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TEDH, 3.ª Secção, Magnitskiy c. Russia, Acórdão de 27 de agosto de 2019

13 set 2019

CEDH, Artigo 3.º, condições materiais de detenção, espaço das celas; artigo 5.º § 1, direito à liberdade e segurança, na vertente do fundamento da prisão preventiva, art.º 5.º § 3, liberdade e segurança na vertente da demora da prisão preventiva;       Artigo 3.º, substancial e processual, em torno dos maus tratos alegados e da investigação insuficiente; artigo 2.º, direito à vida, substancial e processual; artigo 6.º § 1 iniquidade de uma condenação póstuma; art.º 6.º § 2 a responsabilidade penal não sobrevive ao autor de um crime. Sem questões de execução de sentença.

Magnitskiy era diretor de uma sociedade de auditoria e contas de capitais estrangeiros operando na Rússia. Auditava as contas de grandes sociedades russas de capitais estrangeiros que, em 2006, registaram grandes lucros. Na sequência destes lucros, o MAI nomeou uma equipe comandada por um major, para investigar possíveis condutas criminosas, nomeadamente de fuga ao fisco. Neste quadro, um tribunal de comércio separou uma filial rica das sociedades mães e entregou a sua gestão e lucros a uma sociedade russa sem qualquer conexão com as visadas. As empresas reagiram e Magnitskiy foi encarregado da organização dos processos penais de queixa, e civis, no sentido da recuperação do capital social da empresa expropriada.  Neste contexto, o próprio Magnitskiy acabou por ser interrogado pela polícia, primeiro como testemunha, e logo a seguir como arguido de vários crimes de evasão fiscal. A sua prisão preventiva começou em 2008, tendo sido sucessivamente renovada em janeiro, março, julho e setembro de 2009. O arguido recorreu sempre sem êxito das sucessivas renovações laconicamente justificadas, e perdeu sempre. Acabou por falecer, após a prorrogação da prisão preventiva de Setembro de 2009. No lapso entre a decisão negativa de recurso e o falecimento do arguido, este foi acusado e pronunciado por vários crimes de evasão fiscal.

Tinha formulado uma queixa ao TEDH, que a sua viúva pediu para continuar, tendo a mãe de Magnitskiy formulado outra queixa, em tempo posterior.

As condições materiais de detenção foram miseráveis. Verificou-se sobrelotação carcerária, escassa disponibilidade de instalações sanitárias, de uso comum a demasiados presos, fraca ventilação das celas, um espaço de cerca de 20 a 30 m2 ocupado por 8 a 15 presos, uma alimentação de má qualidade, muitas vezes servida já sem validade, nomeadamente atacada por vermes.

Magnitskiy ficou privado de assistência médica tendo sofrido uma doença na prisão, de que veio a falecer. Em maio de 2009 queixou-se a um médico da prisão de dores nas costas, peito e estômago. Foi diagnosticada uma doença dos discos da coluna vertebral com um síndroma de dor. O médico receitou-lhe diclofenac, um medicamento desaconselhado em caso de pancreatite. O paciente voltou a queixar-se de dores e foi-lhe diagnosticada uma pancreatite associada a uma colite com cálculos, ao ponto de ter sido recomendada a cirurgia. Magnitskiy foi, entretanto, várias vezes transferido, sempre com condições deficientes em termos materiais da detenção, e em termos médicos. Foi-se queixando e pedindo apoio ao diretor da prisão tendo os pedidos ficado sem resposta. Os seus advogados intervieram nalgumas ocasiões em que conheceram a situação. Sofria tanto que, em agosto de 2009, já não se podia baixar, nem deitar na cama. Em novembro de 2009, vomitava de 3 em 3 horas, foi levado numa jaula de ferro à enfermaria e aí, revoltou-se, tendo insultado a médica e o pessoal de enfermagem. Além de lhe terem sido aplicadas algemas, foi castigado com um bastão de borracha, vindo a falecer pouco depois.

As versões dos vários serviços são diferentes. A equipa psiquiátrica relata que só o teria visto morto, sentado num banco na cela, rodeado de urina, com marcas das algemas nos pulsos.

Os médicos disseram que a equipa psiquiátrica chegou ainda em tempo de vida do paciente, mas este já estava em situação difícil, por isso lhe foi aplicada uma massagem cardíaca. O pessoal da administração penitenciária, por seu turno, relatou que tivera conhecimento da situação de um preso em condição de saúde difícil na enfermaria, que veio a morrer, e por isso, lhe haviam pedido um relatório final.

Deste relatório ficou a constar que o recluso morreu pelas 21:50 do dia 16/11/2009, após um choque tóxico e uma insuficiência cardiovascular. Verificou-se a existência de uma colite, da necrose do pâncreas, de uma hepatite e de uma ferida crânio cerebral, entretanto fechada. O exame in situ ainda constatou marcas nos pulsos. Magnitskiy foi enterrado no dia 20/11/2009, a imprensa noticiou o caso; um relatório dos serviços comunicou a existência de celas com boas condições materiais de detenção, não existência de sobrelotação, sem dificuldades médicas de maior, apesar de ligeiras deficiências neste domínio. A BBC Rússia referiu o caso. A Procuradoria-Geral da República recomendou a abertura de um inquérito crime à morte de Magnitskiy. A mãe e a viúva deste receberam o estatuto de vítimas. A investigação acabou por concluir que não existia ligação entre a conduta de agentes oficiais russos e a morte de Magnitskiy. Um relatório médico indicou que a falta de cuidados médicos estava associada à morte de Magnitskiy e que havia marcas do uso do bastão de borracha. Posteriormente, dois médicos foram acusados de negligência, um dos quais de homicídio por negligência. Um deles beneficiou das regras de prescrição o outro foi absolvido de todas as acusações. Em 2013 a investigação à morte de Magnitskiy foi arquivada, com fundamento na ausência de qualquer crime. Entretanto, fontes oficiais asseguraram que a conduta das autoridades foi correta, no tratamento deste caso. Um relatório médico superveniente indicou os efeitos negativos do diclofenal no caso de pancreatite. O uso do bastão foi confirmado, pelas marcas que deixou, mas não foi considerado causa da morte. Ficou assente que o recluso não sofria de qualquer doença mental.

Após o falecimento de Magnitskiy, o processo penal contra ele continuou, à luz de uma jurisprudência do Tribunal Constitucional Russo. As vítimas sobrevivas pediram a sua extinção por falecimento, o que lhes foi negado, pois trazia a possibilidade da reabilitação do arguido que veio a ser condenado por vários crimes de evasão fiscal, em nove anos de prisão com uma proibição de exercer atividade por 3 anos, num processo destinado a servir de exemplo.

O TEDH apensou as queixas de Magnitskiy , da sua viúva e da mãe e declarou a competência destas para prosseguirem a queixa, na sucessão de Magnitskiy, reconhecendo-lhes o locus standi. Na verificação das várias fontes constatou a existência de uma Recomendação da APCE de 2014 (1966 de 2014) reivindicando a não impunidade para os assassinos de Magnitskiy.

Debruçando-se sobre a materialidade do caso, pronunciou-se, em primeiro lugar, sobre o espaço disponível nas celas à luz da sua jurisprudência Mursic  e Khlaifa. E concluiu pela violação material do artigo 3.º (substancial) por sobrelotação carcerária.

Num passo curioso do acórdão, neste seu trecho, as autoridades alegam ausência de memória, por destruição de registos que não lhes permitiriam recordar mais do exatamente sucedido. E por incrível que pareça, o TEDH aceita, em termos de gestão documental, a destruição do arquivo pelas autoridades, que vem retirar-lhes memória (o que geraria certamente revolta em qualquer documentalista e qualquer especialista na disciplina de gestão documental, num domínio tão importante da vida!). O que salva esta passagem do acórdão é que a falta de memória não justifica as razões de um comportamento, sucedendo que o CoE sabe da escassez de espaço disponível nas celas de prisão na Rússia.

Sobre a alegada violação do artigo 5.º § 1 da CEDH, por violação do direito à liberdade e à segurança, na vertente de a detenção não ter fundamento em suspeita bastante do cometimento de um crime, compreende-se que é legítima a preocupação com a fraude fiscal. O TEDH traz um importante critério ao dizer que a detenção é arbitrária sempre que exista má-fé das autoridades, sendo para este efeito importante a fundamentação da decisão de investigar e de deter. Ora, precisamente por a preocupação ser legítima e a suspeita poder razoavelmente existir, não se verificou aqui a violação deste preceito da CEDH.

Sobre a violação alegada do artigo 5.º § 3 da CEDH, violação do direito à liberdade e segurança por a prisão preventiva ultrapassar um prazo razoável de detenção, o TEDH entendeu mais uma vez este segmento de queixa admissível, e verificou terem existido 12 meses de prisão preventiva que não foram interrompidos senão pela morte do arguido. Para o TEDH, tinham de existir razões ponderosas para a detenção, a suspeita razoável, certamente que se manteve ao longo da execução desta medida de coação, mas a gravidade dos crimes imputados não basta por si só para justificar um prazo de execução demasiado longo. O perigo de fuga e de destruição da prova bem como de reincidência foi avaliado pelo Governo, mas, mais uma vez, a gravidade da sentença incorrida não justifica, por si só, a manutenção da prisão preventiva e os perigos que se invocam; tem de ter existência comprovada e fundamentada. Além do mais, não há evidência de que o arguido pudesse prejudicar a prova ou continuar a atividade incriminada. Neste sentido, foi violada a regra do prazo razoável da prisão preventiva. Registou-se, assim, a violação do art.º 5.º § 3 da CEDH.

O TEDH olhou ainda para a violação alegada do art.º 3.º da CEDH, pelos maus tratos e investigação insuficiente. Os princípios gerais constam de Bouyid c. Bélgica. Verificou-se a violação do art.º 3.º substantivo e processual (por referência ao uso que acabou por se confirmar do bastão e das algemas num momento terminal da vida do recluso bem como das incongruências dos vários relatórios).

Sobre a violação do direito à vida, substancial e processual, a referência é o Acórdão Campaneau c. Roménia. Para o TEDH existe a prova da inadequação dos tratamentos médicos, o momento do tratamento da situação de psicose (a revolta do arguido) no momento final, foi particularmente infeliz. A violação foi substancial e processual uma vez que são conhecidas as falhas da investigação.

Finalmente, a condenação póstuma de Magnitiskiy é particularmente chocante. Foram dois os fundamentos da violação, pela Rússia, do artigo 6.º neste ponto em especial. A iniquidade de um processo póstumo porque já não existe de todo defesa: artigo 6.º § 1, violação. E, por fim, segundo fundamento, a responsabilidade penal não sobrevive ao agente, o que atinge, a ser prosseguido, a presunção de inocência de modo irremediável, uma vez que a morte já ocorreu: art.º 6.º § 2, violação.

Foram pedidas medidas em execução de sentença (art.º 46.º). Mas o TEDH entendeu que a sua decisão é declarativa de condenação, cabendo a execução ao Estado sob a supervisão do CM.  Entendeu não ser necessária qualquer medida para o caso. Esta resposta do TEDH faz sentido na medida em que pela violência da promoção penal contra o arguido este processo assumiu, talvez para o exemplo, uma dimensão pessoal, parece ter sido conduzido intuitu personae, o que retira qualquer utilidade a uma medida de natureza genérica que o TEDH possa dar como orientação à Federação Russa. A não ser a de que estes casos, mesmo para exemplo, não se venham a repetir. Para isto as condenações e a publicidade deveriam bastar.

O Acórdão foi votado por unanimidade sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.