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TEDH, 29 de novembro de 2016, Lhermitte c. Bélgica

5 dez 2016

Casamento marcado pela infelicidade da esposa e seu pesado sentimento de responsabilidade. Relação possessiva com os 5 filhos. Quadro depressivo grave. Homicídio dos filhos pela mãe seguido por tentativa frustrada de suicídio. Condenação em pena de prisão perpétua por um tribunal de júri. Motivação da sentença. A questão da relevância de fazer perceber as motivações de uma condenação penal. Art.º 6.º par. 1 CEDH, não violação. Divisão da Grande Chambre, 7 votos dissidentes num coletivo de 17 juízes.

Lhermitte era professora de francês e de história no sistema de ensino belga. Veio a conhecer BM, que fora sempre assistido e protegido pelo Dr. MS que lhe financiou os estudos e veio a pagar ao casal, no momento do seu matrimónio, o apartamento onde a família vivia. O Dr. MS passou a viver também com a família no mesmo apartamento. No decurso da sua vida conjugal, Lhermitte e BM tiveram cinco filhos e a vida parecia correr bem a esta família assim constituída. BM tornara-se o assistente do Dr. MS e viajava regularmente para Marrocos.

Lhermitte contudo não convivia bem com a situação. Achava que o Dr. MS estava a mais no quadro familiar e que tinha uma posição muito dominante na vida da família. Desenvolveu ao longo do tempo um quadro de depressão em que foi perdendo pouco a pouco o contacto com a realidade da vida, exacerbou o seu sentido de responsabilidades e a ideia da impossibilidade da continuação deste modo de vida. Mas não encontrou solução. Resolveu suicidar-se depois de matar os cinco filhos. Contudo, depois de praticar os homicídios, não logrou consumar o seu suicídio.

Foi condenada em pena de prisão perpétua por um tribunal de júri na Bélgica, o qual, após um conjunto de pareceres de peritos psiquiátricos, repetido duas vezes a pedido dos juízes profissionais, respondeu de modo sucinto, por sim e por não a um conjunto de cinco questões muito laconicamente formuladas.

Lhermitte esgotou os recursos internos, alegando que entendia ter sido condenada e que o tribunal de primeira instância havia dado alguma forma de fundamentação da sentença, mas que não ficaram claras as razões que fundamentaram a sentença do tribunal e júri.

Foram os tribunais superiores belgas que lhe forneceram estas razões ao negarem provimento aos seus recursos por entenderem que a primeira instância, o tribunal de júri, havia decidido bem.

A questão chegou ao TEDH. A Seção inicialmente encarregada de examinar o caso, entendeu que não havia violação do artigo 6.º par. 1 da CEDH e que o julgamento tinha sido equitativo.  A recorrente suscitou o reenvio da questão à Grande Chambre que examinou o caso.

De interesse no julgamento da Grande Chambre é a consideração de que apesar de ser desejável a fundamentação da sentença, o artigo 6.º par. 1 da CEDH não a exige ainda, no estádio atual da evolução do direito. Mas razões devem ser dadas ao particular condenado como o reconhece a própria Grande Chambre, citando a sua própria jurisprudência proferida no caso Taxquet e em casos semelhantes em acórdãos proferidos contra França e Bélgica.

É interessante notar que esta jurisprudência Taxquet provocou alterações legislativas em França e na Bélgica, no sentido de tornar mais clara a fundamentação da sentença.

E foi precisamente na consideração deste ponto do problema que a Grande Chambre se dividiu, sete juízes entrando em dissidência. Num coletivo de 17 juízes, 7 juízes não formam uma pequena minoria.

O problema está em que as cinco questões às quais os jurados responderam foram formuladas de modo lacónico sem a precisão suficiente que tornaria clara uma resposta de sim ou não. As quatro primeiras foram relativas à sua capacidade em perceber o que fazia e em determinar-se para o fazer, e no facto de a sua conduta consistir num crime grave. E a última apenas, sobre a sua imputabilidade, diminuída ou não ao cometer os crimes, para o caso de se ter dado uma resposta afirmativa às anteriores. Mas o conjunto foi laconicamente formulado e de um modo padronizado. Entretanto, os juízes profissionais pediram por duas vezes as respostas dos jurados à quinta questão, com base numa repetição das perícias ao estado mental de Lhermitte.  E o Governo, nas suas alegações reconheceu que o júri já tinha formado a sua opinião de modo definitivo antes da segunda perícia mental…

Por isso, entendem estes magistrados que se Lhermitte pôde perceber a sentença do tribunal de júri no sentido da sua condenação e de perceber que existia fundamentação para a mesma no facto de ter cometido o crime, qualificado como tal, ela  não teve a oportunidade de entender a razão do sentido desta condenação. O seu quadro depressivo era suficientemente forte para ter sido tomado em consideração de modo mais aprofundado pelo tribunal de júri: para estes 7 magistrados, uma grande minoria de magistrados da Grande Chambre, o julgamento não foi equitativo porque se no plano formal, Lhermitte foi condenada porque matou, não foi suficientemente examinado o seu quadro patológico ao ter cometido os cinco crimes e por isso a motivação da sentença, exigida, apesar de tudo pela jurisprudência Taxquet, ficou-se por uma dimensão meramente formal, podendo ser ininteligível para a condenada.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira