Simp

Está aqui

TEDH, 3.ª Secção, D.B. c. Suíça, Acórdão de 22 de novembro de 2022

21 dez 2022

Criança nascida na Califórnia de contrato de gestação por outrem. Pai biológico e pai de interesse. Não reconhecimento do contrato de gestação na Suíça. Invocação da violação do art.º 8.º. 1 da CEDH, reconhecida. Invocação de discriminação contra os pais por serem homossexuais. Questão nunca debatida. Não violação. Beneficiário do reconhecimento da violação. O menor.

CEDH, artigo 8.º, alegação de violação do direito à vida privada e familiar de menor adotado por progenitor de interesse, num contrato de gestação por outrem não reconhecido pela lei nacional. Violação.

No processo de queixa D.B. c. Suíça, dois requerentes de género masculino queixaram-se da violação do artigo 8.º § 1 e do art.º 14.º em conjunto com este artigo, por violação do seu direito à vida privada e familiar e do seu direito a não sofrerem discriminação em razão da sua homossexualidade.

O problema.

O problema consiste na recusa por parte das autoridades suíças em reconhecerem o elo de filiação entre o pai intencional e uma criança nascida de um contrato de gestação por outrem, um contrato celebrado entre uma mãe que hoje se desconhece, o pai biológico e o seu companheiro, o pai de interesse. 

Os factos

Nascidos em 1973 e em 1976, os pais requerentes celebraram na Califórnia, em 2010, um contrato de gestação por outrem, sendo que estão ambos vinculados por uma parceria de associação, à luz do direito suíço, desde 2011.

Uma vez confirmada a gravidez, o casal obteve, da Justiça californiana, uma decisão com trânsito em julgado, segundo a qual ambos são os progenitores para todos os efeitos legais, da criança assim nascida. Esta veio a nascer em 2011, tendo sido exarado um registo de nascimento, e respetiva certidão, nos termos da decisão judicial, reconhecendo a paternidade do casal.

Chegados à Suíça, os pais requereram a inscrição do filho no registo central de pessoas suíço. Por decisão administrativa de 29 de Março de 2012, o registo civil de St. Gall rejeitou o pedido, à luz das disposições aplicáveis da lei suíça. Após o competente recurso gracioso, o Ministério da Administração Interna de St. Gall despachou no sentido do registo da criança no sentido do pedido dos requerentes.

No quadro das suas prerrogativas judiciais, o Office Fédéral de la Justice (o OFJ) recorreu contenciosamente perante o Tribunal administrativo de St. Gall. Este, por Acórdão de 19 de Agosto de 2014, acolheu a pretensão dos dois pais, à luz das regras aplicáveis, embora reconhecendo que o filho não deveria vir a sofrer o encargo de uma escolha da parte dos dois pais, que, eventualmente viria a ser de lamentar mais tarde. Não conformado, o OFJ recorreu ao tribunal Federal Suíço. O qual admitiu o recurso, tendo o considerado procedente, à luz da posição jurídica acolhida na lei, segundo a qual nenhuma gestação por outrem, nestas condições, é aceite no direito helvético.

Não se pronunciou sobre a igualdade homens-mulheres no acesso à posição de maternidade (neste caso, o problema do pai de interesse, não biológico, uma vez que o pai biológico foi corretamente registado), e bastou-se com a proibição geral da procriação por outrem que visa tanto as mães como os pais (o caso de uma mãe infértil a pretender ter uma criança do seu marido com a sua maternidade reconhecida), constante do ordenamento jurídico-legal suíço.

Notificados que foram do Acórdão, os requerentes queixaram-se tempestivamente ao TEDH, em 20 de novembro de 2015. Entretanto, em 1 de Janeiro de 2018, foi modificado o Code Civil suíço, no sentido de autorizar o registo civil do filho do parceiro também pelo pai de interesse, reconhecido nos termos legais (a parceria reconhecida neste caso), o companheiro efetivo.

Posteriormente à nova lei, em 21 de dezembro de 2018, o pai de interesse procedeu à adoção da criança, o que pode ter dado resposta ao destino jurídico do filho, embora não o tenha satisfeito no quadro das suas pretensões em relação ao direito e às autoridades suíças. 

Mais tarde, viria a ter lugar a confirmação, mediante referendo, da modificação introduzida no direito suíço. 

De interesse nesta questão, é que ninguém, nem os requerentes nem as autoridades, ficciona, à luz do direito suíço, a paternidade do pai de interesse. O instituto por todos reconhecido é o da adoção, o que sugere que, no tocante à queixa dos requerentes por discriminação, esta é abusiva. Pois em  nenhum momento foi óbice à adoção a homossexualidade avançada pelos requerentes. A situação seria tratada do mesmo modo se se tratasse de duas mães, ou de um pai biológico a superar a infertilidade de uma mãe pretendente ou ainda, eventualmente, o caso contrário. A condição de género do pretendente à qualidade de pai nunca foi minimamente levantada. Esta questão foi indiferente, para a solução do caso, nas várias instâncias em que veio a ser abordado.

A proibição suíça apenas se entende para evitar a consumação de um caso configurado como de fraudem legis à luz da opção do Parlamento da Confederação, nestes domínios da sua exclusiva competência, no sentido da proibição do contrato de gestação por outrem. Dura lex, sed lex.

É, sobretudo, aqui importante reter que a solução jurídica não se consolidou, pois, em torno de uma ficção jurídica reconstruindo no pai de interesse uma como que substituição do vinculo biológico de maternidade ou paternidade. Apenas se alargou a possibilidade de adoção plena a estes casos.

Esta questão, da adoção plena do menor neste caso, e este obiter dicta evocado no Acórdão tem importância, irá noutra dimensão, colocar a difícil questão do direito do menor ao conhecimento das origens, também um tema aceite na jurisprudência do TEDH, com resposta positiva, o que não obsta ao reconhecimento do instituto da adoção, mas irá a trecho relativamente breve ou longo, modificar a adoção plena como instituto que hoje conhecemos e com o qual trabalhamos.

O Acórdão do TEDH

O TEDH, assentando na relação entre estes dois problemas construiu uma ferramenta específica para tratar o problema dos autos na admissibilidade. O Governo manteve as suas exceções ao pedido dos requerentes, invocando a analogia com as questões de adoção rejeitadas pela França nos casos de contrato de gestação por outrem, embora sem razão, pois o sentido indicado nestes acórdãos do TEDH (Menesson e Labassee, objeto a seu tempo de divulgação nesta página), vai no sentido do reconhecimento como necessária, atendendo aos interesses dos menores, da adoção. Os requerentes, por seu turno, invocaram o Parecer do TEDH no pedido do Governo francês, de parecer nestas matérias P-16-2018-001, da Cour de Cassation francesa, solicitado, se bem me recordo, a título do mecanismo do reenvio da questão a título prejudicial reconhecido há relativamente poucos anos nos Protocolos à CEDH. Mas também aqui, quanto aos requerentes, sem que lhes assista completa razão. Ilustrando com mais detalhe o problema justamente colocado pelos requerentes, uma das suas pretensões de queixa foi a do sofrimento do agregado familiar nestes 8 anos sem guarida legal, que se refletiu no desenvolvimento da criança, hoje com mais de 8 anos. Chegamos assim à ferramenta do TEDH.

Para o exame da admissibilidade da questão, o TEDH colocou 2 questões: 1. A de saber se o problema subsiste ao tempo da apreciação da queixa, com resposta negativa; 2. O de saber se todas as consequências da dificuldade sofrida foram já apagadas, com resposta também negativa, a significar, que pela segunda questão, a queixa é admissível. Este critério virá a ser decisivo na terceira etapa do teste de convencionalidade da posição sustentada pelo Estado, a saber o da sua necessidade numa sociedade democrática (o conhecido teste de proporcionalidade). Significa isto, nesta etapa, que o TEDH admitiu a queixa, no plano da sua admissibilidade.

E nesta etapa reconheceu a importância que vinha dando, mais uma vez ao problema muito delicado do contrato de gestação por outrem e da sua relação com a necessária adoção do menor, no sentido de evitar maiores problemas à criança assim gerada.

Foram Terceiros intervenientes na qualidade de Amicii Curiae, a Ordo iuris de formação cristã, com origem polaca, que sustentou a existência de uma margem alargada de apreciação do Estado nestas questões, e a ADF internacional que opôs as suas reticências ao contrato de gestação por outrem de modo expresso, pois são tais as possibilidades de tráfico de seres humanos e de exploração comercial de pessoas, pelo que, em seu entender, a figura é de proscrever.

No tocante ao exame da substância da queixa, o TEDH aplicou o seu teste em três etapas. 1. Anterioridade legal da medida; 2. A sua cognoscibilidade no sentido da sua previsibilidade, e 3. A sua necessidade em sociedade democrática, o chamado teste de proporcionalidade. Respondeu positivamente às 2 primeiras, uma vez que foi em razão desta situação deles conhecida e cujos efeitos previram, que os requerentes celebraram o contrato de gestação por outrem na Califórnia e aí obtiveram o recém-nascido agora, com mais de 8 anos.

Novamente, no tocante à questão da proporcionalidade, o TEDH se socorreu dos seus Acórdãos Menesson e Labassee. Nestes Acórdãos, o TEDH reconhecia a legitimidade francesa da proibição do contrato de gestação por outrem, mas impunha às autoridades francesas o reconhecimento da adoção em razão dos problemas supre evocados. Regressou pois, à proporcionalidade, a 2.ª questão colocada a ferramenta que o TEDH construíra para examinar a admissibilidade do caso.

Para o TEDH, é claramente da margem de apreciação do Estado a opção parlamentar pela aceitação legal ou a rejeição do contrato de gestação por outrem. Mas a questão aqui levantada é a do interesse em reconhecer a adoção do menor. Um problema comum aos 3 Acórdãos (Menesson, Labassee e este que se encontra sob apreciação). A aparente novidade em ambos os pais serem do mesmo sexo não foi, de todo, uma questão relevante. Entrar em semelhante questão é matéria que os Acórdãos evitam, no quadro do respeito pela separação de poderes, não vão eles em seus considerandos revelar problemas extremamente delicados que sejam de natureza apta a desautorizar a solução legal dada pelos seus Parlamentos).  

Na verdade, a questão comum a todos estes casos é a colocação das autoridades nacionais perante o facto consumado. A criança nasceu regularmente no país de celebração e cumprimento do contrato de gestação por outrem, estando as autoridades tentadas a responder a este facto consumado com a severidade da resposta negativa. O que implica a consideração do melhor interesse da criança, à qual não foi dada oportunidade de se pronunciar sobre o destino que, para ela, os pais contrataram (pais, os três progenitores interessados, dos quais, dois são biológicos, e um, de interesse).

A esta luz, obviamente que prevalece o melhor interesse da criança, a superar a impotência em que são deixadas as autoridades nacionais e as leis que os seus Parlamentos democráticos adotam.

Quanto ao tempo demasiado longo entre o nascimento do menor e a sua adoção, houve naturalmente, a violação do artigo 8.º§1 da CEDH, pois o sofrimento que a situação de precariedade provocou no quadro familiar e que se repercutiu na vivência dos primeiros anos de vida da criança, tem algo de muito próximo com um problema paredes meias a todos estes, o da retirada aos pais biológicos das crianças para adoção, nos casos de divisão das famílias pela Segurança Social em clara violação das regras da reunificação familiar. A este respeito são esclarecedores os casos Assunção Chaves, Pontes e La Salette Soares de Melo, nomeadamente, entre nós. Um problema de stresse de guerra imposto a estes menores.

O TEDH muito justamente limitou a violação do art.º 8.º§1 ao menor e não aos dois requerentes adultos. Quanto ao artigo 14. º da CEDH em conjunção com o art.º 8.º, não examinou sequer a questão, muito justamente, de resto, pois a questão da dimensão de género não foi minimamente tema do Acórdão (contrariamente ao caso português de guarda de menor proferido no caso Salgueiro da Silva Mouta, proferido em 1999).

E, por isto, muito justamente limitou a indemnização ao menor. No valor de 15.000€ a título dos danos morais a merecerem reparação razoável, e no valor de 20.000€ a título de honorários de representante forense no processo de queixa, honorários, apenas, uma vez que não existem custas nem taxas judiciais neste processo de queixa. Fica, assim, constituída uma conta poupança ou algo equivalente, que os representantes legais queiram organizar em benefício do menor, para a disposição deste na maioridade.

De sufragar sem reservas este inteligente e muito humano Acórdão do TEDH.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos