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TEDH, 1.ª Secção, Lalik c. Polónia, Queixa n.º 47834/19, Acórdão de 11 de maio de 2023.

26 maio 2023

CEDH, Artigo 6.º § 3, Teste de equidade processual.   

CEDH, alegação de violação do art.º 6.º § 3 da CEDH, por iniquidades processuais várias, em particular na obtenção de declarações do arguido sem controlo conforme às leis processuais na esquadra de polícia.

Enquadramento do caso.

Lalik queixou-se contra a Polónia por entender que a sua condenação por homicídio qualificado pela especial perversidade revelada na sua execução, assentou essencialmente nas declarações obtidas sem o respeito da forma da sua recolha, com total desrespeito dos mais elementares direitos de defesa, contra o disposto no artigo 3.º § 3 da CEDH. Afirmou que os polícias a quem prestou as suas declarações iniciais, não o tinham informado dos seus direitos nem da sua possibilidade de comunicar com um advogado.

Os factos.

Na noite de 26 de janeiro de 2016. TB e MD, já fortemente alcoolizados, cruzaram Lalik à frente da residência deste. Este último ofereceu-lhes mais umas cervejas antes de terminarem a sua noite. Em determinado momento, MD foi para a sua casa, tendo TB permanecido com Lalik. Ambos continuaram a beber cervejas. Até que Lalik foi acompanhar TB em estado de profunda ebriedade ao domicilio deste. Mal passaram a porta do prédio, TB, por fortemente alcoolizado, caiu no chão e Lalik não o conseguiu levantar. Vasculhou então os bolsos de TB, à procura de dinheiro que pagasse uma antiga dívida que este tinha para com aquele.  Não satisfeito com o pouco que encontrou, deitou fogo a uma peça de roupa da vítima e saiu. Foram os vizinhos, quem, alertados pelo fumo, veio a apagar o incêndio que começava a grassar. Quando se puderam abeirar de TB, este estava morto. Causa da morte poderá ter sido, segundo o posterior relatório de autópsia, o facto de a face de TB estar voltada para o chão, à altura do chão do prédio. A inicial fumaça, tê-lo há asfixiado (Um caso semelhante aconteceu na passagem do Século entre nós, como o caso Gisberta, em que a vítima foi atirada para o poço com pouca água. O contacto das vias respiratórias da pessoa inconsciente com o escasso lençol de água terá sido o bastante para provocar a sua morte por afogamento).

O Direito.

Pelas 23:00 do mesmo dia, Lalik foi detido, tendo sido levado para a esquadra mais próxima onde foi intimado a prestar declarações, o que fez. Uma primeira dúvida que surge neste processo, é a altura da prestação das declarações na esquadra da polícia. Se imediatamente após a detenção, se depois. Em audiência de julgamento veio a saber-se ser a segunda hipótese a mais correta.

Na prestação das declarações que, de todo o modo, sempre aconteceram na esquadra de polícia, não houve lugar ao reconhecimento mediante testes competentes para o efeito, da ebriedade do individuo.

Quanto à matéria de facto, embora Lalik tenha reconhecido ter puxado fogo à vítima, afirmou tê-lo feito para medir a sua capacidade, no sentido de saber se era capaz de o fazer. Tanto assim foi que o fez.

Foi presente ao Ministério Público, no dia seguinte, tendo sido, então, decretada a sua prisão preventiva por homicídio qualificado, pela especial perversidade do agente, revelada na forma cruel como o cometeu. Nesse mesmo dia, Lalik afirmou que não tinha a intenção de matar o TB. A partir dai, e ao longo de toda a investigação, recolheu-se no seu direito ao silêncio. Veio a ser condenado em leitura de sentença, na pena de 25 anos de prisão. O tribunal entendeu, que além da crueldade com que o crime fora executado, a vontade de reaver o crédito, manifestada no ato do homicídio, era agravante penal.

O enquadramento interno deste processo.

O TEDH estudou a realidade jurisprudencial na Polónia, no tocante à orientação maioritária das decisões judiciais, e verificou que, nos casos em que a promoção do processo penal se inicia na esquadra de polícia mais próxima do local do crime acabado de consumar, as garantias dos art.º 6.º § 3 são raramente observadas. Assim sucedeu no processo de queixa Pronka c. Polónia de 31 de Março de 2009 (§§ 28 e 29 do Acórdão ora em exame), tendo esta situação gerado a adoção da Resolução do CM, CM/ResDH(2015) 235 de 9 de Dezembro de 2015. Entretanto o problema (que é o dos presentes Autos também), foi declarado extinto pelo Serviço de Execução de Acórdãos do TEDH, que opera na dependência do TEDH.

O próprio Comissário Polaco para os Direitos Humanos já tinha chamado a atenção para este problema, tendo sugerido que se pusesse fim à prática da prestação de declarações nas esquadras de polícia, o que motivou da parte do Ministério da Justiça, a resposta da sua falta de praticabilidade.

Além da jurisprudência e dos trabalhos efetuados sobre este tema na Polónia, o TEDH efetuou um bosquejo pelas legislações comparadas, e as regras de Direito internacional público. Destacou, no plano da U.E., a Diretiva n.º 2013/48/EU do P.E. e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, relativa ao direito de aceder a advogado, nos processos penais, bem como nas regras relativas ao Mandado de Detenção Europeu.  Entre estas regras avulta o direito a comunicar imediatamente com o mundo exterior, da parte do arguido, logo, por um argumento por maioria de razão, a comunicar imediatamente com um advogado que o possa defender.

A rejeição da declaração unilateral apresentada pela Polónia.

Como no processo de queixa no caso Aprile c. Itália, também objeto de divulgação nesta página, já neste ano de 2023 (Aprile c. Itália, também desta 1ª Seção, Acórdão proferido na Queixa n. 11557/09, de 9 de Março de 2023), tendo o Governo apresentado uma proposta de Declaração unilateral ao TEDH, esta veio a ser recusada perante a importância do tema em apreço.

O TEDH admitiu a queixa por não existirem fundamentos de inadmissibilidade, e procedeu ao exame do mérito da causa.

As intervenções de Terceiros.

Intervieram neste processo de queixa, a Fundação Helsínquia para os direitos humanos, que acusou a formulação demasiado complexa das brochuras de informação sobre os direitos das pessoas sob interrogatório em esquadra, e formulou propostas de cariz legislativo; e a Fair trial, que destacou existir em processo penal polaco, na prática, uma categoria separada de decisões judiciais, quais sejam as que assentam nas declarações prestadas de forma sumária e sem consideração dos direitos dos declarantes nas esquadras de polícia, sempre que a recolha de prova comece por este passo nos processos penais. Referiu o teste de equidade processual constante do Acórdão proferido no processo de queixa Beuze c. Bélgica de 9 de Novembro de 2015, também objeto a seu tempo de divulgação nesta página.

Standards seguidos pelo TEDH.

O TEDH fixou os seguintes princípios gerais para o exame desta questão, louvando-se nos Acórdãos Beuze c. Bélgica, John Murray c. UK (1996), Jalloh c. RFA (2006, também objeto de divulgação nesta página), Ibrahim e Outros c. UK (2016, idem); Navone e Outros c. Mónaco (2013, idem), Schmidt Laffer c. Suiça (2015), e AT c. Luxemburgo (2015) bem como Salduz c. Turquia (2008, idem).

Os princípios gerais são os seguintes: assiste à pessoa constituída como arguida o direito a ser notificado do seu direito ao silêncio e a não se auto incriminar.

Elementos do processo interno merecedores de eventual censura da parte do TEDH.

O TEDH verificou que as autoridades não forneceram cópia da brochura com os seus direitos a Lalik, não procederam ao teste de alcoolemia no momento da prestação de declarações, o arguido só teve acesso a advogado passadas 15 horas após a sua detenção, sendo que então, já tinha prestado declarações durante 3 horas. Enfim, o advogado, certamente de nomeação oficiosa, nem sequer solicitou uma entrevista a sós com o seu constituinte oficial.

O TEDH aditou aos standards enunciados acima, o constante do seu Acórdão proferido no caso Simeonov c. Bulgária, segundo o qual a não comunicação ao interessado de que tem o direito a permanecer em silêncio e a não se autoincriminar invalida todo o processo de recolha de prova no tocante ao interrogatório policial. Nestas condições, Lalik não teve conhecimento bastante dos direitos que lhe assistiam. O TEDH, ainda assim, aplicou o seu teste de equidade geral do processo constante do seu Acórdão, proferido no caso Beuze c Bélgica citado.

O Teste de Equidade geral do processo.

São, segundo o constante do Acórdão proferido no caso Beuze, critérios de equidade geral do processo:

1. saber se o arguido era vulnerável no momento da prestação de declarações,

2. quais as circunstâncias em que a prova foi obtida,

3. o seu controlo pelos tribunais internos,

4. a natureza auto incriminatória, ou não, dos depoimentos obtidos,

5. o uso da prova,

6. o peso do interesse público,

7. o respeito de outras garantias proporcionadas pela lei e a prática internas.

A resposta do TEDH a estes quesitos.

1. Vulnerabilidade: o arguido era vulnerável pois encontrava-se ébrio.

2. Circunstâncias de obtenção de prova: o informalismo com que a prova foi obtida, sem que fosse dada a possibilidade de o arguido concordar com o relatório lavrado pela polícia.

3. O controlo da prova pelos tribunais internos: O TEDH citou o seu Acórdão proferido no caso A.T. c. Luxemburgo, citado, e observou que a falta deste controlo e a utilização de prova inválida (ver supra) pelos tribunais, inquinou a equidade do processo. 

4. A natureza autoincriminatória dos depoimentos obtidos: As declarações foram contraditórias e auto incriminatórias. Os tribunais não se deram ao trabalho de proceder ao julgamento de facto no espaço das declarações prestadas na esquadra, aceitando as como factos assentes sem carência de posterior e melhor exame.

5. O uso da prova: a prova obtida na esquadra de polícia constituiu a maior parte da prova contra o Lalik, o que indica em abundância a iniquidade processual neste caso.

6. O peso do interesse público: Este é o elemento que pode militar contra Lalik atentando à evidente gravidade dos factos que lhe são imputados. Não obstante, nem por isso os tribunais internos podem restringir os direitos fundamentais de defesa do arguido preso contra os direitos protegidos no Art º 6.º da CEDH, em particular o seu direito ao silêncio e a não se auto incriminar. Citou para este efeito o seu Acórdão proferido no caso Saunders c. RFA (1996).

7. O respeito de outras garantias proporcionadas pela lei e pela prática internas: O TEDH observou que estas garantias existem, com efetividade na lei e prática internas polacas. Contudo, foram insuficientes para assegurar a equidade necessária deste processo penal (um dos elementos além da sua existência, do due process of law).

Verificou-se, assim, a violação do art.º 6.§ 1. 3 da CEDH.

O presente Acórdão foi votado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos