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TEDH, 16 de junho de 2015. Processos apensos Chiragov c. Arménia e Sargsyan c. Azerbaijão

16 jun 2015

Conflito do Nagorno Karabakh. Populações arménias. Doutrina do controlo efetivo. Emprego dos Princípios de Pinheiro. Verificações de violações do direito de propriedade, do direito ao respeito da vida privada e do direito a um recurso efetivo. As questões da Secessão como remédio em Direito Internacional Público e da Responsabilidade de Proteger

Nestes dois casos o TEDH foi confrontado com um conjunto de queixas da parte de cidadãos de nacionalidade do Azerbaijão, nem arménios nem azeris, vivendo no corredor de Lachin, que perderam os seus patrimónios, foram privados das suas práticas de vida e foram considerados sem recurso efetivo (Chiragov c. Arménia), e com um conjunto de queixas da parte de uma família etnicamente arménia, vivendo na vila de Gulistão, situada na linha de cessar fogo do conflito do Nagorno Karabakh, que alegadamente perdeu os seus patrimónios e deixou de poder prestar o culto devido à memória dos seus defuntos (Sargsyan c. Azerbaijão).

Estes dois processos, que foram apensos pela Grande Chambre do TEDH, após remissão a esta pelas suas competentes Seções, devem ser colocados no contexto do conflito que vem opondo a Arménia ao Azerbaijão sobre a região do Nagorno Karabakh.

Esta região é, historicamente, desde a Antiguidade, território arménio e é hoje povoada em 77% por pessoas etnicamente arménias. A banda de Lachin, situada na orla desta região, uma margem estreita, separa-a da Arménia. Noutra dimensão geográfica, a vila de Gulistão está situada no território de Shahumyan o qual está separado do Nagorno Karabakh por um rio que corre num desfiladeiro estreito. Militarmente a região do Nagorno Karabakh está possivelmente infiltrada por forças arménias e está sob controlo autónomo de um governo próprio, tendo-se auto-proclamado a República do Nagorno Karabakh (NKR).  A linha de encontro das forças da NKR e do Azerbaijão, também designada por linha de cessar fogo, passa pela vila de Gulistão.

Foi Estaline quem determinou a integração da NKR ao Azerbaijão, tendo um conflito estalado no final dos anos 80, com uma intervenção soviética até 1991. Até 1994, um violente conflito veio a determinar estas posições militares, o qual foi paralisado pelo Protocolo de Bishkek sob a égide da OSCE que, para além da fixação destas linhas de cessar fogo, previu a realização de um corredor de passagem humanitário sobre a margem de Lachin para permitir às pessoas etnicamente arménias poderem chegar à Arménia. O Azerbaijão não cumpriu a promessa de realizar o corredor de passagem sobre a margem de Lachin (corredor de Lachin) muito possivelmente porque todo o território da NKR está em autonomia de facto, embora sem reconhecimento internacional.

O caso de Chiragov e outros c. Arménia é precisamente o de cidadãos que contestam um alegado envolvimento arménio, que os privou das suas propriedades destruídas durante o conflito, que correspondentemente atinge as suas vidas privadas no sentido que é dado ao conceito na CEDH, e contra o qual inexiste recurso efetivo.

Interveio, aqui, o TEDH no sentido de considerar, após abundante reflexão, que a Arménia detém o controlo efetivo da NKR; financeiramente a diáspora arménia no mundo apoia a NKR permitindo-lhe subsistir, militarmente, as FA arménias estariam infiltradas nas FA da NKR permitindo-lhe uma soberania de facto relativamente ao Azerbaijão em que está, segundo o DIP, integrada. E bastou-se com demonstrações precárias do direito de propriedade para reconhecer a existência de patrimónios e reconstituir no pensamento, a existência de vidas privadas e familiares (certificados técnicos descrevendo as propriedades mas não títulos com algum valor jurídico em sentido formal), assentando na Doutrina de Pinheiro, reconhecida nas N.U. que admite flexibilidade no reconhecimento de títulos de propriedade de refugiados que, por terem deixado as casas apressadamente, não puderam levar consigo as habilitações jurídicas (escrituras públicas), nem os títulos de registo das respetivas propriedades, dando-lhes relevância jurídica internacional.

A Arménia foi, assim, condenada pela violação do direito de propriedade destas pessoas, da sua vida privada e familiar e por não disponibilizar um recurso efetivo a estes cidadãos contra as violações que lhes terá imposto, destes seus direitos. A questão da discriminação, invocada pelos requerentes, por não serem etnicamente arménios, não foi considerada pelo TEDH.

O caso de Sargsyan parece um caso simétrico. Aqui temos um cidadão etnicamente arménio e sua família, que se vêm privados das suas propriedades e do acesso à memoria dos seus defuntos pelo conflito, desta vez na linha de cessar fogo, na vila destruída de Gulistão, situada entre as frentes militares do Azerbaijão e da NKR. A mesma invocação de direitos violados e a mesma solução dada pelo TEDH, desta vez contra o Azerbaijão. Com efeito a Alta Instância Europeia considerou que o Azerbaijão detém o controlo efetivo da vila de Gulistão, e que, num raciocínio em tudo semelhante ao caso Chiragov, é responsável pela privação da família arménia de Sargsyan, das suas propriedades e do acesso desta ao culto dos seus defuntos. Além da doutrina do controlo efetivo, também aqui os princípios de Pinheiro ajudaram, numa abordagem flexível, a considerar provada a existência de patrimónios na titularidade destas famílias.

Numerosas posições ou votos discordantes seguem os dois acórdãos. O juiz Gyulumian, nomeadamente, acusa o TEDH, com estes acórdãos, de estar a aprofundar a fragmentação do Direito Internacional Público, agravando a confusão de titulares de direitos e a abundância de meios de prova em DIP.

O juiz português, Paulo Pinto de Albuquerque, afirma a sua completa discordância quanto a ambos os acórdãos. Para este Alto Magistrado a questão em Chiragov é da secessão como remédio em DIP. No fundo, a NKR tem vocação para a independência e mais de uma vez foi tentada, ainda em tempos soviéticos (pós Estalinistas) a sua reunificação com a Arménia. A questão da discriminação do artigo 14º poderia ser considerada quanto aos arménios. No caso concreto de Chiragov e outros, estes não terão esgotado os recursos internos, condição de acesso ao TEDH, pois estes, apesar da posição assumida pelo TEDH, existem. O tribunal de Lachin existe, é um recurso disponível. Não há estatuto de vítima, na medida, nomeadamente, em que as casas tendo sido destruídas em 1992, no estalar pós soviético do conflito, a CEDH não era aplicável, uma vez que a Arménia só a ratificou em 2002. Podem existir direitos de terceiros de boa-fé entretanto constituídos sobre os terrenos. Nada permite dizer com propriedade que a Arménia tem o controlo efetivo sobre a  NKR. Por fim, os princípios de Pinheiro têm limites, devendo existir algum rigor na apreciação de títulos de propriedade invocados. Com esta jurisprudência, o TEDH terá contrariado outra jurisprudência sua, anterior, igualmente relevante nestas matérias, sem verdadeiro fundamento. Enfim, releva sobremaneira para o juiz português, o direito à secessão como remédio, expressão do direito à autodeterminação. Maioritariamente composta por pessoas etnicamente arménias, a NKR teria o direito de se insurgir contra a sua inclusão no Azerbaijão, e deveria poder protestar e encontrar eco na comunidade internacional, separando-se deste país.

Para o juiz português este caso nem sequer deveria ter sido recebido pelo TEDH, falhando no controlo da admissibilidade.

Em várias opiniões discordantes, juízes do TEDH, e novamente o juiz português, Paulo Pinto de Albuquerque, insurgem-se contra a posição da maioria no caso Sargsyan. Primeiro, a teoria do controlo efetivo não opera. A zona é de cessar fogo, frente a frente estão as posições inimigas, no meio está a vila de Gulistão, insuscetível de ocupação e controlo por qualquer das forças em presença. É este o significado de linha de cessar fogo. Segundo, também aqui a doutrina de Pinheiro é seguida com demasiada flexibilidade, nada demonstrando que o caso não seja uma construção para responder ao caso Chiragov. O Azerbaijão, a ter o controlo como é afirmado, tem vias internas de recurso que deveriam ter sido esgotadas. A questão da discriminação também aqui poderia ter sido estudada. Finalmente, neste caso, em muito simétrico ao caso Chiragov, avulta a questão da responsabilidade pelas violações de Direitos Humanos, também conhecida sob a designação de responsabilidade de proteger em DIP. Segundo esta noção, os direitos humanos devem, em qualquer caso, ser protegidos e esta proteção compete, em primeiro lugar, a quem possui jurisdição sobre a área em que ocorrem as violações. A jurisdição anda de mãos dadas com o controlo efetivo e verificando-se um conflito, a não existir um controlo efetivo por parte de quem deveria exercer esta jurisdição, a responsabilidade de proteger irá subsidiariamente caber aos Estados próximos, no final, à comunidade internacional. O que não deve acontecer é a verificação de uma falha no cumprimento do dever de proteger. Para o juiz português, esta questão deveria ter sido equacionada pelo TEDH, e não foi.

Uma questão que vários dos juízes que afirmaram em voto a sua posição, levantam, é a de alguma forma de chamamento à demanda, neste caso, da Arménia, uma vez que este país também tem responsabilidades no conflito.

Embora aqui, tal como em Chiragov para a Arménia, o Azerbaijão tenha sido condenado pelas violações do direito de propriedade, do direito ao respeito da vida privada e familiar e da inexistência de um recurso efetivo, não tendo sido examinada a queixa relativa à discriminação, perfila-se uma questão mais profunda. A de trazer alguma luz, sem a pretensão de o resolver, ao conflito em torno do Nagorno-Karabakh. 

São apontadas pistas, como a da responsabilidade de proteger que, sem legitimar intervenções externas fortes, não deveria permitir que o conflito se mantivesse esquecido, e a da secessão como remédio, a secessão como solução para a discordância dos arménios étnicos que, na sua maioria, povoam a NKR, relativamente à integração desta auto proclamada república no Azerbaijão.

Uma nota deve ser feita. O jogo dos argumentos dos vários intervenientes é complexo e por vezes o leitor interroga-se, apesar da clareza das exposições e dos argumentos, onde está a verdade, quem a possui.  Estes acórdãos vêm certamente contribuir, também pela leitura das opiniões separadas dos juízes intervenientes, para a reflexão em torno da questão do Nagorno Karabakh.


Autor: Paulo Marrrecas Ferreira