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TEDH, 24 de novembro de 2016, Muradyan c. Arménia

28 nov 2016

Prestação de serviço militar no Nagorno Karabach.  Questão entre soldados, violência sobre um deles, provocada por superiores sem exercício de disciplina militar. Rutura do baço. Malária. Falecimento do soldado. CEDH art.º 2.º Direito à vida: violação nas dimensões substantiva e processual. Não exame da questão de uma possível negligência médica e outros fundamentos aduzidos pelo pai da vítima.

Suren Muradyan (SM) prestava serviço militar obrigatório no Nagorno Karabach, uma República não reconhecida em direito internacional, sob ocupação militar da Arménia.

Um dia realizaram-se festividades em que a unidade tomou parte. SM levou um relógio emprestado que foi acusado de ter roubado e que se propôs imediatamente entregar ao seu proprietário, assim que foi levantada a suspeita de roubo.

Alguns oficiais, insatisfeitos com o resultado desta acusação, resolveram convocá-lo ao gabinete de um deles onde foi espancado com um bastão, tendo sido atingido na região do abdómen.

Em sequência destes atos, SM sentiu-se mal e deu entrada na enfermaria onde não se queixou do espancamento por receio de represálias. Apresentava um estado febril com uma temperatura superior a 40.º  Foi medicado para malária, a temperatura baixou, continuou a sentir-se mal e, num dos seus regressos à enfermaria, sentiu náuseas, e caiu morto.

A autópsia revelou uma rutura do baço que provocou uma hemorragia interna, temporalmente coincidente com a disputa com os oficiais. Os médicos não foram investigados, uma vez que SM não havia revelado o seu espancamento. Os oficiais, com folhas de serviço evidenciando um excelente desempenho nos quadros militares arménios foram ilibados. No fim de um processo judicial movido pelo pai da vítima, o tribunal de primeira instância condenou um deles em pena suspensa na sua execução, mas o tribunal de recurso veio a absolvê-lo.

Muradyan conseguiu levar a sua queixa ao TEDH, que, socorrendo-se da sua jurisprudência Chiragov (também objeto a seu tempo de notícia nesta página), entendeu que a Arménia exerce jurisdição sobre o Nagorno Karabach por exercer um total controlo militar sobre este território, mesmo que exista uma administração própria no território (ainda que se possa considerar que, por estar ao serviço das forças armadas arménias, SM estaria sempre sob a jurisdição arménia, o TEDH entendeu debruçar-se sobre a questão da jurisdição da Arménia sobre o Nagorno Karabach).

Examinando o caso, em que o TEDH foi confrontado com um verdadeiro quadro de proteção da parte das autoridades, nomeadamente as autoridades judiciais, aos oficiais materialmente responsáveis pelo acidente de que SM viria a falecer (a rutura não diagnosticada nem tratada do baço), o TEDH considerou que a primeira questão com que se defrontava era a questão da violação possível do direito à vida de SM.

E no que respeita à impunidade garantida aos oficiais que espancaram SM, com uma total ausência de exercício de processo disciplinar das forças armadas sobre estes, a Arménia violou, em substância, o direito à vida de SM.

Este entendimento foi confortado pelos relatórios do Alto-Comissário dos Direitos Humanos do Conselho da Europa ao tempo dos acontecimentos (2002), Thomas Hammarberg, que relata como perigoso o quadro de violência exercido pelos oficiais em relação aos homens sob o seu comando, uma vez que o processo disciplinar militar é preterido, preferindo os oficiais exercer a violência direta como castigo sobre os homens, sem qualquer controlo da instituição militar; um quadro de violência recorrente segundo o Alto-Comissário.

No tocante à dimensão processual, o TEDH entendeu existir, também, a violação processual do artigo 2.º, uma vez que não foi feita qualquer investigação ao quadro do conflito entre os homens e entre os oficiais e a vítima, sabendo-se embora, da autópsia, que houve um rebentamento do baço da vítima temporalmente coincidente com o espancamento, o qual não foi investigado, nem a sua relação material com a morte. As autoridades procuraram defender os seus oficiais, repousando nos seus excelentes desempenhos e deixaram morrer a investigação, alegando, nomeadamente, que os médicos nada haviam podido fazer, uma vez que a vítima mantivera o silêncio sobre o espancamento punitivo, do qual apenas se veio a saber pelo testemunho de um outro soldado, que depôs que a vítima não queria contar para não ter mais problemas. O silêncio ensurdecedor das autoridades corporizou a violação processual do artigo 2.º, direito à vida de SM.

As queixas sobre a negligência médica, a violação do art.º 3.º (proibição da tortura), da falta de meio de recurso destinado a pôr termo à violação (art.º 13.º), da não equidade e da falta de imparcialidade dos tribunais (art.º 6.º), todas elas formuladas pelo requerente, pai da vítima, não foram consideradas, julgando-as o TEDH consumidas pela verificação e condenação do Estado por violação do art.º 2.º, direito à vida de SM, nas suas vertentes substantiva e processual.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira