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TEDH, 3ª Secção, Volodina c. Rússia, Acórdão de 9 de julho de 2019

18 jul 2019

TEDH, 3.ª Secção, Volodina c. Rússia, Acórdão de 9 de julho de 2019

CEDH, artigo 3.º tratamentos cruéis desumanos e degradantes, artigo 13.º direito a um recurso efetivo, artigo 14.º discriminação de género.

Volodina, que obteve a mudança do seu nome pelas autoridades num quadro de violência de género, queixou-se contra a Federação da Rússia em junho de 2017. Uma ONG neerlandesa veio a ser a sua representante no processo de queixa perante o TEDH.

A requerente queixou-se de que as autoridades russas falharam no seu dever de prevenir, investigar e operar a promoção penal dos atos de violência de que sofreu às mãos do seu anterior companheiro e que as autoridades não instituíram um quadro legal capaz de combater a discriminação de género.

Em 2014 a requerente iniciara um relacionamento com S. e o par viveu junto a partir de então. Em 2015, Volodina separou-se e levou o seu filho. Nesse momento, S. ameaçou-a de morte se recusasse voltar a viver com ele. Em 1 de janeiro de 2016, a ofendida queixou-se de que S. tinha partido o para-brisas do carro e que levara os seus documentos. Entretanto, retirou a queixa, depois de ter reencontrado os documentos. Em 5 de janeiro, a polícia arquivou o processo. S. tinha entretanto mandado substituir o para-brisas, e por isso a polícia arquivou esta queixa. A ofendida mudou-se para Moscovo. Como tentava obter emprego, distribuía currículos seus. Convidada para uma entrevista, foi ao local e aí foi raptada pelo entrevistador, um cúmplice do marido, que a entregou a este.

S. levou-a de volta para a vila onde inicialmente viviam, Ulyanov, deu-lhe um murro na cara e outro no estomago. Os golpes foram de tal violência que, no hospital, se concluiu que os tecidos moles da cabeça tinham sido atingidos. Descobriram também que Volodina estava grávida de 9 semanas, mas que corria o perigo de perder a criança. A ofendida aceitou proceder a um aborto medicamente induzido. Queixou-se à polícia. Em março de 2016, a polícia obteve uma desistência formal da ofendida relativamente à sua queixa e procedeu ao arquivamento deste novo processo.

Novamente, agora em maio de 2016, S. agrediu a ofendida, batendo-lhe na face e atingindo-a, empurrando-a para o chão, onde tentou estrangulá-la. Novamente Volodina queixou-se à polícia de Ulyanov onde foi feito o registo dos seus ferimentos, aos quais se iria atender para o efeito de uma eventual promoção penal. A polícia de Ulyanov entendeu ainda que o processo dependia da jurisdição de Samara, e fez seguir o processo para os colegas competentes. Estes reabriram o processo e pediram a Volodina para fazer novos exames, o que esta recusou. A polícia de Samara arquivou então o processo.

No mesmo mês de maio de 2016, a Requerente voltou a Moscovo onde procurou fazer a sua vida. Esperava conseguir aí escapar a S. Ao sair de casa, num dia de julho de 2016, em Moscovo, S. abriu a porta do seu carro e atacou-a. Os vizinhos, que assistiram à agressão, chamaram a polícia. No mesmo dia, a Ofendida queixou-se à polícia de Moscovo, da violência de S. Em 1 de agosto de 2016, o S. avisou-a de que tinha sabotado o sistema de travagem do seu carro, tendo-lhe cortado um tubo de óleo dos travões num pneu traseiro. Um polícia tomou nota da ocorrência. Em 8 de agosto, a polícia de Moscovo arquivou o processo com fundamento em que S. e a ofendida tinham vivido juntos e se conheciam, e que não havia matéria para iniciar uma promoção penal contra S.

A ofendida pediu em tribunal que a investigação se mantivesse aberta, o que lhe foi concedido pelo procurador supervisor, o qual ordenou a continuação da investigação. Em outubro e em novembro de 2016, a polícia arquivou o processo. Em setembro de 2016, a queixosa encontrou um dispositivo de localização GPS na sua carteira. Queixou-se à polícia de que estava a ser vigiada e perseguida. A polícia abriu uma investigação.

Mais tarde, em março de 2018, S. partilhou fotografias privadas de Volodina numa rede social, sem o consentimento desta. A polícia abriu nova investigação, a qual está pendente, sem resultados. No mesmo mês de março de 2018, a queixosa reportou telefonemas ameaçadores de S. Este ter-se ia postado à frente da sua casa no dia destes telefonemas. A polícia recusou abrir uma investigação penal porque não existiria o perigo de S. concretizar as suas ameaças de morte. Numa viagem de táxi, S. agrediu-a e ela defendeu-se com um spray. Mesmo assim, S. conseguiu levar a sua carteira com os documentos e os telefones portáteis. O motorista e Volodina queixaram-se à polícia. O S veio a entregar a carteira com os documentos à polícia, mas não os telefones, que entregou mais tarde a esta. Como os telefones, a carteira e os documentos acabaram por ser devolvidos, a polícia recusou a abertura de nova instrução sobre estes factos.

A ofendida acabou por pedir a proteção do Estado, estatuto que a polícia recusou reconhecer. No final, o tribunal concedeu-lhe a mudança de nome para Volodina para proteger a sua identidade e protege-la de mais sevícias. Acabou por se queixar ao TEDH.

O TEDH estudou a questão e observou, a título prejudicial, que há registo de violência de género na Rússia, e que os Relatórios, nomeadamente do PIDESC e da CEDAW, nas suas concluding observations, sublinham a violência de género e formulam recomendações à Federação da Rússia sobre esta forma de violência. Examinando o Direito, abordou a questão da violação alegada do artigo 3.º mais 13.º da CEDH (tratamentos desumanos cruéis e degradantes mais ineficácia de recurso para lhes pôr termo). Considerou a queixa admissível e, quanto ao fundo, elencou os critérios seguintes: a violência de género transcende o quadro do relacionamento individual; e é conhecida a vulnerabilidade das vítimas desta forma de violência e a sua carência de proteção. No caso concreto, para existirem maus tratos (art.º 3.º) estes devem assumir uma certa gravidade; a violência física contra a ofendida foi documentada (nomeadamente, teve de abortar); a ofendida não ficou inativa, tendo-se queixado repetidamente. As obrigações positivas do Estado são as seguintes: 1. Instituir um quadro legal eficiente de prevenção e proteção; 2. Conhecendo a situação, proteger a vítima, no sentido de prevenir a violência; 3. Existindo queixas, investiga-las efetivamente.

Sobre a existência de um quadro legal de prevenção e proteção contra a violência, o TEDH observou que não há nenhum instrumento de combate à violência de género (tal é sublinhado nas Conc. Obs. PIDESC e CEDAW), as disposições penais existentes no CP da Federação Russa não são suficientes. O procedimento depende de queixa, nos casos em que a lei pode ser de algum socorro. Após uma citação de abundante jurisprudência, o TEDH concluiu que não existe o quadro legal efetivo de prevenção e proteção contra a violência de género. Quanto à proteção da vítima de violência, no sentido de prevenir concretamente a violência, a quebra da integridade pessoal obriga o Estado a proteger os indivíduos, a ofendida não ficou inativa e queixou-se; os Estados do CoE conhecem, todos eles, medidas de proteção ou afastamento, inibições, ordens para segurança, despachos de proteção, etc… A Rússia não tem nada disto, sendo dos poucos Estados da Europa nestas condições. Por fim, as autoridades não tentaram sequer – seriamente – proteger a vítima. Não se verificou, assim, a proteção do particular. Sobre o dever de investigar efetivamente, a investigação é essencial para assegurar a prevenção e a proteção. Registaram-se pelo menos sete episódios de violência todos eles reportados e notados. Cada um deles era fundamento bastante para uma investigação cuidada. As autoridades mostraram relutância em investigar mesmo perante os atos mais graves e as ameaças mais sérias. A ofendida não dispunha de vias alternativas para se queixar. O Estado falhou ao investigar. Por tudo isto verificou-se a violação do artigo 3.º, embora o TEDH tenha entendido não se justificar a consideração do artigo 13.º.

Quanto à queixa por discriminação de género (artigo 3.º [maus tratos] mais 14.º [discriminação]) o TEDH considerou-a admissível. Quanto ao fundo, os princípios aplicáveis são os de que para existir a aplicação do artigo 14.º deve existir um tratamento diferente de pessoas em situação análoga. A violência de género é discriminação contra as mulheres. O regime do ónus da prova é o de sempre no TEDH, prima facie a cargo da queixosa, para além de toda a dúvida razoável para o Estado. Na discriminação, o TEDH afere a valia da prova prima facie por meio das estatísticas disponíveis que confirmam a existência de um bastante fumus boni juris para o efeito de adquirir um sólido início de prova que permita a transferência para o Estado do ónus de provar, para além de toda a dúvida razoável, que esta invocada situação de discriminação não se verificou. No caso, o TEDH colocou primeiro a questão de saber se existe na Rússia violência de género que afete desproporcionalmente as mulheres. Respondeu que os Relatórios internacionais mostram que sim, e bem assim as estatísticas disponíveis. O próprio Provedor de Justiça Russo admite esta violência, embora não forneça dados nos seus relatórios. Existe, pois, com recurso à estatística e aos Relatórios internacionais disponíveis, a demonstração de violência de género não proporcional na Rússia. A outra questão foi a de saber se as autoridades operaram um conjunto de mecanismos para o combate à violência de género na Rússia. O art.º 19.º da Constituição Russa estabelece o princípio da igualdade mulheres-homens, as autoridades reconhecem a gravidade do problema mas não adotaram qualquer mecanismo nem legislação para o efeito. Os crimes menores foram despenalizados, alguns deles tocam os familiares próximos, nomeadamente, e em particular, as mulheres… O Comité da CEDAW insiste nos seus relatórios nestes pontos. Para o TEDH verificou-se a violação do art.º 3.º + 14.º da CEDH. 

O Acórdão foi votado por unanimidade exceto quanto a aspetos da indemnização.

Lavraram-se opiniões separadas.

Na sua opinião separada, os juízes Albuquerque e Dedov observaram que existe violência física e mental além do que é aceitável, neste caso. A estatística confirma-o.

Foram aspetos positivos do Acórdão, segundo estes juízes, a interpretação de género da CEDH a que o Acórdão procede; o reconhecimento de que é princípio geral de Direito, ou seja regra do costume internacional, o dever de proteger em casos de violência de género; o reconhecimento do peso dos instrumentos da soft law, como os relatórios das instituições internacionais; a voz da estatística que significou o reconhecimento da importância do contexto na adjudicação de uma solução judicial.

Foram aspetos negativos do Acórdão, o não reconhecimento de que a violência de género é tortura, tendo ficado esta no plano dos maus tratos, a limitação da obrigação positiva ao que já consta da jurisprudência do TEDH (Acórdão Osman c. R.U.- aí se perguntava até onde vai o dever de proteger a vida de alguém) – a obrigação positiva é ainda mais forte na violência de género. Não existe um critério de medição que afaste a violência em caso de aparente distância física da ameaça, pois a qualquer altura o ofensor pode reaparecer: não se pode permitir que a proteção pelas autoridades seja demasiado tardiamente despoletada. Por fim, era necessário dirigir ao Estado injunções claras neste Acórdão, com base no art.º 46.º da CEDH. O Acórdão podia, ainda que não fosse Acórdão piloto, ainda assim, indicar sob a forma de injunções, medidas que o Estado ficaria vinculado a adotar sob a supervisão do CM no quadro do art.º 46.º, em sede de execução do Acórdão do TEDH. Devia ter-se dito que é necessária uma lei, definido a violência de género, dotando o Estado de meios de combate à violência. A lei deveria definir o interesse público e deveria conter um mecanismo de resposta urgente. Enfim uma pena de prisão em que fosse aplicável a prisão preventiva deveria ser consagrada. No conjunto, estes juízes entenderam ser, apesar destas dificuldades, muito positivo este Acórdão.

No seu voto separado o juiz Dedov apontou as razões da sua posição relativa à indemnização.

No seu voto separado, o juiz Serghides insistiu sobre a distinção entre tortura, tratamento desumano e degradante na CEDH, à luz do princípio da efetividade. Para dar a proteção efetiva a um direito, o TEDH deve avaliar a intensidade da violação e qualifica-la bem como a obrigação positiva correspondente do Estado, à luz da definição que está em causa. As expressões tortura, tratamentos desumanos e degradantes foram desejadas pelos autores da CEDH e não foram arbitrárias.

O princípio da efetividade deverá permitir qualificar como tortura algo que anteriormente era desumano ou degradante, sendo que a noção de tortura tem a mais forte intensidade.

E o TEDH, ao qualificar apenas como desumano ou degradante, falhou porque não examinou o caso à luz do princípio da efetividade. Se o tivesse feito tê-lo-ia qualificado – pela sua extrema gravidade – como tortura, e teria estado em concordância plena com a evolução do Direito internacional público.

 

Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos