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TEDH, 2 de fevereiro de 2016, N.TS. e Outros c. Geórgia

10 fev 2016

União entre mulher e homem toxicodependente. Nascimento de três filhos. Separação do casal. Falecimento da mãe. Pedido, da parte do pai, atendido pela justiça, de guarda das crianças contra a vontade destas, entretanto a viver com a tia materna. Execução de sentença. Ambiente de violência. Vida privada e familiar das crianças. Art.º 8.º CEDH, violação.

Uma mulher iniciou uma relação com um homem, GB, no ano de 2000 e do casal vieram a nascer três rapazes, em 2002 e 2006, dos quais dois gémeos. Em 2006, GB, foi condenado por abuso de drogas em pena de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução. Seguiu um tratamento, vindo a alhear-se da vida familiar.

Em 2009 a mulher faleceu em circunstâncias não esclarecidas e as crianças passaram a viver com a avó materna e a sua tia, N.TS. No final desse ano, GB pediu em tribunal a devolução das crianças e que a sua guarda lhe fosse confiada. A família materna opôs-se a este pedido.

Após sucessivos exames, os tribunais concluíram que a adição de GB estava em remissão, que GB não tinha sinais de desintegração da personalidade e que tinha motivação para iniciar uma nova vida. Ainda assim, pediram o apoio dos Serviços Sociais (SSA) que procederam ao exame das crianças e concluíram que estas careciam de um ambiente estável e seguro que lhes assegurasse os cuidados de que precisavam, apelando para um esforço concertado das famílias do pai e da mãe, no sentido de ajudar as crianças a ultrapassar o trauma causado pelo falecimento recente da mãe.

O SSA propôs que fosse nomeado um representante judicial para as crianças, mas este não veio a ser designado.

Relatórios de psiquiatria pediátrica concluíram pela existência de um distúrbio de ansiedade que a  separação da família da mãe lhes causaria. O mais velho dos rapazes, nomeadamente, criava um mundo de fantasia no qual se refugiava, procurando escapar às dificuldades da vida quotidiana.

Apesar disto, o tribunal de Tbilissi ordenou a confiança das crianças ao pai. A família materna recorreu para a segunda instância, perdeu e, em sede de recurso para o Supremo Tribunal, também em Tbilissi, este colocou a questão da necessidade de se estabelecer, sem qualquer margem de dúvida, a necessidade de separar o pai das crianças. Ainda assim, observou que o pai não estava em condições de assegurar, no plano material, e apesar de relatórios favoráveis, as necessidades das crianças, e que estas deveriam ser preparadas psicologicamente para a vida com o pai. A questão voltou, para nova solução, ao tribunal de segunda instância.

Sentindo-se cada vez mais ameaçadas de separação, as crianças, em 2012, de nove e seis anos, tornaram-se crescentemente angustiadas e reagiam violentamente a cada visita dos funcionários do SSA.

Apesar de todo este quadro, o tribunal de recurso de Tbilissi veio a decidir que os rapazes deveriam regressar para a companhia do seu pai.

Entendeu, nomeadamente, que eventualmente as respostas das crianças seriam previamente preparadas e que seria saudável para estas a vida em companhia do pai, concluindo no sentido de os voltar a reunir com este.

Transitada a sentença em julgado, a família da mãe opôs-se à entrega dos rapazes, os serviços sociais procuraram, por duas vezes, levar as crianças pela força, mas estas defenderam-se, vindo a mostrar-se impossíveis posteriores tentativas de execução da sentença. As crianças vivem ainda hoje em companhia da sua família materna.

Diante deste quadro de dificuldades e perante a violência que uma eventual, e sempre possível, tentativa de execução da sentença significaria na vida das crianças, a sua tia materna, N.TS. apresentou, mediante queixa, a questão ao TEDH, sob o prisma do artigo 8.º da CEDH, direito à vida privada e familiar.

O TEDH examinou a admissibilidade da queixa à luz da qualidade da tia. Esta não é vítima, e em princípio, apenas são admitidas a queixar-se, as vítimas diretas de uma violação da CEDH. As vítimas são, no entanto, menores, que encontraram refúgio na companhia da tia materna. Faz então pleno sentido que esta supere a sua dificuldade material (e não jurídica – recorde-se que hoje o Protocolo à Convenção sobre os direitos das crianças, das N.U., instituindo um mecanismo de queixas, permite às crianças queixarem-se diretamente ou por intermédio de alguém ao CDC – neste sentido também à luz do artigo 8.º da CEDH, o TEDH entendeu que assistia legitimidade às crianças para se queixarem), e apresente queixa por elas. Por isso a queixa indica o nome da tia N.TS. e Outros, os rapazes.

Passando ao exame de substância, o TEDH, entendendo que as crianças são parte integral no processo interno na medida em que é objeto do litígio a sua confiança ou não ao seu pai, o que lhes interessa diretamente, examinou se foram preenchidos dois requisitos, a saber o do direito das crianças a serem representadas em juízo e a serem ouvidas, e o de saber se o seu interesse superior, enquanto crianças, foi atendido pelos tribunais de Tbilissi.

Notou, desde logo, que se verificou um esforço no sentido da representação judicial das crianças, proposta pelo SSA, mas que esta não foi avante. Sobre a questão de saber se as crianças deviam ser ouvidas, o TEDH retirou das fontes do direito internacional relativo às crianças, que estas, desde que tenham uma capacidade mínima para exprimir as suas posições, devem ser ouvidas. Ora, não o foram, em nenhum dos passos das várias fases processuais desta odisseia judicial que tiveram que atravessar, tendo apenas sido efetuados relatórios periciais de vária natureza (sociais, pedopsiquiátricos…) sobre elas.

Passando à segunda questão, a de saber se o interesse superior dos rapazes foi atendido pelos tribunais de Tbilissi, o TEDH observa que estes tribunais podiam julgar, como o fizeram, no sentido da reunião das crianças com o pai, por esta ser certamente, no plano dos princípios, uma realidade importante e representar um esforço social louvável. Mas este segundo teste não resiste à objeção de que os rapazes não queriam viver com o pai, posição que manifestaram à sua maneira, exprimindo angústia, enfrentando a sua própria desordem, reagindo com violência às tentativas de execução da sentença.

Por não terem ouvido as crianças, por serem ainda pequenas, os tribunais de Tbilissi não estavam em condições de avaliar o sentido do superior interesse destas, em termos reais, concretos, e por isso não puderam dar materialização a esta importante regra, presente em todos os instrumentos internacionais relativos aos direitos das crianças.

Verificou-se assim, nas pessoas dos três rapazes, a violação do seu direito à vida privada e familiar, consagrado no artigo 8.º da CEDH.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira