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TEDH, 29 de setembro de 2016. Kevitt e Campbell c. Reino-Unido

3 out 2016

Decisão de inadmissibilidade de queixa relativa à equidade de processo civil de indemnização pelo ato culposo do qual resultou a morte. Explosão bombista de Omagh de 15 de Agosto de 1998. Utilização de “hearsay evidence” sob a forma de declarações para memória futura cuja validade foi examinada pelo tribunal.

Michael Kevitt e Liam Campbell são cidadãos irlandeses, atualmente em cumprimento de pena por atos diferentes daqueles que deram origem ao processo civil, cuja equidade contestam, tendo ligações a “The Real Irish Republican Army”.

Foram acusados de participação nos atentados à bomba que, em Omagh, uma cidade da Irlanda do Norte, em 1998, provocaram a morte de 29 pessoas, das quais uma mulher grávida de dois gémeos. Este atentado foi considerado dos mais graves, em todo o contexto de atos terroristas ligados ao conflito que opôs o IRA ao Reino-Unido.

Uma particularidade dos gravames da população de Omagh contra os réus no processo civil por “trespass” que lhes foi movido, e cuja equidade estes contestam, foi o de que os réus baralharam as pistas ao comunicarem que iria acontecer uma explosão à bomba antes de esta suceder, indicando vários lugares e prestando informação confusa com o fim de tornar impossível a prevenção do atentado.

A escolha da forma processual, que neste caso não foi a criminal, deveu-se à vontade, porventura mal expressa, das vítimas, de que os perpetradores dos factos fossem “levados a contas com a justiça”.  Foi escolhida a forma da ação por “trespass”, uma forma processual que visa obter compensação pelos danos morais e materiais por parte de quem, de forma intencional ou simplesmente negligente, provocou a morte de outrem.

A identificação das vozes ao telefone foi feita através de vários meios, que permitiram identificar os réus, um dos quais foi o testemunho de DR, um agente do FBI, que se terá refugiado nos EUA, e que se havia infiltrado nas fileiras do IRA para obter o conhecimento das atividades desta organização terrorista. O seu depoimento foi inicialmente prestado por vídeo conferência, depois por meios de prestação de depoimento gravada; posteriormente deixou de os prestar, pela insegurança de que viria a sofrer a seguir, ainda que residindo nos EUA.  O FBI justificou a não comparência de DR perante o tribunal pela insegurança de que este seria rodeado.

Os queixosos alegaram que os vários testemunhos, entre os quais o de DR, que fora central para a sua condenação numa indemnização de montante elevado, no quadro da ação por “trespass”, não puderam ser por eles contestados e que o tribunal tinha aceitado a prestação de um depoimento prestado por um individuo que houvera sido traficante de droga e tinha estado envolvido em várias atividades ilícitas de natureza criminal, com um “bad character” e sendo manifestamente um “bad guy”.

Alegaram, nomeadamente, a violação do art.º 6.º par. 3 da CEDH , alínea d) que dispõe que todo o arguido dispõe do direito de interrogar e de contra interrogar as testemunhas.

Os réus também contestaram outros critérios como, no plano da prova, o da “balance of probabilities” determinando o sentido da condenação em função do peso dos meios de prova aduzidos.

A “Court of Appeal”, embora reconhecendo a prática de erros por parte do juiz de primeira instância na orientação dos jurados, entendeu que os vícios se sanavam pelo modo como ele conduziu o processo e como havia garantido a idoneidade da recolha da prova, tendo permitido, a cada passo do processo, a sua contestação pelas partes.  Ao reconhecer a natureza “adversarial” do processo civil e ao dar a oportunidade aos réus de contestarem, a cada passo, a prova contra eles aduzida, o que um dos réus optou por fazer e o outro se recusou a fazer, valendo-se do seu direito ao silêncio, o juiz teria dado consagração, na prática, à natureza contraditória do processo civil.  Apesar da má qualidade de caráter de DR e do facto de ser um “homem mau”, o feixe de indícios e de provas do processo levaram o juiz de primeira instância, com legitimidade, a poder acreditar na veracidade dos seus depoimentos.

A “Court of Appeal” teve exatamente o mesmo raciocínio, e foi este, depois de a “High Court” ter negado a admissibilidade ao recurso dos réus, que o TEDH, na sua primeira seção, seguiu, decidindo no sentido da inadmissibilidade da queixa de Kevitt e Campbell.

Em primeiro lugar, o artigo 6.º par. 3 al. d), não é aplicável ao processo civil.  Sendo este contraditório, por natureza, desde que o mesmo esteja assegurado, não há, em processo civil que dar um direito tão lato quanto no direito penal, de inquirição contraditória das testemunhas. Sobre os critérios de prova, os réus dispuseram de toda a informação e de todas as possibilidades para procurarem inverter, num sentido que lhes fosse favorável, a “balance of probabilities”, o que um fez e o outro não. Foram informados dos seus direitos processuais em todas as fases do processo. O próprio depoimento de DR, ainda que admitindo a prestação do depoimento para a memória futura no quadro do processo, foi suscetível de debate e de contestação.  Aos réus foram dadas todas as possibilidades de inviabilizar este documento.

Por fim, os tribunais nacionais decidiram bem ao aceitar como válido o depoimento de DR: apesar de ele ser, com efeito, manifestamente, um “bad guy”, e manifestar um “bad character”, o facto de ele ter assistido às várias reuniões do IRA deu ao seu depoimento um valor probatório relevante, que foi confirmado pelo teor de vários outros elementos de prova (nomeadamente, num processo penal envolvendo a cooperação judiciária com a Eslováquia, o testemunho de um certo “Karl” confirmou a prova aduzida pelo testemunho de DR; por outro lado, um elemento da “Garda Siochana” irlandesa, no decurso das suas atividades de investigação, trouxe mais elementos corroborando o depoimento de DR – estes meios de prova, de outros processos, não foram transpostos para o processo civil em curso mas foram relevantes para assegurar a validade do depoimento de DR, pela aferição da sua qualidade enquanto meio de prova).

Enfim o juiz de primeira instância e a “Court of Appeal” certificaram-se de que, em todas as fases do processo, houvesse um controlo e uma validação da prova aduzida contra os réus, bem como a possibilidade da sua impugnação por estes.

Por todas estas razões, o TEDH, na decisão da sua primeira Seção, entendeu ser inadmissível a queixa de Kevitt e Campbell contra o Reino-Unido.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira