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TEDH, 23 de abril de 2015. Grande Chambre, Morice c. França

5 maio 2015

Dois casos com intervenção do mesmo advogado. Defesa de juiz falecido em condições misteriosas em Djibuti. Caso da Cientologia. Acusações do advogado a uma magistrada em ambos os processos. Publicação de entrevista com observações fortes na imprensa. Presença de magistrado que tomou posição, em processo contra o advogado.  CEDH, artigo 6º, par. 1, violação, art. 10º violação.

Em 1995, o juiz Borrel, que tinha sido enviado em cooperação francesa com Djibuti, foi encontrado morto com o corpo meio nu e parcialmente queimado. Ambas as autoridades, as de Djibuti e as francesas concluíram que a morte se ficou a dever a suicídio.

A viúva de Borrel, também magistrada, não se conformou e nomeou Morice, seu mandatário, para que este promovesse as diligências no sentido de ser descoberta a causa exata da morte do seu marido. Veio, posteriormente, a colocar-se em dúvida a tese do suicídio. Entre outras razões, da análise de fotografias tiradas no momento em que o corpo foi descoberto, apurou-se que o mesmo havia sido regado com um produto caustico e posteriormente queimado.

Um filme, contendo estes elementos, foi informalmente transmitido com observações pouco agradáveis sobre Morice por um magistrado de Djibuti à juíza titular do processo em França que não o registou como meio de prova.

Noutro processo, conhecido em França como da Cientologia, a mesma magistrada não guardou cópia de um importante meio de prova, impossibilitando parcialmente a instância penal.

Morice, insatisfeito, concedeu uma entrevista ao jornal Le Monde em que criticou com veemência a magistrada. Em momento próximo, numa reunião de peritos, um outro magistrado afirmou a sua solidariedade com a magistrada e afirmou que o teor da entrevista não impedia que se não concordasse com ela.

Entretanto, dois magistrados visados na entrevista, entre os quais a magistrada acusada de má gestão processual por Morice, moveram um processo penal por difamação contra o advogado que veio a ser condenado, numa multa considerada pesada. Com o decurso do tempo, o magistrado que afirmara a sua solidariedade com a sua colega, ascendeu à posição de juiz da Cour de Cassation e integrou a formação judicial que confirmou a condenação de Morice.

Este queixou-se ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que, em seção, reconheceu a quebra do direito a um tribunal imparcial, atendendo à participação de um juiz, que havia tomado posição contra Morice, na formação judicial que, a final, o condenou. Mas não aceitou o argumento da violação do seu direito à expressão livre, uma vez que um advogado, onerado com deveres especiais pela sua particular posição na justiça, não goza da mesma autonomia que um jornalista.

Morice recorreu para a Grande Chambre que manteve a decisão anterior quanto à imparcialidade. E que, pela mesma razão que a seção, mas agora em sentido diferente, entendendo que um advogado tem, tal como o tribunal, uma posição central no processo. Por este motivo, assistem-lhe certos direitos, como o de contribuir para um debate esclarecido em torno de questões de interesse geral, ainda que as suas ideias, preocupem, choquem ou inquietem. A França, com a sua decisão de condenar Morice por difamação, não passou assim no teste da proporcionalidade da medida aplicada, o da sua necessidade numa sociedade democrática. Verificou, assim, a Grande Chambre, existir também a violação do direito à liberdade de expressão.

Verificou-se ainda, na Grande Chambre, a formulação de duas opiniões concordantes que, debatendo os termos da solução, mesmo assim a aceitam e se reconhecem, pelo menos em parte, nela. A questão não deixa de representar um dos grandes temas da jurisprudência do TEDH, não tanto na, pacificamente reconhecida, violação do dever de imparcialidade, quanto na questão, muito suscetível de debate, dos limites do discurso público dos advogados ao comentarem os processos que têm em mãos.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira