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TEDH, 21 de março de 2017, Mitrovic c . Sérvia

27 mar 2017

Condenação penal por autoridades judiciais de Entidade não reconhecida internacionalmente. Execução de pena em Estado reconhecido sem processo judicial de reconhecimento e execução de sentença. Fuga. Nova prisão imposta ao queixoso até ao seu indulto presidencial. CEDH, art.º 5.º par. 1, direito à liberdade e à segurança. Violação.

Mitrovic foi preso por suspeita de homicídio em 1993.  As autoridades judiciais da República da Krajina Sérvia, entidade não reconhecida pelo direito internacional, que exercia então a jurisdição de facto sobre o território da República da Croácia, mantiveram-no em prisão preventiva até 1994, vindo então a condená-lo em oito anos de prisão.

A entidade que exercia a jurisdição de facto sobre o território da República da Croácia, durante os anos de guerra na antiga Jugoslávia, deixou de existir com a adoção do Acordo de Base sobre a Região da Eslavónia Oriental, da Baranja e da Sírmia Ocidental, de 15 de Novembro de 1995, conhecido como o Acordo de Erdut. Por meio deste Acordo, a República da Croácia reassumiu o controlo da integridade do seu território.

Depois do Acordo de Erdut, o queixoso foi transferido para a prisão de Stremska Mitrovica, em território sérvio, a pedido das pessoas que ainda controlavam o estabelecimento penitenciário onde se encontrava Mitrovic em cumprimento de pena, sedeado em território croata. Imperativos de segurança estiveram na base da transferência de um estabelecimento penitenciário para outro.

As autoridades sérvias não procederam a qualquer processo de reconhecimento e execução de sentença judicial estrangeira, de condenação em pena de prisão, como o vinha já exigindo o Supremo Tribunal de Justiça sérvio em casos semelhantes.

Preso até 1999, e autorizado, nesse ano, a uma saída precária, Mitrovic não regressou à prisão. Foi preso em 2010 ao tentar atravessar a fronteira para a Croácia e ficou em prisão até 15 de Novembro de 2012, altura em que lhe foi concedido um indulto presidencial.

Queixou-se ao Tribunal Constitucional da dimensão penal da sua privação de liberdade e queixou-se a um tribunal cível, pedindo uma compensação por privação de liberdade injustificada. O Tribunal Constitucional, não contrariando embora a jurisprudência do Supremo Tribunal sérvio sobre a necessidade de um processo de reconhecimento de sentença condenatória, entendeu que este processo não era aplicável ao caso, uma vez que a República da Krajina Sérvia não existia como um Estado.  Por outro lado, o crime que Mitrovic cometera e porque fora julgado tinha relevância social e humana, por se tratar de um homicídio, que importa a um Estado reprimir. Por fim, Mitrovic beneficiara de todas as garantias da Justiça Sérvia, tanto mais que fora indultado pelo presidente da República.

O processo cível, o seu pedido de compensação não foi atendido na medida em que a sua condenação foi considerada lícita tanto em primeira instância quanto em recurso. Por fim, o processo não pôde subir ao Supremo por ser de valor inferior à alçada deste tribunal.

Mitrovic queixou-se ao TEDH depois da decisão do TC embora ainda antes de se queixar ao tribunal de primeira instância cível. Veio a falecer antes da decisão da sua queixa perante o TEDH, em 2014. Em 2015 os seus familiares pediram para lhe suceder na queixa o que o TEDH concedeu pela existência de um interesse suficiente na prossecução da queixa, de acordo com a sua jurisprudência, nomeadamente no caso Valentin Campeanu c. Roménia.

A queixa de Mitrovic foi prudente. Não se queixou sobre o período de prisão posterior ao Acordo de Erdut (da anterior prisão às mãos da República da Krajina Sérvia, possivelmente, apesar de certamente abusiva, não se poderia queixar, pois haveria uma situação de falta de jurisdição, por a decisão de condenação não ser imputável a nenhum Estado internacionalmente reconhecido…), embora já na Sérvia. Apenas se queixou da imposição que lhe foi feita, prendendo-o, de permanecer em prisão de 2010, altura em que foi detido ao tentar alcançar o território da Croácia, a 2012, altura em que lhe foi concedido o indulto presidencial.

O TEDH aceitou a sucessão na queixa dos familiares de Mitrovic e, decidindo sobre a admissibilidade, considerou haver esgotamento dos recursos internos com a queixa ao Tribunal Constitucional. Sobre a propositura da ação cível já depois de se ter queixado, o TEDH verificou que Mitrovic perdeu também nesta ação e que a decisão deste processo ocorreu antes do seu Acórdão (dele, TEDH). Por isso, apesar da posição contrária do Governo sérvio, não se verificou nenhum abuso do direito de queixa da parte de Mitrovic, que esgotou todos os meios disponíveis, adequados e efetivos.

Quanto ao fundo, o TEDH verificou haver uma privação injustificada de liberdade à luz do art.º 5.º par. 1 da CEDH porque repousava numa condenação de entidade não reconhecida no plano internacional. Para o TEDH, a verificação do Supremo Tribunal sérvio de que nestes casos é exigível das autoridades judiciais a realização de um processo de reconhecimento de sentença estrangeira de condenação em pena de prisão e de execução desta sentença, indica que as autoridades Sérvias tinham consciência das dificuldades que este tipo de cumprimento de pena representa.  E que possuíam a resposta para o problema. Ao não terem cumprido este requisito para a execução da pena de Mitrovic, incorreram na violação do direito à liberdade e à segurança de Mitrovic.

Houve assim a violação do art.º 5.º par. 1 da CEDH da parte da Sérvia.

 

por: Paulo Marrecas Ferreira