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TEDH, 28 de setembro de 2015. Grande Chambre. Bouyid c. Bélgica

5 out 2015

Estalo na face. Sentimento de inferiorização e precariedade sentido pela vítima, ainda que num caso de eventual menor gravidade da intervenção. A relevância da dignidade humana na apreciação do tratamento degradante. CEDH, art.º 3.º, violação substantiva e processual.

A família Bouyid tinha um historial de atritos com os agentes da esquadra de polícia local.  Um dia, perto do Natal, um dos filhos da família que tinha esquecido a chave de casa e tocava à porta com veemência, foi interpelado por um agente à paisana, conduzido à esquadra e esbofeteado, por ter pedido ao agente, em traje civil, que se identificasse. Foi colocado em liberdade uma vez identificado. Um certificado médico do mesmo dia, indica contusões na face e ferimentos no ouvido. O jovem apresentou queixa por estes factos à inspeção dos serviços de polícia.

Em Fevereiro do ano seguinte, outro moço da mesma família foi interpelado e detido para identificação. Ao inclinar-se sobre a secretária do agente que o identificava, este agrediu-o com uma bofetada. Uma vez identificado, foi colocado em liberdade. Um certificado médico do mesmo dia comprova contusões na face.

A família queixou-se igualmente à inspeção dos serviços de polícia competente, o que conduziu a uma investigação sumária dos polícias presidida por um juiz.  Este processo foi arquivado por falta de provas.

Num quadro de indiferença por parte das autoridades belgas, a família acabou por apresentar queixa ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.  Declarada admissível, e recebida pela seção, esta, em exame, considerou que a queixa não procedia. Não teria havido violação do art.º 3º da CEDH (proibição da tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes) porque o tratamento infligido não teria alcançado um patamar mínimo de gravidade, necessário para a aplicação do art.º 3º da CEDH.

A família não se conformou e pediu o exame do caso pela Grande Chambre, dentro do prazo que lhe faculta a CEDH.  Esta, na sua composição de 17 juízes, reexaminou a queixa da família Bouyid e concentrou-se em dois pontos essenciais para a sua decisão.

O primeiro foi o de fazer repousar a sua averiguação relativamente aos factos ocorridos, numa presunção de facto. Não sendo contestado que os jovens entraram na esquadra sem marcas na face, a comprovação médica de que as tinham depois de terem permanecido na esquadra, onera o Governo com o encargo de provar que os ferimentos não foram sofridos na esquadra. Não fazendo uma prova, para além de toda a dúvida razoável, de que as lesões não decorreram na esquadra, estas são tidas por terem ocorrido no interior da esquadra, às mãos dos agentes.

O segundo elemento importante para a decisão da Grande Chambre foi a consideração da dignidade humana. Ainda que o tratamento pudesse ser considerado, como o fizera a secção, de pouca gravidade, à luz do tratamento cruel ou desumano, releva para a sua gravidade, a ofensa à dignidade humana. Ora, uma pessoa detida numa esquadra, está em condições de vulnerabilidade e assiste-lhe um direito à proteção por parte dos agentes. Esta confiança, que ela deve poder depositar nos agentes, não pode ser traída. As vítimas eram muito jovens, menores ainda. A face é determinante na comunicação humana. Esbofetear alguém, atingindo-lhe a face, tratando-se de um menor numa situação de vulnerabilidade, atinge o patamar do tratamento degradante porque a dignidade humana dos menores foi atingida.

Para alicerçar esta resposta, o TEDH procedeu a um exame de vários textos de direito internacional, universal e regional, de direitos humanos e deles extraiu a referência à dignidade humana como princípio enformador de todos os direitos humanos. Verificou-se, assim, uma violação em substância do art.º 3º da CEDH.

Finalmente, o processo sumário que teve lugar na sequência da queixa apresentada à inspeção dos serviços de polícia, levou cinco anos a chegar a uma decisão de arquivamento, e o juiz, encarregado do processo, apenas ouviu os agentes da polícia, tendo recebido os seus relatórios, sem proceder a uma acareação de testemunhas que pudesse provocar a audição dos queixosos.  Não tinha, assim, elementos para julgar diferentemente, detetando-se, assim, uma falha no inquérito conduzido pelas autoridades nacionais. Aqui, também, se identifica uma violação, processual, do artigo 3.º da CEDH.

Alguns dos juízes votaram em sentido discordante deste acórdão na medida em que consideram que a polícia deve manter uma relativa margem de ação quanto ao seu comportamento, atendendo ao elevado contexto de tensão existente entre esta família e as autoridades.  

Contudo, nunca lhe será permitido desrespeitar os direitos humanos.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira