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TEDH, 22 de dezembro de 2015, Lykova c. Rússia. Prisão arbitrária. Maus tratos. Responsabilidade das autoridades pelo suicídio

4 jan 2016

Prisão de jovem sem registo da detenção. Maus tratos para obtenção de confissões. Testemunho da dor intensa. Suicídio.

Serguei Lykov e P. foram presos no quadro de uma operação de polícia no distrito de Voronej. Segundo P., que no decurso do quadro processual retirou por várias vezes o seu testemunho, acabando por o confirmar, numa audiência em tribunal em que se sentiu seguro, e em que pediu a proteção contra a polícia, na qualidade de testemunha, os dois jovens foram forçados a despirem-se, tendo os pés e as mãos sido atados com uma fita adesiva.

Durante a detenção foram espancados, tendo acabado por ser separados. P. relata que ouviu Lykov gritar durante uma hora numa sala vizinha da esquadra.

No final, Lykov foi levado a um gabinete num 5.º andar onde terá redigido a confissão que a polícia pretendia dele. Num momento de ausência dos agentes, atirou-se pela janela, vindo a falecer no dia seguinte, em consequência das lesões provocadas pela queda.

Lykova, mãe de Lykov, acionou um conjunto de mecanismos, para obter o reconhecimento da atuação deficiente das autoridades, mas sem sucesso. O primeiro obstáculo com que se deparou foi o da ausência de registo da prisão dos dois adolescentes. Na ausência deste, a prova da existência de prisão tornou-se necessária. Nomeadamente, não foi avisada do falecimento de Lykov e veio a encontrar o seu corpo nu na morgue. Por outro lado, o relatório de autópsia, verificando que Lykov faleceu dos traumatismos provocados com a queda, identificou outras lesões cuja origem foi incapaz de determinar. Certas lesões nas mãos, nos pulsos e nos braços, seriam vestígios de luta, ora nem as autoridades nem P. relataram qualquer quadro de luta no interior da esquadra.

Lykova acabou por se queixar ao Tribunal europeu dos direitos humanos, sendo que, assim que esta alta autoridade internacional comunicou as suas observações ao Governo arguido, foi acionada uma comissão de investigação especial, cujo resultado foi o da inexistência de provas dos factos discriminados.

Neste quadro, importante para o TEDH foi em primeiro lugar, o facto de que Lykov e P. entraram de boa saúde sob o controlo das autoridades policiais. Outro elemento importante foi o de, por repetidas vezes, P. ter procurado esclarecer o que se passou na esquadra, de que tinha conhecimento, tendo por igual número vezes, retirado as suas declarações, até ao momento em que em audiência num tribunal, sentindo-se seguro e pedindo proteção contra a polícia na qualidade de testemunha, voltou a relatar o que se passou. P. reside hoje na Suécia, para onde emigrou para se sentir em segurança. Por fim, mas de não menor importância, a ausência de registo da prisão de Lykov e de P., bem como um comportamento em que as autoridades deixam antever uma inércia próxima da ausência de vontade em promover as necessárias investigações, são elementos que relevam para a apreciação do TEDH.

Este procedeu à análise dos elementos da queixa de Lykova e concluiu pela violação do direito à liberdade e à segurança (art.º 5.º par. 1 CEDH), na medida em que Lykov e P. foram presos contra a sua vontade, pelas autoridades sem que estas, em momento algum, fornecessem qualquer fundamentação para esta detenção.

A sistemática recusa em investigar as condições da prisão na esquadra e a causa da morte de Lykov, atestada pela consideração das autoridades de que ninguém terá forçado Lykov a suicidar-se, corporizam a violação processual dos artigos 2.º e 3.º da CEDH, na leitura que o TEDH fez desta situação. Com efeito, para além da violação substancial, a omissão do dever de proceder a uma investigação corresponde a uma violação processual.

Por fim, em relação com a ausência de registo, a situação alegada de nudez das vítimas, o testemunho dos gritos de Lykov, as marcas patentes no corpo deste que não estavam em relação com a defenestração, representam um corpo de provas que não compete a Lykova demonstrar, mas cuja demonstração da irrelevância, para efeitos do artigo 3.º da CEDH (tortura/substância), compete ao Governo demonstrar. Com efeito, a situação de dependência que uma prisão acarreta na pessoa de um detido, provoca, a cargo do Estado, o ónus da demonstração plena da ausência de maus tratos cometidos pelos seus agentes.

A violação do direito à vida na sua vertente material foi também verificada pelo TEDH. Diante da vulnerabilidade que o quadro que se vislumbra causou a Lykov, as autoridades tinham, além do dever de o proteger contra elas próprias, o dever de o proteger contra ele próprio. O conjunto de humilhação, o possível receio das consequências da confissão extorquida, o desespero provocado pelos maus tratos terão levado Lykov a atirar-se pela janela. Competia às autoridades impedi-lo.

A mãe de Lykov obteve o estatuto de vítima diante do TEDH por ser a única pessoa em contacto próximo com Lykov, que dependia deste e de que este dependia. Nestas condições, não foi encarada pelo TEDH como terceira pessoa e a sua queixa foi aceite.

Registando estas violações, o TEDH atendeu, na fixação da indemnização devida pela Rússia a Lykova, ao seu desespero, ao sentimento de frustração e ao de injustiça que todo este quadro lhe provocou, atribuindo-lhe, assim, uma indemnização pelo sofrimento, a título de danos morais.

Atribuiu ainda indemnização a título de danos materiais, porque Lykova, em situação de incapacidade para o trabalho, dependia do rendimento do seu filho para prover ao seu sustento.

 

Autor: Paulo Marrecas Ferreira