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TEDH, 20 de outubro de 2016, Mursic c. Croácia

7 nov 2016

Preso condenado em dois anos de prisão que foi sendo sucessivamente colocado em diversos  estabelecimentos prisionais por queixas de  mau comportamento. Queixa relativa a privação da liberdade em estabelecimentos sobrelotados com disponibilidade de espaço inferior a 4 e a 3 metros quadrados. CEDH, art.º 3.º, não violação parcial.

Mursic foi preso por roubo e condenado em dois anos de prisão. Passou sucessivos períodos em prisões diferentes, por queixas de mau comportamento, e muitos desses períodos foram passados em celas de ocupação múltipla, com espaço disponível inferior a quatro metros quadrados, tendo ocorrido alguns períodos, dos quais, um correspondente a 27 dias, em espaço disponível inferior a 3 metros quadrados.

Mursic queixou-se internamente por várias vezes, chegou ao Tribunal Constitucional croata que lhe negou a admissão do recurso e queixou-se ao TEDH.

Esta Alta instância internacional considerou que a queixa era admissível quanto ao problema e quanto ao esgotamento dos recursos. Mas em Seção de 7 juízes considerou não se verificar a violação do art.º 3.º da CEDH (proibição da tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes pela disponibilidade de escasso espaço privativo em detenção). Mursic pediu o reenvio do processo para a Grande Chambre que o aceitou e voltou a decidir pela não violação do artigo 3.º

Esta solução dada ao problema pelas duas instâncias do TEDH ficou a dever-se à consideração de que se existem critérios, como os do Comité para a Prevenção da Tortura, também do CoE, que impõem a não disposição de um espaço inferior a 4 m quadrados, o TEDH teria como função, a resolução de problemas  e a verificação de que os critérios relativos aos direitos humanos teriam sido ou não violados. Perante esta fiscalização sucessiva do TEDH, comparada a uma fiscalização preventiva do CPT, o critério do TEDH seria menos exigente, ou seja não seria aceitável uma prisão em espaço inferior a 3 m quadrados.  E esta, a acontecer, determinaria a existência de uma forte presunção de facto conducente à afirmação da violação do art.º 3.º, a cargo do Estado, que poderia ser compensada por outros fatores, caso estes existissem. Para o TEDH seriam válidos os critérios desenvolvidos na sua jurisprudência Ananyev, segundo os quais, desde que o preso disponha de espaço suficiente para dormir, tenha 3 m quadrados de superfície de chão e a cela seja organizada de modo a permitir a circulação entre o mobiliário nela existente, não haveria violação do artigo 3.º. Juntou a estes critérios, o critérios desenvolvido na jurisprudência Idalov segundo a qual o espaço em celas de ocupação múltipla (ou seja, por vários presos simultaneamente) não pode ser inferior a 3 m quadrados.

Quanto aos factores que podem compensar a forte presunção de facto relativa a uma violação do artigo 3.º da CEDH da responsabilidade do Estado, verificados que sejam os enunciados critérios dos casos Ananyev e Idalov, estes seriam o escasso tempo de imposição de pouco espaço ao recluso, a existência de atividades fora da cela e a liberdade de movimentação dentro do estabelecimento penitenciário, o facto de haver pelo menos 1 hora de exercício físico por dia e as condições gerais do estabelecimento prisional (asseio, existência de biblioteca…).

Chegados ao fim da leitura do Acórdão, tudo parece estar pelo melhor no melhor dos mundos possível e o leitor, de um modo algo Panglossiano, sentir-se á feliz com a verificação de que o TEDH considerou existir violação do art.º 3.º da CEDH pelos 27 dias passados em cela com menos de 3 m quadrados disponíveis, e não violação quanto aos restantes períodos, com a atribuição de uma indemnização pelos danos morais com recurso à equidade e com o pagamento parcial das despesas declaradas pelo queixoso, a que a Croácia foi condenada pelo TEDH.

Mas apesar desta prisão considerada pouco dura e compensada pela “liberdade de pátio” de que Mursic gozou, levantam-se várias vozes dissidentes no coletivo da Grande Chambre que incomodam o leitor.

Para os juízes Sajó, Lopez Guerra e Wojtyczek, existe uma oposição entre esfera íntima do recluso e esfera pública da vida deste que impõe a ocupação de um espaço disponível superior a 3 m quadrados. Com esta situação, o conjunto de fatores que poderiam afastar a forte presunção de facto não a podem afastar. Por fim, o julgamento ao aceitar 3 m quadrados como bitola mínima, petrifica o sistema de resolução da Convenção, o que não é bom.

O voto dissidente de Lazarova Trajovska, de De Gaetano e de Grozev também não é confortável para um leitor anteriormente satisfeito. Estes magistrados entendem que há que considerar um período único de disposição apenas de 3 m quadrados. Que o TEDH deveria ter seguido o critério do CPT, que era de 4 m quadrados. Que é importante que o TEDH esteja em sintonia com as demais organizações dos DH. Por outro lado, a sobrelotação prisional, como problema sistémico, não pode ser resolvida com a aceitação da disponibilidade de pouco espaço. Ao resolver o caso, o TEDH deveria ter pensado na execução do seu acórdão nos termos do art.º 46.º da CEDH e ser exigente no sentido, não de aliviar uma preocupação sistémica, mas de resolver um problema sistémico. Ao indicar 3 m quadrados em vez de 4, o TEDH estaria a sobrepor-se, sem legitimidade, à agência especializada do CoE na matéria, que é o CPT.   Considerar que existem meios para compensar a perda do espaço privado disponível, é um argumento pobre face à importância da área privada para a intimidade da pessoa.

Por fim o juiz português também se pronunciou de modo dissidente. O magistrado português distinguiu entre hard e soft law em direito internacional público. Sendo conhecidos os critérios da hard law, a soft law imbrica-se, pelo trabalho jurisprudencial, pelo trabalho das organizações internacionais, nomeadamente, na hard law e vai, por via de uma consolidação costumeira, (a convicção de que uma prática é direito, a convicção de que é obrigatória) evoluindo para hard law em DIP.

Assim terá sucedido com os critérios relativos à ocupação do espaço nas celas das prisões e aos problemas da sobrelotação prisional. Ao fixar 4 m quadrados em sintonia com as demais organizações internacionais o CPT estaria num trabalho de consolidação em hard law do direito da ocupação das prisões, de muito interesse. Ao fixar um critério inferior, o TEDH teria retirado juridicidade aos critérios que o CPT e as demais organizações internacionais têm vindo a conseguir estabelecer. Para mais, segundo o juiz português, encontrar um critério de compensação só é válido no sentido de agravar uma consideração; assim, se não houvesse espaço livre disponível no exterior, isto seria relevante para dizer que, acrescentado ao pouco espaço privado disponível, a forte presunção de facto de violação não estaria, de todo, afastada. Nunca, para dizer que, havendo espaço exterior disponível ficaria mitigada a escassez de espaço privado, porque não a compensa.

Empregando os critérios do CPT, o juiz português chega à conclusão de que o queixoso passou 2/3 do seu tempo de prisão em espaços sobrelotados com pouco espaço disponível, porque inferior a 4 metros quadrados.

E para aumentar a preocupação do anteriormente satisfeito leitor, conclui, dizendo : “ao não prestar a devida atenção aos princípios do CoE e ao ignorar a transformação do direito soft em hard, a maioria fixou uma regra que vai conduzir a uma interpretação meramente casuística, e sensível aos factos, da CEDH…” (…) …”deixa a impressão de um sistema europeu de proteção dos direitos humanos, incoerente”.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira