Simp

Está aqui

TEDH, 3 de setembro de 2015. Berland c. França

14 set 2015

Homicidio violento, verificação da inimputabilidade mental pelo juiz de instrução. Aplicação de medida de internamento por tempo indeterminado em hospital psiquiátrico. Um difícil debate. Art. 7.º CEDH, não violação. 

Berland, então com vinte anos de idade, cometeu em 2007, um conjunto de agressões à sua ex-namorada no local de trabalho desta, de que veio a resultar a sua morte.

Colocado em prisão preventiva veio a ser examinado por dois colégios de peritos em psiquiatria que concluíram que, no momento do cometimento dos factos, Berland foi atingido por uma perturbação psíquica que aboliu o seu discernimento e o controlo dos seus atos, nos termos previstos no Código penal francês.

O Ministério Público junto do tribunal de instrução pediu ao juiz a declaração de inimputabilidade de Berland, vindo em 2009, a seção de instrução penal competente a declarar que o agente tinha voluntariamente provocado a morte da vítima, mas que era penalmente irresponsável por estes factos, uma vez que tinha sido acometido por uma perturbação do entendimento que o tinha também impedido de controlar os seus atos.

A seção de instrução decidiu assim, o seu internamento imediato em hospital psiquiátrico, por tempo indeterminado, com controlo do mesmo, aplicando uma lei relativa ao internamento em hospital psiquiátrico de pessoas penalmente irresponsáveis, entrada em vigor após o cometimento dos atos pelo agente e após o início do seu processo penal.

Entendeu que esta lei, que permitia ao juiz de instrução não ter de remeter o agente penalmente irresponsável para o Governador Civil (Préfet), após ter declarado a inimputabilidade do agente como sucedia anteriormente, oque levava a um procedimento da responsabilidade do Governador Civil, mais moroso, não tinha relevância penal e por isso podia ser aplicada de imediato, ainda que os factos fossem anteriores à sua entrada em vigor.

O Requerente, Berland, percorreu, em recursos, o ciclo das várias instâncias competentes até à Cour de Cassation que, observando pontos de pequena importância sobre a decisão do juiz de instrução, manteve o decidido.

Berland queixou-se ao Tribunal Europeu, valendo-se de uma abundante jurisprudência deste no sentido de não ser admissível a condenação por aplicação de uma lei e de uma pena mais graves do que as vigentes ao tempo da infração (art.º 7º par. 1 da CEDH), e invocou a inadmissibilidade em direito penal de uma pena de duração indeterminada.

O TEDH entendeu que a lei nova, que determina a simplificação do processo administrativo exonerando o Governador Civil de uma intervenção no sentido de determinar o internamento psiquiátrico de um doente mental após o cometimento por este de um crime por que veio a ser declarado penalmente inimputável, e em que a sua patologia foi reconhecida por peritos, não é uma lei que pertence ao domínio central do direito penal. É mais uma lei de simplificação e eficiência que permite a um juiz de instrução, que procedeu a todas as necessárias e indispensáveis verificações, determinar o início de um tratamento em instituição psiquiátrica por tempo indeterminado, com revisão periódica do internamento. Para o TEDH não se verificou, assim, qualquer violação do artigo 7º par. 1 da CEDH, não havendo qualquer dificuldade na aplicação retroativa da lei nova, por esta ser uma lei de natureza não penal, eventualmente de simplificação administrativa, rodeada de importantes garantias, como a da revisão periódica da medida de internamento de duração indeterminada.

Os juízes Zupancic e Yudkivska emitiram, contudo, um voto discordante de alguma importância, com um conjunto de explicações detalhado, que revela a delicadeza deste problema e, certamente, o facto de estarmos a assistir a um debate, que se acentua agora com a admissão deste tipo de medidas de natureza administrativa decretadas por uma entidade judicial, que está longe de estar concluído tanto nos vários fora internos, como no domínio das instâncias internacionais de julgamento.

Um primeiro ponto da sua opinião discordante assenta na distinção entre a qualidade de uma pessoa e os atos que comete.  Nunca o direito pune alguém pela sua qualidade.  Apenas, eventualmente um multi-reincidente poderá vir a ser condenado por uma prática reiterada pelo manifesto perigo, atenta a sua tendência, em voltar a cometer infrações graves (Achour c. França). Ainda assim, deverá ser uma condenação rodeada de cautelas. A punição por um ato isolado não deveria assim, ser de natureza indeterminada, mas limitada no tempo, tendo em consideração a relevância para o direito, deste ato.

Uma punição desta natureza, ainda que descrita como não sendo uma punição, não pode, por esta mesma natureza, escapar ao controlo da legalidade do artigo 7º da CEDH.

As medidas graves, como o internamento em estabelecimento psiquiátrico por tempo indeterminado, não foram decretadas por um juiz ou por um coletivo de juízes, no termo de um julgamento completo rodeado de todas as garantias que presidem ao processo penal.  Foram decretadas, celeremente, por um juiz de instrução, relativamente isolado do parecer de outros juízes, e sem as garantias de um processo penal. Berland, nestes termos apenas teria beneficiado das garantias que presidem à instrução penal.

A pena é, apesar de todas as aparências, uma sanção com relevância penal. É com efeito, frequentes vezes, maior o sofrimento em hospital psiquiátrico, do que em prisão. Além do mais, a medida é de duração indeterminada, apesar da sua revisão periódica. E para os juízes Zupancic e Yudkivska tem, efetivamente a natureza de uma pena.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira