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TEDH, 1ª Secção, E.K. c. Grécia, Acórdão de 14 de janeiro de 2021

21 jan 2021

CEDH, Artigos 3.º e 5.º §§ 1, e 4. Requerente de asilo, prisão administrativa, condições materiais de detenção, art.º 3.º § 1, verificação de um esforço bastante do Governo no sentido da melhoria possível destas em contexto de forte pressão migratória, não violação; legitimidade da detenção e o seu relacionamento com a demora do tratamento do processo, art.º 5.º § 1, não violação; artigo 5.º § 4, possibilidade de aduzir recurso da detenção, indisponibilidade de recurso efetivo, violação.

E. K., cidadão de nacionalidade turca (o queixoso), apresentou queixa contra a Grécia, ao TEDH por ter sido detido por entrada ilegal no território do Estado grego, na localidade de Tychero, tendo sido presente ao Procurador da República no juízo correcional competente (uma modalidade de juízo criminal hoje inexistente em direito penal português) de Alexandroupolis. O juiz singular adiou o exame do processo mas ordenou a manutenção de E.K. em prisão. E.K. veio a ser condenado por entrada ilegal no território do Estado, numa pena suspensa de dois anos.  No mesmo dia, foi novamente detido com vista à sua expulsão do território do Estado. Foi-lhe, então, distribuída uma brochura contendo a explicitação dos seus direitos na qualidade de estrangeiro, a qual era redigida em língua grega e em língua turca. E.K. veio a explicar mais tarde que esta brochura não continha nem o fundamento da sua prisão, nem a indicação das vias de recurso judiciais disponíveis, nem a indicação do modo de aceder ao patrocínio judiciário oficioso. Quanto ao auto da sua detenção, este foi redigido em grego, uma língua que não entendia, não tendo o queixoso beneficiado de qualquer tradução. Destarte, não foi informado em língua que entendesse dos fundamentos da sua detenção. No mesmo dia, o diretor da polícia local decretou a prisão preventiva do queixoso, uma vez que se verificaria o perigo de fuga deste, o que tornaria impossível a execução da decisão de expulsão. O queixoso apresentou, então, um requerimento de asilo.

Nos termos da legislação de estrangeiros (um Decreto presidencial e a lei dos estrangeiros em vigor), que regia o contexto jurídico do queixoso na pendência da concessão, a este, do estatuto de refugiado, ou da sua expulsão, os vários períodos de detenção aplicáveis alternavam entre períodos de 90 dias não prorrogáveis (tratando-se da aplicação do Decreto presidencial referido) ou de seis meses (tratando-se da aplicação da Lei dos estrangeiros). O queixoso veio, assim, a ser transferido por várias localidades e centros de retenção administrativa de migrantes e refugiados, sofrendo os seus períodos de detenção a aplicação destes diferentes prazos, consoante o entendimento do aplicador do direito. As autoridades alegaram que todas as comunicações aplicáveis foram feitas ao queixoso, este respondeu que não lhe fora traduzida nenhuma comunicação e que, quando mais tarde, o seu advogado, constituído no quadro do pedido de concessão do estatuto de refugiado, solicitava às autoridades a inspeção dos lugares em que se encontrava detido, este pedido era sempre negado. Enfim, para o efeito da utilização de peças processuais no quadro dos direitos de defesa e petição (do estatuto de refugiado), solicitara cópias destas, sendo que algumas decisões de colocação em prisão administrativa preventiva (em particular a primeira decisão sujeita ao prazo improrrogável de 90 dias que não foi respeitado) lhe foram negadas em termos de disponibilidade de documentação processual pertinente. Num caso uma prorrogação de prisão administrativa preventiva foi-lhe comunicada em língua síria, uma língua que também não entendia. Veio a ser ouvido pela Autoridade grega para os refugiados, na qualidade de entrevista inicial para o exame do requerimento de asilo. Continuou a ser transferido e a ver os seus períodos de prisão prorrogados e o seu mandatário forense foi contestando as prorrogações, sempre sem êxito. A audiência de julgamento, para o efeito da decisão do seu requerimento de concessão do estatuto de refugiado, veio a correr perante o Tribunal administrativo de Atenas. Tendo o queixoso contestado a manutenção da sua prisão administrativa preventiva, a sua colocação em liberdade foi lhe negada, com fundamento em não possuir residência estável em território do Estado. Apesar de ter vindo a indicar uma residência (muito possivelmente o domicílio profissional do seu mandatário forense), a colocação em liberdade continuou a ser-lhe negada. Mantendo a impugnação da sua prisão administrativa preventiva, a Sra. Presidente do tribunal administrativo rejeitou sistematicamente a colocação em liberdade mas modificou a fundamentação que sempre havia sido prestada pelas autoridades. Na realidade, a prisão administrativa preventiva do queixoso era justificada, não pelo perigo de fuga, que não constava da enumeração legal da legislação aplicável, a qual era taxativa por se tratar de um caso de privação de liberdade, mas pela necessidade de manter o queixoso à ordem do processo, ou seja à disposição das autoridades judiciais no sentido de possibilitar uma decisão rápida da causa, fundamentação esta que encontrava guarida numa das alíneas da disposição legal imperativa que regia a prisão administrativa preventiva de um requerente de asilo. Tendo sido detido e preso em Junho de 2013, o queixoso viu, finalmente, ser-lhe concedido o estatuto de refugiado, em Dezembro desse mesmo ano, tendo sido então colocado em liberdade. Queixou-se ao TEDH.

No tocante às condições materiais de detenção, o queixoso invocou a sobrelotação dos lugares de detenção dos migrantes irregulares, a falta de espaço individual disponível, a escassez de mobiliário, difíceis condições sanitárias, a sujidade da roupa da cama e, nalguns casos, a impossibilidade de saídas para o exterior, no pátio, sendo nestes casos privado da própria liberdade de pátio. Invocou ainda a carência de cuidados médicos.

Procedendo ao exame da queixa, o TEDH remeteu para o quadro jurisprudencial de referência na matéria, formado pelos Acórdãos proferidos nos casos Barjamaj, A.F, Horshill, Khurosvili e B.M., todos contra a Grécia, os quais estão indicados no § 45 do Acórdão em apreço. Citou relatórios das organizações internacionais sobre a situação na Grécia, nomeadamente o do Comité do CoE para a prevenção da tortura (o CPT), nas suas visitas de 2013, com data de 2014, os quais indicavam deficiências materiais nos centros de retenção dos imigrantes em situação irregular pelos quais o queixoso transitou nesse período de tempo. A Assembleia Parlamentar do CoE (a APCE) efetuou uma visita aos centros de retenção de migrantes na Grécia, em 2013, tendo indicado as dificuldades deste país em razão da crise e da austeridade, as quais se refletiam necessariamente nos centros de retenção, sofrendo estes de graves carências para o tratamento adequado dos migrantes a seu cargo, estando para mais a Grécia confrontada com a pressão migratória de grande intensidade, que é do conhecimento geral. Por fim, o Provedor de Justiça grego, ele próprio, relatara as dificuldades destes centros, nos seus relatórios apresentados à Assembleia da República grega.

Passando ao exame dos fundamentos de queixa (griefs) do queixoso, o TEDH admitiu a queixa no tocante à violação do direito a não ser submetido a um tratamento cruel, desumano ou degradante (tortura, art.º 3.º § 1), elencou a sua jurisprudência de referência neste domínio, destacando nomeadamente o seu importante Acórdão proferido no caso Mursic c. Croácia (proferido pela Grande Chambre, relativo ao necessário espaço individual disponível por recluso, também objeto, a seu tempo, de divulgação nesta página), analisou as condições materiais de cada um dos estabelecimentos por que o queixoso passou, e apesar das aparências resultantes da informação disponível, relevou a apreciação do CPT e do Provedor de Justiça grego que, reconhecendo embora as dificuldades concretas no tocante às condições materiais de detenção, mostrava ter existido sempre a preocupação das autoridades em conceder uma dignidade máxima – a possível – às condições materiais de detenção, num duplo contexto, económico e de pressão migratória, extremamente difícil, e por isso não reconheceu a alegada violação do art.º 3.º da CEDH da parte das autoridades gregas. Não se verificou assim, a violação do art.º 3.º da CEDH.

O TEDH passou, a seguir à apreciação da violação alegada do direito à liberdade e à segurança do queixoso, nos termos do art.º 5.º § 1 da CEDH. Para o queixoso, a prisão seria arbitrária porque emigrar não é crime, muito menos, em situação de urgência pessoal, requerer asilo; a sua prisão foi determinada de forma automática, sem um real escrutínio judicial da situação de substância do próprio queixoso, no sentido de saber se havia um real interesse em o prender administrativamente. O TEDH admitiu este segmento da queixa e passou à sua apreciação, no tocante ao fundo. Procurando a fundamentação legal da medida, verificou a existência da sua previsão legal bem como o seu enquadramento na al. f) do § 1 do art.º 5.º da CEDH (detenção de estrangeiro para a validação da decisão relativa à sua aceitação no país ou para a sua expulsão, em alternativa). O TEDH entendeu, assim, que o que seria relevante no sentido de tornar a prisão legítima ou ilegítima (uma vez que se verificou o critério da sua previsão legal tanto no direito interno quanto no direito da CEDH, e que a pressão migratória forte justificava esta detenção, tornando-a necessária numa sociedade democrática, logo proporcional, desde que se verificasse uma demora que não fosse excessiva, desta detenção) seria a mediação do tempo que o queixoso passou preso à disposição do processo. Sucede que este foi detido e preso em junho de 2013, para ver o seu processo decidido favoravelmente em Dezembro do mesmo ano, com a sua colocação em liberdade, tendo permanecido preso durante 5 meses, o que para o TEDH representa uma demora razoável para uma decisão com a relativa celeridade aplicável a estas matérias do direito dos refugiados, pelo que não se registou a violação do direito à liberdade e à segurança do queixoso nos termos do artigo 5.º § 1 da CEDH.

O TEDH deu uma nota importante no tocante ao relacionamento entre a detenção e prisão de um requerente de asilo e a questão da suspensão da eficácia da decisão administrativa da sua expulsão na pendência do sucessivo processo judicial. É uma questão (a da suspensão da eficácia da decisão administrativa de expulsão) que foi tema de amplo debate em Portugal e que se mantém viva na atividade das ONG’s que se ocupam desta matéria, pois uma inflexão da resposta do direito europeu a esta resposta, consolidada desde a jurisprudência Gebrehmehdin c. França (2010), significaria uma possível inflexão da resposta legislativa interna. Para o TEDH, que se mantém neste domínio fiel à sua jurisprudência Gebrehmehdin, o recurso judicial (para o tribunal administrativo, em sede de processo administrativo contencioso) da decisão da autoridade dos estrangeiros, adotada em sede de processo administrativo gracioso, que rejeita o requerimento de concessão de asilo, tem eficácia suspensiva, não podendo um requerente de asilo também recorrente do ato administrativo de expulsão, em sede de processo judicial interno, ser expulso na pendência da decisão deste processo judicial. Ora o aspeto importante que o TEDH aqui destaca é que, ao longo destes cinco meses de prisão, o queixoso recorreu judicialmente da decisão administrativa de expulsão, tendo vindo a acompanhar com o seu mandatário, este mesmo processo judicial. E para o TEDH, é importante destacar que o efeito suspensivo da eficácia do ato administrativo de expulsão, que a impugnação judicial deste mesmo ato traz implícito, não impede a manutenção em prisão, às ordens do processo, agora judicial, do requerente de asilo; encontrando-se este, anteriormente ao processo judicial, já em situação de prisão administrativa (por não se tratar de uma pena e a competência para a respetiva adjudicação judicial ser da ordem administrativa). Precisamente porque a verificação desta situação é legítima aos olhos do TEDH e porque a demora do exame e da decisão do requerimento de asilo se manteve dentro de critérios de razoabilidade, não se verificou a violação da parte da Grécia, do art.º 5.º § 1 da CEDH.

O queixoso ainda invocou a violação do art.º 5.º § 4, o direito ao recurso da detenção, alegando que não beneficiou desta possibilidade. Após ter admitido este segmento da queixa, o TEDH passou ao exame do respetivo mérito. Fixou mais uma vez o quadro jurisprudencial aplicável, destacou que o queixoso esgotou várias vezes as disposições que lhe permitiriam contestar a sua prisão, destacou o obiter dictum (uma vez que esta observação não impediu a manutenção em prisão administrativa preventiva) da Presidente do tribunal administrativo de Atenas segundo o qual o perigo de fuga invocado anteriormente pelas autoridades judiciais não era fundamento aceitável de prisão por não constar do elenco taxativo das leis aplicáveis nas respetivas disposições pertinentes; mas que era fundamento (este já ratio decidendi) da prisão, a necessária disponibilidade do queixoso à ordem do processo; destacou que o regime europeu vigente em matéria de direito dos estrangeiros vai no sentido de reforçar as garantias processuais destes (e substanciais uma vez que se trata de privação de liberdade), nomeadamente no tocante ao exame da legalidade da detenção de um requerente de asilo, e concluiu que o queixoso não beneficiou da possibilidade de um verdadeiro exame da legalidade das suas condições de detenção e prisão. Por isso, concluiu pela violação do art.º 5.º § 4 da CEDH, violação do direito ao recurso da detenção.

O Acórdão foi adotado por unanimidade sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos