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TEDH, 28 de junho de 2016, Halime Kilic c. Turquia

4 jul 2016

Quadro de violência doméstica. Ano de 2008. Sucessivas queixas de Fatma contra o marido. Inoperância das medidas judiciais decretadas. Morte da vítima pelo marido, seguida do suicídio deste. CEDH, art.º 2.º e 2.º mais 14.º, violação.

A filha de Halime Kilic, Fatma estava casada há 17 anos, com SB de quem tinha sete filhos. Queixou-se em 2008, pelos constantes actos de violência que o marido lhe impunha sob o efeito do álcool.

Numa primeira queixa, Fatma pediu um relatório médico-legal que estabeleceu que os ferimentos apresentavam um quadro ligeiro.  Sucederam ainda três queixas. No decurso deste quadro processual penal, o Ministério Público veio a pedir ao tribunal a imposição de um conjunto de injunções ao arguido, pretensão que foi acedida.  Nessa altura, a casa de família foi atribuída a Fatma e aos sete filhos, devendo o pai deixar o domicílio conjugal.  Ficou determinado que não se poderia aproximar, nem praticar assédio por via de comunicações telefónicas ou outras da mesma natureza, e, quando sob a influência do álcool, que deveria manter a distância relativamente à mulher e aos filhos.

Ainda assim SB não cumpriu e conseguiu desviar dois dos filhos da guarda de Fatma, tentando fazer o mesmo com a sua filha que lhe resistiu e o impediu de a raptar.

De novo, SB se encontrou, desta vez acompanhado pelo irmão, com Fatma e as suas irmãs, agredindo-as os dois violentamente. De novo, os relatórios médicos indicaram ferimentos apenas ligeiros, sem perigo de vida nem ossos partidos.

De novo o Ministério Público, perante queixa de Fatma, pediu a aplicação de um conjunto severo de injunções ao tribunal, que este ordenou, sob a cominação de pena de prisão.

Num dos quadros de violência, em mais uma das quatros queixas de Fatma, o Ministério Público pediu o decretamento da prisão preventiva de SB ao tribunal. Mas este entendeu que sendo esta medida preventiva e não repressiva, não a podia adotar, deixando assim SB em liberdade.

O desfecho fatal teve lugar em Novembro de 2008.  Dias antes SB havia batido na cara de um dos filhos com a pistola com que veio a desferir um conjunto de tiros sobre Fatma, suicidando-se a seguir.

Halime Kilic queixou-se às autoridades turcas do desleixo dos seus funcionários que deixaram a morte de Fatma acontecer apesar dos vários alertas que esta lançou e das várias queixas que fez. A resposta dos tribunais turcos foi que porque SB se tinha suicidado, não se podia mais proceder contra ele, pelo que a queixa devia ser arquivada. De recurso em recurso, Halime deparou sempre com a afirmação do acerto da medida de arquivamento do seu processo de queixa pelo desleixo das autoridades.

Queixou-se ao TEDH, invocando a violação do direito à vida, substancial e processual, a discriminação de que Fatma foi vítima por ser mulher, a falta de equidade do processo interno que conduziu (art.º 6.º par. 1) e a inoperância das vias de reparação de uma violação dos direitos humanos no direito turco, medida à luz do art.º 13.º da CEDH.

O TEDH examinou com cuidado a queixa de Halime e verificou a existência de dois fatores que condicionam a apreciação da queixa de Halime. Human Rights Watch, a Universidade Hacettepe e o Ministério da Família turco reconhecem a existência de violência doméstica na Turquia. O artigo 3.º da Convenção contra a violência contra as mulheres, do Conselho da Europa, a Convenção de Istambul, prevê que a violência contra as mulheres é uma forma de discriminação e que o facto de, por não conseguirem dar-lhe remédio, as autoridades a tolerarem, é ele próprio constitutivo de uma discriminação, da responsabilidade do Estado.

Examinado o caso, o TEDH observa que o direito à vida que está reconhecido no artigo 2.º da CEDH implica para o Estado a obrigação positiva de proteger os grupos vulneráveis que são todos aqueles, que, pelos seus elementos identificadores, estão expostos a alguma forma particular de perigo.  No domínio dos factos, verificou que apesar de todos os pedidos de proteção do MP, todas as medidas decididas foram inoperantes.  Além disso mediou sempre um longo lapso de tempo entre a queixa e o decretamento da medida pelo tribunal.  Fatma continuou a ser vítima de violência. Os mecanismos de controlo decretados nas decisões judiciais, por duas vezes repetidos, não funcionaram, nomeadamente, SB nunca foi preso. Assim, quando já tinha a certeza de que este era perigoso, o tribunal recusou o decretamento da prisão preventiva pedido pelo MP. Sempre que o marido não cumpria, não existindo sanção, foi-se  adensando um ambiente de impunidade. Por fim, pessoas próximas da vítima e deste caso trágico, especularam sobre se Fatma não deveria ter fugido para uma casa de acolhimento. Ficara em casa, no domicílio conjugal, fugiu deste para a casa da mãe.  Não há a certeza que sejam eficientes para a proteção das mulheres, as casa de acolhimento na Turquia. Além disso não foi informada por nenhuma autoridade pública, interveniente no processo, de que se poderia valer da proteção de uma destas casas.

Por todas estas causas, houve para o TEDH a violação do art.º 2.º da CEDH.  Esta Alta Instância não se pronunciou contudo no acórdão sobre se a esta violação substancial acresceria a violação processual de uma falta de investigação.  Ao verificarem-se as sucessivas decisões de arquivamento da queixa de Halime pelo falecimento de SB, quando a queixa interna desta se dirige às autoridades, é de crer que o TEDH conclui também pela violação processual do art.º 2.º. 

Sobre a violação do art.º 14.º combinado com o art.º 2.º da CEDH, discriminação na violação do direito à vida pelas autoridades pelo facto de Fatma ser mulher, o TEDH reitera a observação que tece no início do seu raciocínio relativo à verificação de alguma violação a cargo da Turquia. Uma política que não protege os grupos vulneráveis, tolerando a prática de violência contra estes, equivale a discriminar este grupo (par. 112), assentando esta afirmação na disposição do art.º 3.º da Convenção de Istambul.

Por todo o processo e tudo aquilo que nele a requerente demonstrou, esta já produziu um começo de prova da existência de violência e de discriminação, a cargo do Estado, contra a sua filha, uma prova prima facie, que a Turquia não conseguiu desfazer.

Uma frase do TEDH é particularmente esclarecedora sobre a dimensão do dever positivo de proteção que incumbe, no contexto dos grupos vulneráveis, aos Estados: ao fecharem sistematicamente os olhos à prática de violência, as autoridades criaram um clima que favoreceu esta mesma violência (par. 120).

Verificou assim o TEDH, também, a violação do artigo 14.º combinado com o artigo 2.º da CEDH: por parte das autoridades turcas houve discriminação na violação por estas do direito à vida de Fatma.

Esta Alta Instância não entendeu pronunciar-se sobre as demais violações alegadas por Halime.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira