Simp

Está aqui

TEDH, 31 de janeiro de 2017, Kalneniene c. Bélgica.

6 fev 2017

Busca mediante mandado judicial num apartamento de um prédio.  Extensão não autorizada da busca a outra fração. Emprego da prova obtida em processo penal.  A questão do emprego de prova ilicitamente obtida. CEDH, art.º 8.º Violação. Artigo 6.º par. 1, não violação

As autoridades de polícia belgas efetuaram uma busca domiciliária num apartamento ocupado por um certo JR, um indivíduo investigado por auxílio à imigração ilegal e tráfico de seres humanos. Durante esta busca, conduzida no apartamento em questão, identificaram elementos que indiciavam que poderia ser necessário efetuar mais uma busca, noutra fração do mesmo prédio, a da Sra. Kalneniene. Enquanto a busca à fração ocupada por JR foi efetuada mediante mandado judicial, a busca efetuada na fração de Kalneniene foi efetuada sem mandado judicial, vindo a ser apreendida documentação variada, o que veio a determinar a incriminação penal de Kalneniene que acabou por ser condenada em cinco anos de prisão e numa pena de multa.

Depois de um percurso longo diante das jurisdições nacionais, em que Kalneniene não viu o seu direito reconhecido, queixou-se ao TEDH.

Esta jurisdição internacional examinou o direito Belga e a própria jurisprudência. E verificou que a Cour de Cassation belga, seguindo uma jurisprudência nacional designada por Antigone, entende que não se pode deduzir sempre a nulidade da prova, mesmo quando obtida com violação de um direito fundamental. Tal só acontece, se a irregularidade da obtenção prejudica de modo irremediável a limpidez da prova ou o direito da pessoa arguida a um processo equitativo. Esta solução jurisprudencial foi mesmo traduzida em disposições relativas à prova, numa revisão ocorrida em 2013 no Código Penal belga.

E este passou a ser o quadro da questão.  Apesar das alegações do Governo segundo as quais a obtenção da prova não era ilícita, o TEDH entendeu que um mandado de busca limitado a um apartamento não é suscetível, sem nova intervenção judicial, de ser utilizado de forma ampliada de maneira a abranger todo o prédio ou outras frações do mesmo, não identificadas no mandado.  Houve, assim, violação do artigo 8.º da CEDH, direito à vida privada e familiar de Kalneniene, pelo facto de ter havido uma busca domiciliária efetuada sem mandado judicial.

Kalneniene tinha contudo ido mais longe na sua queixa, sustentando que a prova tendo sido ilicitamente obtida, não poderia ter sido utilizada contra ela.  E que a jurisprudência Antigone e a posição dos tribunas nacionais, entre os quais a Cour de Cassation, violavam o direito a um processo equitativo, previsto no artigo 6.º par. 1 da CEDH.  Examinando o caso, o TEDH verificou que não houve nenhuma falha processual para além da obtenção ilícita da prova no processo penal que culminou com a condenação de Kalneniene.  Além disso, o crime que se veio a apurar era grave, auxílio à imigração ilegal e tráfico de pessoas e reclamava a intervenção do direito. Por fim, segundo a sua própria jurisprudência, o TEDH vem admitindo a obtenção ilícita de prova desde que o seu uso pelas autoridades não ofenda as regras do processo equitativo. Por unanimidade entendeu que não havia violação do artigo 6.º par. 1 da CEDH.  Por fim, embora Kalneniene se queixasse da não existência de um recurso efetivo da violação do art.º 8.º (art.º 13.º combinado com o art.º 8.º), o TEDH entendeu que esta não esgotou os meios internos disponíveis para obter, nomeadamente, a reparação da violação.

Embora o acórdão tenha sido adotado por unanimidade, dois juízes emitiram as suas opiniões concordantes.  Para os juízes Karakas e Turkovic, tudo está muito bem em termos gerais, mas o TEDH deve passar a formular uma jurisprudência relativa à exclusão da prova obtida ilicitamente.  Existem, com efeito, casos em que a prova ilicitamente obtida é inadmissível, como os casos de tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, ou a não representação por advogado sempre que esta seja obrigatória.  Haverá outros, caberá agora ao TEDH descobri-los e formular uma jurisprudência relativa aos casos de absoluta exclusão da prova ilicitamente obtida.  A segunda opinião, ainda da juíza Karakas é relativa à indemnização.  O TEDH não concedeu indemnização por danos morais a Kalneniene que a pedira sem a quantificar, remetendo ao prudente critério do TEDH a sua determinação. Este entendeu que a condenação do Estado pela violação do art.º 8.º era compensação bastante. Embora o crime fosse grave, a juíza Karakas entende que o crime de Kalneniene não era um crime de dimensão equivalente a um crime de terrorismo e que esta tinha experimentado algum sofrimento com a busca domiciliária sem mandado judicial.  Deveria, assim, ter sido indemnizada segundo juízos de equidade.

 

por: Paulo Marrecas Ferreira