem dos advogados de Paris, a aplicação de uma sanção por desrespeito ao tribunal e ofensa à integridade da justiça. No termo de um processo disciplinar, cujo julgamento final competia à Cour d’Appel, esta veio a condenar Bono na sanção disciplinar pedida, apesar do representante do Bastonário da Ordem ter apresentado alegações em que sustentava que Bono não tinha violado a lei francesa relativa à liberdade de expressão, em particular diante dos tribunais, consagrada, nomeadamente em diploma de 1881.

Bono queixou-se ao TEDH, sentindo-se ele próprio vexado pela forma como o tratara a justiça francesa.

O TEDH examinou cuidadosamente o caso e socorreu-se dos critérios desenvolvidos nomeadamente no caso Morice c. França (também objeto de notícia nesta página) em que, para uma situação mais grave, envolvendo a crítica na imprensa a uma magistrada por esta não praticar o registo de provas, fazendo perigar a concretização de um julgamento num caso particularmente sensível, o TEDH tinha considerado estar a França em violação do direito à liberdade de expressão consagrado no art.º 10.º da CEDH por ter aplicado uma sanção não proporcional a um advogado, legitimado por uma situação judicial de gravidade e pelo seu direito à expressão de ideias que chocam, perturbam e inquietam.

Aqui, a situação é muito mais ténue. Bono não proferiu críticas dirigidas a uma pessoa em concreto (ad hominem), não publicou ou difundiu nenhuma mensagem relativa ao assunto, na imprensa, ficando limitado ao espaço físico do tribunal. Comentou uma situação processual que veio, de resto, a ser reconhecida pelos tribunais, que consideraram a prova criticada nula e retiraram-na do processo, pelo que se pode entender que as declarações de Bono eram de natureza técnica, associadas ao desenrolar do processo, tanto mais que tendo sido limitadas ao espaço da audiência, o público em geral não teve conhecimento delas. Por fim, o TEDH registou a prudência dos juízes da Cour d’Appel, que não se movimentaram em reação às declarações do advogado.

Intervindo já na fase final do processo, as autoridades, impulsionadas pelo procurador naquele tribunal, agiram ex post facto relativamente às declarações do advogado as quais apreciaram algum tempo depois deste as ter proferido. Ora esta apreciação, a frio, eventualmente sem um registo exato das declarações, tem para o TEDH um efeito inibidor da função do advogado, a quem deve poder assistir a possibilidade de intervir com alguma vivacidade, no quadro da sua missão no seio da justiça.

Embora a medida estivesse prevista na lei, a interpretação da lei, que num primeiro momento a Cour d’Appel não terá seguido, uma vez que não se manifestou inicialmente sobre o assunto quando tinha poderes para o fazer, conduziu à aplicação de uma medida não necessária numa sociedade democrática. O processo imposto ao advogado, com a sanção aplicada no seu termo, não passou, assim, no crivo do teste de proporcionalidade efetuado pelo TEDH.

Verificou-se deste modo a violação do artigo 10.º da CEDH, direito à liberdade de expressão.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira