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TEDH, 1.ª S., S.M. c. Croácia, Acórdão de 19 de julho de 2018

31 jul 2018

CEDH, Artigo 4.º, Escravatura, servidão, trabalho forçado, tráfico de pessoas. Lenocínio – exploração da prostituição de outrem, com violência forçada a prostituir-se. Indiferença das autoridades. Dever de investigar para conseguir efetuar a promoção penal do crime. Dimensão processual: violação.

S.M., uma cidadã croata queixou-se contra o seu país, por violação do artigo 4.º da CEDH, exploração do trabalho forçado e tráfico de pessoas, porque as autoridades não tomaram em conta as suas queixas de tráfico humano, por ter sido forçada a prostituir-se.

S.M. é uma mulher nascida em 1990, que saiu da casa de morada de família por desavenças com os pais, para viver com outra família. Acabou por formar-se profissionalmente como empregada de mesa. Apresentou uma queixa-crime em 2012 contra TM, um ex-polícia, que a teria obrigado a prostituir-se.

Do registo criminal de TM consta que já fora condenado por violação em pena de 6 anos e colocado em regime probatório. Em busca domiciliária feita ao apartamento denunciado por S.M. como lugar da prática da prostituição, foram encontradas várias armas, telefones portáteis, preservativos e avultadas quantias de dinheiro.

A vítima contou vários episódios em que teria sido forçada, no apartamento em questão, a ter práticas sexuais, por vezes com prática de violência por parte de TM. Este vigiava as relações sexuais e retirava a S.M. o dinheiro que lhe era entregue após cada ato.

S.M. foi ajudada pela mãe de uma amiga, a quem se queixou da situação e que a acolheu em sua casa. Existe o registo da prática repetida de violência de TM sobre a vítima. A partir do momento do acolhimento de S.M. por esta família, as agressões cessaram. TM procurava então, contudo, comunicar com S.M. para lhe dizer que a amava.

O tribunal interno pronunciou TM pelo crime de lenocínio. A S.M. foi concedido o estatuto de vítima em 2012. TM defendeu-se dizendo que a mãe de família que tinha acolhido S.M. era louca e reconheceu apenas ter esbofeteado uma vez S.M., alegadamente por esta se recusar a trabalhar numa padaria. Por seu turno, a vítima reconheceu ter prestado serviços sexuais a terceiros sob a coação de T.M. O Tribunal acabou por absolver TM por falta de prova.

O Ministério Público recorreu e SM. Apresentou queixa ao Tribunal Constitucional. O recurso do primeiro foi rejeitado, a queixa ao TC não foi admitida. S.M. queixou-se ao TEDH.

Existe uma abundante documentação, sob forma de relatórios, produzida pelas instâncias internacionais relativamente à Croácia, como sucede com a situação de direitos humanos dos vários países do mundo. O U.S. Department of State regista que os tribunais croatas não condenam em penas pesadas pelos crimes sexuais de que venham a ter conhecimento, que o tráfico de pessoas, ou a exploração sexual de pessoas, não é geralmente considerado e que as queixas nesta matéria que cheguem às secretarias são normalmente rejeitadas por serem consideradas inadmissíveis.

Observando o problema sob o ângulo da admissibilidade, o TEDH notou que, apesar dos alegados atrasos pelo Governo, a queixosa queixou-se em tempo. Para o efeito da sua queixa e perante a situação que enfrentou, S.M. tem o estatuto de vítima perante o TEDH, uma posição jurídica que não perdeu por as autoridades croatas internamente lho terem atribuído. A queixa de S.M. foi, assim, considerada admissível pelo TEDH.

Quanto ao fundo, o TEDH, senhor da qualificação dos factos para o efeito da sua subsunção às normas, procedeu a uma sanação da queixa de S.M. e entendeu reduzir o seu exame ao exame da questão de saber se houve ou não violação do artigo 4.º da CEDH, trabalho forçado ou obrigatório.

Observou que os tribunais nacionais estabeleceram como factos provados que a vítima recebeu um telemóvel para comunicar com os clientes de serviços sexuais, que ocupou o apartamento referido com TM e que nele prestou serviços sexuais.

Para verificar o que correu mal entre a determinação destes factos como assentes e a conclusão de uma absolvição por falta de prova, o TEDH identificou deveres a cargo do Estado. O de investigar e o de promover a ação penal. E colocou a questão de saber se este foi o procedimento da Croácia.

Em primeiro lugar, a resposta depende de saber se existe um quadro regulatório para o efeito. Sucede que as disposições penais da Croácia proíbem o lenocínio, a exploração sexual, o tráfico de pessoas, a escravatura, a servidão e o trabalho forçado. Logo este quadro regulatório existe na Croácia.

Em segundo lugar, há que saber se foi prestado apoio à vítima. A vítima queixou-se e foi assistida nos termos do apoio nacional à vítima, logo, a Croácia prestou apoio à vítima.

A terceira questão é de saber se houve respeito dos deveres processuais a seu cargo, por parte do Estado. Na medida em que a vítima se queixou da coação sexual, o Estado deveria ter investigado. Sucede que a polícia efetuou uma busca no apartamento que veio a ser frutífera. Mas as autoridades não aprofundaram a investigação para além desta busca, procurando nomeadamente saber com alguma precisão o que se passou junto da família da vítima e das pessoas que a acolheram. Contudo este aprofundamento deveria ter tido lugar, uma vez que foram encontradas armas, equipamentos de telecomunicações e dinheiro no apartamento; assim as autoridades não deveriam ter optado pela absolvição por falta de prova, depois de tantos indícios reunidos contra TM: havia que prosseguir a investigação.

E foi por isso que a Croácia foi condenada. Não pelo tráfico ou a exploração sexual de pessoas, mas pela não investigação capaz deste crime, para cujo cometimento existiam fortes indícios. Houve assim a violação do artigo 4.º da CEDH na sua dimensão processual, o dever de investigar a cargo das autoridades.

A indemnização pelo dano moral em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado foi de 5 000 €. Não houve arbitramento de valor por custas e despesas.

Por fim, o juiz Koskelo apresentou um voto discordante, contestando a admissibilidade e, quanto ao fundo, entendendo que o TEDH não é mais uma instância de recurso mas uma instância de queixa (algo diverso do comum regime interno dos recursos); por isso, não deveria ter condenado a Croácia. Salvo o respeito sempre devido pelas opiniões destes altos magistrados internacionais, foi precisamente a posição de uma instância de queixa que o TEDH manteve, pois limitou-se a apreciar o absurdo de uma absolvição no pano de fundo de um feixe tão abundante de indícios e de factos provados. Condenou um Estado por uma violação processual – um disfuncionamento - que não se virá a traduzir numa condenação interna de T.M., entretanto absolvido…


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos