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TEDH, 3ª Secção, Timofeyev e Postpukin c. Federação Russa, Acórdão de 19 de janeiro de 2021

28 jan 2021

CEDH, Artigo 7.º e Protocolo n.º 7, artigo 4.º. Princípio da legalidade das penas (art.º 7.º CEDH), na apreciação de uma decisão judicial de colocação em vigilância administrativa de condenado com pena já cumprida, não violação; e direito a não ser punido duas vezes em razão da mesma infração (CEDHP7, art.º 4.º), mediante decisão judicial posterior ao cumprimento da pena que decide a colocação em vigilância administrativa, não violação. Artigo 6.º § 1 direito ao acesso ao direito, mediante a outorga necessária de apoio judiciário para um arguido que não está em condições pessoais de custear a sua representação judicial ou de assumir a própria defesa. Violação .

Timofeyev e Postpukin são dois cidadãos russos, condenados por crimes de extrema gravidade (homicídio e tráfico de estupefacientes), relativamente aos quais foi verificada a possibilidade de, uma vez colocados em liberdade após o cumprimento da pena, virem a reincidir. Neste sentido a administração penitenciária requereu ao tribunal da comarca competente a colocação de Timofeyev (1º queixoso) em regime de vigilância administrativa, nos termos da legislação aplicável, uma vez que se tratava de uma pessoa particularmente perigosa. Além da possibilidade verificada do 1.º queixoso vir a reincidir, eram fundamentos deste pedido a não cooperação do recluso durante o cumprimento da pena a que fora condenado e que executara, tendo este, nomeadamente, recusado prestar trabalho em detenção, e tendo o mesmo praticado 27 infrações disciplinares, das quais 7 não tinham ainda prescrito. Por estas razões, além do perigo de reincidência, o 1.º queixoso merecia a qualificação de transgressor do regime penitenciário. A audiência de julgamento deste requerente, para o efeito da sua colocação em regime de vigilância administrativa, foi sendo sucessivamente adiada, em razão dos seus sucessivos pedidos no sentido de obter apoio da sua família para a nomeação de um advogado que o representasse. Na audiência de julgamento, que veio entretanto a realizar-se, o 1.º queixoso opôs ao requerimento do estabelecimento prisional, que a sua personalidade não o conduziria à reincidência, tendo sido alvo de avaliação deficiente; e contestou a validade das sanções disciplinares proferidas contra ele e que lhe valiam a qualificação atribuída, de transgressor do regime penitenciário. O tribunal rejeitou a contestação do 1.º queixoso, com fundamento que não lhe cabia (a ele tribunal) controlar as avaliações, quer psicológica e de personalidade, quer as infrações disciplinares, que o estabelecimento prisional tinha verificado. Concluindo a audiência de julgamento, o tribunal da comarca competente concedeu a colocação do 1.º queixoso em regime de vigilância administrativa. Este recorreu e foi colocado em liberdade condicional na pendência do julgamento de apelação da decisão de colocação em detenção administrativa, decidida pelo tribunal da comarca. Proferindo a sua decisão, o tribunal de 2.ª instância entendeu que a vigilância administrativa não tinha natureza penal e por isso não havia uma aplicação retroativa da lei penal após o cumprimento da pena, e rejeitou o recurso do 1.º queixoso. Este acabou por ficar sujeito à medida de coação de termo de identidade e residência, na cidade onde vivia.  O 1.º queixoso solicitou, então, o alargamento do período temporal durante o qual podia permanecer na rua, em cada dia, bem como a redução das apresentações periódicas perante a autoridade, de três a uma por mês, o que lhe foi concedido.

Quanto a Postupkin (o 2.º queixoso), este fora condenado pelo crime de tráfico de estupefacientes, em pena de 7 anos e 6 meses, tendo sido verificado o perigo sério de reincidência. Pouco antes do termo final da execução da sua pena, a administração prisional acionou o tribunal da comarca competente com um pedido de colocação em regime de vigilância administrativa, nos termos da lei. Além do perigo constante de reincidência, o 2.º queixoso tinha sido o agente de 23 infrações disciplinares, tendo merecido, destarte, a qualificação de transgressor do regime penitenciário. O tribunal de comarca competente acolheu o requerimento do estabelecimento penitenciário e concedeu a colocação do 2.º queixoso em regime de vigilância administrativa. O 2.º queixoso recorreu desta decisão, com fundamento em que a sua condenação em vigilância administrativa tinha a natureza de uma segunda pena em relação à infração porque fora inicialmente condenado e cuja pena executara. Teria sido, assim, punido, uma segunda vez pela mesma infração. O tribunal de recurso rejeitou este pedido. O 2.º queixoso recorreu ao Praesidium do tribunal regional competente (operando como um supremo tribunal de competência regional, sendo necessário atentar na dimensão da Federação Russa), o qual rejeitou este último recurso.

Ambos queixaram-se ao TEDH. Após ter procedido ao exame do direito pertinente da Federação Russa, o TEDH avaliou a jurisprudência do tribunal constitucional russo (o TC) relativa às noções de condenado e de vigilância administrativa, e verificou a existência de uma diretiva do Supremo Tribunal de Justiça da Federação russa (o STJ), relativa à aplicação do regime da vigilância administrativa pelos tribunais incumbidos da sua integração e aplicação. Quanto ao direito comparado europeu, referiu os materiais constantes do seu Acórdão proferido no caso “De Tommaso c. Itália” (citado no § 62 do Acórdão em apreço).

Os fundamentos de queixa (griefs) foram, da parte do 1.º queixoso, a violação do princípio da legalidade constante do art.º 7.º da CEDH, no sentido de não ser punido após o cumprimento da pena por meio de uma sanção que não estava prevista no momento da sua inicial condenação definitiva e que, em consequência, não constava da parte dispositiva da sentença de condenação. Para o TEDH a questão central relativamente a este fundamento de queixa, é relativa à qualificação da vigilância administrativa como uma pena. O TEDH recordou que a noção de “pena”, no sentido do art.º 7.º da CEDH é uma noção europeia, ou seja uma noção algo desligada das noções dos direitos nacionais, e que é integrada, de acordo com o direito europeu aplicável. A noção europeia autónoma de “pena” está contida na jurisprudência do TEDH proferida nos Acórdãos Del Rio Prada; GIEM Sarl; e Ilnseher (este último também objeto de divulgação a seu tempo nesta página); todos referidos no § 71 do Acórdão. Para além desta demarcação do âmbito da noção, o ponto de partida para qualquer apreciação relativa à existência de uma pena está na determinação da origem da medida privativa da liberdade, a saber se esta resulta da aplicação de uma pena em sentido criminal. O TEDH estabeleceu, mediante os referidos critérios, uma distinção entre medidas restritivas de liberdade que prosseguem uma finalidade preventiva para as quais não se aplica o princípio da não retroatividade das penas constante do art.º 7.º da CEDH (ver a jurisprudência referida no § 73 do Acórdão em apreço) e as medidas restritivas da liberdade que não possuem esta finalidade preventiva e que caem no domínio de aplicação do princípio da não retroatividade das penas.

O TEDH observou que a colocação em regime de vigilância do 1.º queixoso, embora de natureza administrativa, restringia a sua liberdade e estava, como o reconheceu o Governo, em razão do perigo alegado, em relação com a inicial condenação definitiva, pela qual o queixoso já tinha cumprido a sua pena criminal.  Olhando para a qualificação interna segundo o direito da Federação russa, desta medida, esta pertence ao domínio da execução das penas criminais, recebendo a qualificação de medida administrativa. Citando novamente jurisprudência sua (§ 75 deste Acórdão), o TEDH observou que, sendo a noção de pena do art.º 7.º da CEDH, autónoma, em relação aos direitos nacionais, a ele, TEDH, compete proceder a esta qualificação, sem sofrer qualquer condicionamento resultante da natureza jurídica interna desta medida. O TEDH concordou com o TC russo e o STJ deste pais, em que a medida de vigilância eletrónica assentando no perigo de reincidência não era de natureza penal mas, sim, de natureza administrativa. Apesar da restrição de liberdade que esta medida traz em si, a sua finalidade não é sancionatória (segundo os regimes de prevenção especial e de prevenção geral dos Códigos penais), mas preventiva (dependendo do perigo de reincidência do destinatário desta medida). Quanto ao seu regime processual e previsão legal, esta medida, embora constante da panóplia de medidas em relação com a execução das penas criminais, estava prevista em legislação processual civil e hoje pertence, em direito interno russo, ao quadro de medidas de natureza administrativa. Em relação a outros casos objeto de análise da parte do TEDH, há que observar que as medidas administrativas aplicadas não foram particularmente constrangedoras para o 1.º queixoso (termo de identidade e residência, com um dever de apresentação periódica que veio a ser reduzido a requerimento do próprio interessado). Significa que a medida de vigilância administrativa não integrou a noção de pena no sentido europeu relevante para o efeito da aplicação do art.º 7.º da CEDH, não se tendo, assim, verificado a violação deste preceito.

O 2.º queixoso, por sua parte, acionou a violação do art.º 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH. Invocou a violação do princípio “ne bis in idem” relativamente às infrações penais pelas quais já havia sido condenado, representando a aplicação do regime da vigilância administrativa a imposição de uma segunda pena (a “entrada” da queixa do 1.º queixoso assentou na proibição de uma sanção que não estaria prevista no quadro legal aplicável ao tempo da condenação definitiva inicial, sendo para o 1.º queixoso, um agravamento da pena inicial. Como se viu, não se verificou a violação do art.º 7.º da CEDH. A exposição deste 2.º queixoso representa uma segunda “entrada” para um problema próximo, cuja analogia justificou a apensação das queixas. Aqui trata-se, para o 2.º queixoso, socorrendo-se do art.º 7.º do Protocolo n. 4 à CEDH, de invocar a proibição de um segundo julgamento sobre a mesma matéria de facto e as mesmas imputações, uma vez que um primeiro julgamento com condenação definitiva já teria sido executado).

Após a exposição dos argumentos das partes (Governo e 2.º queixoso), o TEDH voltou a determinar o âmbito das noções de “processo penal” e “acusação em matéria penal”, noções constantes dos art.º 7.º do Protocolo n.º 4 à CEDH, do art.º 6.º à CEDH e do próprio art.º 7.º da CEDH (este já apreciado); as quais têm um conteúdo autónomo europeu em relação às correspondentes noções nacionais. O TEDH bastou-se com a referência ao anteriormente exposto neste seu Acórdão (nos §§ 71-82 por remissão do § 86) e rejeitou este segmento da queixa do 2.º queixoso.

Em razão do paralelismo dos dois processos de queixa, o TEDH foi apreciando-os em paralelo. Abordou, a seguir, o segundo fundamento de queixa do 1.º queixoso, relativo à alegada violação do art.º 6.º da CEDH em razão da rejeição do seu pedido pelo tribunal da comarca que o julgara, no sentido da obtenção de apoio judiciário (as restrições invocadas pelo queixoso ao acesso ao direito) para o efeito de poder contestar o pedido do estabelecimento prisional, no julgamento que conduziu à aplicação da medida de vigilância administrativa.

A questão da admissibilidade deste segmento de queixa assumiu uma certa importância, na medida em que o TEDH respondeu ao primeiro fundamento de queixa (a violação alegada do art.º 7.º da CEDH) que a medida de vigilância aplicada tinha natureza administrativa para o efeito da aplicação do direito europeu (e a consequente verificação da não violação do preceituado no art.º 7.º da CEDH). Ora, tendo a medida natureza administrativa, uma denegação do acesso ao direito não seria de atender, à luz do art.º 6.º da CEDH, pois este apenas prevê as medidas de natureza civil ou penal. Ainda assim, valendo-se da sua jurisprudência estabelecida no caso “De Tommaso” referido, o TEDH, reconhecendo que a medida administrativa esteve em relação com a matéria penal, entendeu ser aplicável o art.º 6.º § 1 da CEDH, admitindo este segmento de queixa. Julgando quanto ao mérito, o TEDH destacou, sempre com recurso à sua anterior jurisprudência (referida nos §§ 98 e 99 e segs. deste seu Acórdão), que a Convenção não obriga automaticamente à concessão do apoio judiciário. É nomeadamente de operar a distinção entre o regime do art.º 6.º § 1 da CEDH, que não a impõe, e o regime do art.º 6.º § 3.c) da CEDH que a exige (em razão de exigência dois interesses da justiça). O critério decisivo para o TEDH, é dar às disposições da CEDH que exigem o cumprimento dos direitos, um caráter concreto e efetivo. Ou seja, a concessão do apoio judiciário só será exigível se corresponder a uma necessidade real e concreta. À luz da natureza oficiosa do processo de determinação e imposição de vigilância administrativa, o apoio judiciário requerido apenas seria necessário quanto à obtenção do patrocínio de um mandatário forense que assegurasse a equidade do processo, no tocante, nomeadamente, ao exercício dos direitos de defesa. Apesar de verificar que a jurisdição interna (ao nível do processo perante o tribunal de comarca) foi paciente em relação ao 1.º queixoso, adiando a audiência de julgamento, enquanto aguardava a nomeação por este de patrono para a condução da lide, a negação da concessão do apoio judiciário quando este o requereu, à luz do tempo de aplicação da medida de vigilância (8 anos) e do facto de que apesar do brocardo segundo o qual a ninguém aproveita o desconhecimento da lei, o 1.º queixoso não tinha preparação técnica para exercer convenientemente o seu direito de defesa. Verificou-se, assim, neste ponto particular, a violação do art.º 6.º § 1 da CEDH, denegação do acesso ao direito.

Continuando a avaliação em paralelo (um pouco como um estudante de matemática que resolveria em paralelo duas equações matemáticas, num quadro, lado a lado, linha a linha), das queixas, o TEDH passou à avaliação do segundo segmento da queixa do 2.º queixoso para quem as restrições administrativas tinham injustificadamente ofendido os seus direitos a circular livremente e a escolher livremente a respetiva residência. A questão da admissibilidade deste segundo segmento da queixa do 2.º queixoso ficou dependente da noção de decisão definitiva interna em processo penal russo, à luz dos critérios do TEDH. Referindo a situação interna na Federação da Rússia, antes e depois de 1 de janeiro de 2012, para o efeito da consolidação da noção europeia de decisão definitiva (a qual também é eficaz relativamente à ordem jurídica portuguesa, uma vez que a noção de condenação definitiva europeia, para o efeito do processo de queixa, não corresponde à nossa noção de caso julgado), citando novamente a sua própria jurisprudência (§ 111), o TEDH observou que este 2.º queixoso apresentou, em relação ao contexto temporal estudado neste parágrafo, a sua queixa tempestivamente, ou seja, não perdeu o benefício do prazo de 6 meses de queixa.

Passando ao mérito da questão, o TEDH aceitou que o regime de vigilância a que o 2.º queixoso foi submetido representou um feixe de medidas com natureza restritiva da liberdade e que corporizaram efetivamente uma ingerência no seu direito à liberdade de circulação, prevista no art.º 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH. Seguindo o seu método de apreciação, o TEDH verificou a previsão legal da medida, a acessibilidade da lei aplicada, no sentido de ser conhecida, e por isso previsível, quanto à sua aplicação. Para o TEDH, sendo a medida administrativa, a sua aplicação a um comportamento anterior à lei que a instituiu não era problemática. Ainda assim havia que indagar da precisão da lei quanto aos seus sujeitos passivos e quanto à sua aplicação temporal. O TEDH aceitou que era precisa e previsível quanto ao tempo. Além disso, o 2.º queixoso era qualificado como reincidente perigoso. Ficou para último o exame da sua necessidade numa sociedade democrática (teste de proporcionalidade), o qual, à luz das respostas anteriores mereceu resposta positiva, ou seja, não se verificou a violação do art.º 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH.

O Acórdão foi decidido por unanimidade no tocante à apreciação das queixas e da admissibilidade de cada um dos fundamentos de queixa; por unanimidade, quanto à verificação da violação do artigo 6.º § 1 (negação do acesso ao direito na vertente da não concessão do apoio judiciário ao 1.º queixoso); e por 6 votos contra 1, relativamente à não violação do art.º 2.º do Protocolo n.º 4, na pessoa do 2.º queixoso (direito à liberdade de circulação e de fixação de residência).

Não foram formuladas opiniões concordantes, concordantes parciais ou dissidentes.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos