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TEDH, 3ª Secção, Jeanty c. Belgica, Acórdão de 31 de março de 2020

8 abr 2020

CEDH, Artigos 2.º e 3.º, vertentes substancial e processual. Não violação do direito à vida, violação material e processual do direito a não sofrer maus tratos em detenção..

Jeanty um preso preventivo que se tentou suicidar por várias vezes no centro de detenção de Arlon, queixou-se contra a Bélgica em 2017. O queixoso (também designado por arguido em função do desenvolvimento da narração) era arguido de atentado ao pudor com violência e ofensas à integridade física, na pessoa da sua ex-esposa, as quais determinaram para esta uma incapacidade de vários dias para o trabalho.

Na sua detenção na esquadra de polícia, o arguido insistira sobre o seu desespero psicológico e pedira para ser internado. Ouvido por um juiz de instrução, foi preso preventivamente em Arlon. O juiz verificou e registou o seu estado de fragilidade psicológica. Ainda assim, o juiz ordenou a prisão preventiva do arguido pois existia, por força desta mesma fragilidade, o perigo deste cometer novas ofensas corporais na pessoa da sua ex-mulher, na medida em que o arguido se encontrava incapaz de dominar as suas emoções e a agressividade. Ao ordenar a prisão preventiva, o juiz comunicou ao centro de detenção a existência do perigo de o arguido vir a cometer suicídio.

E, com efeito, logo na sua chegada ao centro de detenção, o arguido tentou enforcar-se com o cinto, conseguiu apanhar uma faca que procurou espetar na barriga e chegou a tentar enforcar-se com o seu calção. Foi sempre impedido pelos guardas prisionais. Frente a este quadro, os agentes penitenciários resolveram deixar o arguido nu na cela, para que nada o pudesse ajudar a tentar atentar contra a própria vida. O médico da prisão foi, de imediato, informado da medida. Este veio a visitar o arguido, foi-lhe dado um calção e pôde tomar ar no pátio individual, durante vinte minutos. Foi a seguir colocado em vigilância especial e foi-lhe administrado um calmante.

No dia seguinte pôde vestir-se e veio a ser colocado em cela coletiva pouco depois. As autoridades afirmam tê-lo feito examinar por um psiquiatra, o que o queixoso sempre contestou, acusando a prisão de falsidade. Acabou por ser novamente visto por um médico de clínica geral, o qual aconselhou a detenção em centro com anexo psiquiátrico e adaptações do estado psicológico com apoio por psicoterapia.

O arguido não foi, contudo, transferido e veio a ser registado um agravamento da depressão, com um forte perigo da prática do suicídio. Mesmo assim, até à sua colocação em liberdade condicional, o queixoso acalmou-se e não tentou mais suicidar-se. Examinado por um psiquiatra, este relatou que o paciente tinha uma personalidade no limite, com traços de paranoia, com uma dominante possessiva, o que o tornava num perigo, tanto para os outros como para si próprio, sendo mais saliente o perigo com os outros, o que justificava a manutenção em prisão, mediante o apoio psicoterapêutico necessário. Acabou por ser colocado em liberdade condicional com a obrigação de não procurar mais encontrar a sua ex-mulher. Infringiu este dever e foi novamente preso, no mesmo centro de detenção de Arlon.

Aí registaram-se desenvolvimentos na cela coletiva, novas tentativas de suicídio, que justificaram a colocação em isolamento de segurança. Foi vestido com roupa que não permitiria o suicido e foi-lhe dada uma garrafa de água. Voltou a tentar suicidar-se com esta mesma roupa. Por essa altura, em que os guardas prisionais o conseguiram dominar e o impediram de cometer suicídio, recusou vestir-se e recusou almoçar, o que lhe valeu a sanção de colocação em cela disciplinar por três dias. A prisão indicou que teria consultado um psiquiatra nesse novo período de detenção, o que o queixoso contesta, acusando novamente a prisão do crime de falsidade. A documentação do estabelecimento prisional não é clara quanto a esta consulta.

O queixoso acabou por se queixar, internamente, contra a administração penitenciária; tendo perdido, queixou-se dos maus tratos, de falsidade e invocou o artigo 3.º da CEDH (proibição da tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes).

Acabou por ser condenado, em pena de quatro anos de prisão, pelas agressões cometidas sobre a ex-mulher, dos quais, dois em regime de suspensão de pena. Em 2019, esta sentença foi reformada. O queixoso foi considerado incapaz e irresponsável, justificando prisão e internamento imediato e definitivo. Encontra-se detido na prisão de Namur, frequentando ora a ala do regime geral, ora a parte psiquiátrica, quando não se regista falta de espaço.

Em termos de documentação internacional, o Comité para a prevenção da tortura do Conselho da Europa indicou que a manutenção de um recluso nu na cela é atentatório da sua dignidade humana e consiste num tratamento cruel, desumano e degradante, para o efeito da integração do artigo 3.º da CEDH.

Analisando a queixa, o TEDH entendeu que o queixoso apresenta vários fundamentos. Primeiro, as autoridades não o terão protegido contra as suas tentativas para pôr fim à própria vida (art.º 2.º, vida, material); segundo, não beneficiou dos necessários cuidados (maus tratos, art.º 3.º, material),e, terceiro, a investigação à sua própria queixa no plano interno, não foi efetiva (maus tratos, art.º 3.º, processual). A consideração destes fundamentos, como as razões de queixa do queixoso, foi o método seguido pelo TEDH no exame da queixa.

Quanto ao artigo 2.º, direito à vida, em sentido material, o dever de proteger o queixoso contra si próprio, é aplicável sempre que alguém não tenha morrido (o que coloca uma questão de congruência do raciocínio, na medida em que pode ser precisamente se alguém falece que o dever não terá sido cumprido, mas é um critério que pode ajudar a entender o próprio voto dissidente de alguns magistrados no final do Acórdão); este dever é de aplicação ainda que os ferimentos auto impostos não sejam graves; esta disposição é aplicável ao suicídio em detenção.

Após ter declarado a queixa admissível, o TEDH examinou o mérito da causa. Reiterou que existe a obrigação positiva, a cargo das autoridades, de proteger o indivíduo contra si próprio e em particular, de prevenir o suicídio. Este dever é particularmente relevante em prisão.

Quanto às tentativas de suicídio a sua existência é aceite tanto pelo Governo quanto pelo queixoso; havia uma real fragilidade psicológica do queixoso, embora, apesar desta fragilidade, os guardas prisionais conseguiram impedi-lo de pôr fim à vida. Por esta razão, num trecho algo sensível do Acórdão cuja linha de raciocínio não fazia esperar este resultado, o TEDH, na maioria dos juízes que votaram o Acórdão, entendeu não existir a violação do direito à vida na vertente material, o que esgotou a questão da aplicação deste artigo ao caso.

Quanto aos maus tratos (art.º 3.º da CEDH) resultantes da ausência de cuidados médicos em detenção, o TEDH entendeu que, apesar de a prisão implicar sofrimento, o art.º 3.º exige que este sofrimento se mantenha nalguma proporcionalidade, em particular no que respeita aos mais vulneráveis, como os doentes mentais. Quanto ao quadro médico, foi o próprio queixoso a indicar a sua vulnerabilidade extrema, a qual era conhecida. Tanto que, apesar da queixa interna do queixoso não ter sucedido, o Tribunal de Segunda Instância de Liège, que lhe negou provimento, reconheceu os maus tratos em detenção por falta de cuidados médicos na pessoa do queixoso. Enfim, no tocante às medidas de segurança, a sanção disciplinar de isolamento num quadro de grande sofrimento psicológico foi excessiva. Acrescentando esta a um quadro de alguma insensibilidade no tratamento médico, verificou-se a violação do artigo 3.º da CEDH, na sua dimensão material.

O TEDH passou, a seguir, à consideração da dimensão processual do artigo 3.º no caso sub judice. Os Estados devem prestar contas do modo como tratam os reclusos, e por esta razão tem de existir uma investigação efetiva. Soube-se, com precisão, o que se passou na prisão e não se extraíram as consequências. Logo, a investigação não foi efetiva, registando-se a violação do artigo 3.º da CEDH na sua vertente processual.

Não satisfeitos com o Acórdão produzido pela maioria do coletivo, os juízes Serghides, Paulo Pinto de Albuquerque e Schembri Olland emitiram uma opinião dissidente comum em que subscrevem as conclusões quanto à matéria do artigo 3.º mas entendem que o próprio artigo 2.º (direito à vida) foi violado na sua vertente material. Com efeito, apesar da vulnerabilidade exposta e conhecida do queixoso, a sua vida foi deixada correr perigo, pois não foi prestada atenção bastante à sua fragilidade e ao real perigo do queixoso vir a cometer suicídio. Nomeadamente, o juiz de instrução, conhecedor do perigo, que o registou e comunicou ao estabelecimento prisional, não ordenou a colocação do arguido na cela de observação do anexo psiquiátrico da prisão, que existia, e cuja determinação cabia dentro das suas prerrogativas judiciais. Este erro de apreciação do juiz de instrução ameaçou materialmente a vida do queixoso. Por seu turno, as autoridades prisionais preferiram deixar o preso na sua cela em vez de o conduzir à ala psiquiátrica e não informaram o juiz de instrução desta sua opção. A aplicação, neste contexto, de uma sanção disciplinar, mais agravou o desespero do queixoso. Conhecida como era a fragilidade do queixoso, as autoridades penitenciárias não a podiam ter ignorado, e por isso deveriam ter adotado as medidas indicadas (as supra enumeradas) imediatamente.

Quanto à maioria do coletivo do TEDH que decidiu a não violação do direito à vida na vertente material, aceitar, como o fez esta maioria, que as autoridades conseguiram impedir o suicídio e por isso não foi o direito à vida do queixoso ofendido, representa uma posição muito minimalista, pois revela que o próprio TEDH teria uma conceção fraca da extensão do dever de proteger a vida, a cargo das autoridades.

No fundo a questão pode ser apreciada de outra vertente: e se os guardas prisionais, por algum azar, não tivessem conseguido evitar o pior?

Os juízes dissidentes retomam os argumentos que a maioria expendeu para não chegar à posição que defendem. A saber que não houve uma adequação da conduta das autoridades à fragilidade conhecida do queixoso, segundo os próprios critérios já desenvolvidos em abundante jurisprudência anterior do TEDH; indicam ainda, como o Tribunal de Segunda Instância de Liège indicou, que as autoridades não cuidaram de proteger a vida do queixoso, e que foi por mera sorte que o pior não aconteceu. O que torna deplorável a insensibilidade do Tribunal de Segunda Instância de Liège que não retirou as consequências da sua consciência dos acontecimentos e denota alguma insensibilidade da parte da maioria da formação de julgamento do TEDH que decidiu esta queixa, optando pelo mínimo possível, mas ficando aquém da justiça exigível. Por estas razões estes magistrados, na sua opinião dissidente, entendem que o artigo 2.º, direito à vida, na sua vertente material, foi violado: não é necessária a concretização da ofensa à vida para existir a violação deste preceito, basta existir a colocação em perigo de tal modo que se o dano da morte não se verificar, tal se possa apenas imputar à extrema sorte das autoridades oneradas com o dever de proteger.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos