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TEDH, 5ª Secção, Castellani c. França, Acórdão de 30 de abril de 2020

6 maio 2020

CEDH, Artigo 3.º. Proibição da tortura.  Interpelação e busca domiciliária a arguido caracterizada por violência física e psíquica.

Castellani (o queixoso) queixou-se ao TEDH, em 2016, contra a França, pela violação do artigo 3.º da CEDH (tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes). Num caso de violência envolvendo a prestação de testemunho de um advogado, este queixou-se por o terem ameaçado, nomeadamente com ameaças de morte. No seguimento desta denúncia, veio a ser aberta uma investigação contra Castellani, por se suspeitar que este teria estado de alguma forma envolvido nas ameaças proferidas.

A brigada anti corrupção de Nice solicitou, para o efeito de uma busca domiciliária, o apoio do Grupo de Intervenção da Polícia Nacional (o GIPN). Por volta das 6 horas da manhã num dia de 2002, 10 agentes do GIPN com máscaras, bastões e escudos procederam à interpelação de Castellani. Segundo a versão deste, Castellani teria agredido um polícia por se considerar, erradamente, em legítima defesa, ao não se ter apercebido de que a intervenção tinha natureza policial. Acabou por ser brutalmente espancado e a mulher e a filha menor que assistiram tiveram um ataque de pânico.

Na busca, entretanto efetuada, descobriram-se armas não carregadas no domicílio de Castellani. Este foi conduzido ao hospital, após a intervenção policial, e verificou-se que tinha uma costela partida, os ossos do nariz bem como o osso da órbita fraturados. O maxilar direito também sofreu uma fratura. Teve de ser submetido a uma cirurgia de reconstrução facial, e foi-lhe, nomeadamente, colocada uma placa sob o olho direito. Ficou incapacitado para o trabalho por um período de duração superior a 8 dias.

O juiz de instrução veio a determinar o arquivamento do processo contra Castellani por falta de prova do comportamento de que fora suspeito quanto ao crime de ameaças. Este veio ainda a ser julgado, num segundo processo, por ter oposto resistência à polícia e por ter provocado ferimentos num polícia aquando da interpelação e da busca. Neste processo também, Castellani acabou por ser absolvido.

Por seu turno, teve lugar o procedimento penal pelos atos de violência dos agentes da autoridade. O queixoso constituiu-se assistente neste processo. Um ano após a instauração do processo, verificou-se que este ficara com um grau de incapacidade permanente parcial de 3% e foi-lhe atribuído um pretium doloris calculado segundo uma determinada tabela em vigor. Depois de um recurso do queixoso, o juiz de instrução no tribunal de 2ª instância verificou que certos golpes da polícia foram desferidos nas costas da vítima, de tal modo que esta não se podia precaver em relação a eles, nem existia justificação para eles, à luz da necessidade de dominar o indivíduo em contexto de violência. Mesmo assim, no fim do processo, os agentes do GIPN foram absolvidos por se considerar que, ao terem aparecido com bastões e escudos com os dizeres da polícia, estavam suficientemente identificados no momento da interpelação e busca no domicílio de Castellani.

Depois destes processos, o queixoso ainda acionou o Estado pela sua responsabilidade extracontratual nestes acontecimentos. Não foi apurada, neste processo, a culpa grave dos agentes, fundamento, neste caso, da responsabilidade do Estado, tendo o queixoso recebido uma indemnização relativamente modesta. Castellani queixou-se, então, ao TEDH, por tratamentos cruéis, desumanos e degradantes proibidos pelo artigo 3.º da CEDH.  No plano dos princípios, o TEDH, após ter admitido a queixa, recordou que o artigo 3.º não proíbe o recurso à força por parte da autoridade, nomeadamente em torno de uma interpelação. Em particular, o uso da força física é legítimo para impedir alguém de fugir, mas deve permanecer contido dentro dos limites da dignidade humana.

No caso sub judice, o TEDH verificou que os atestados médicos revelaram graves ferimentos na pessoa de Castellani, uma costela partida, o maxilar partido e a órbita direita partida.  Houve ainda registo de stress pós traumático em resultado da violência da interpelação e da busca domiciliar.

É função do TEDH, segundo o diz este tribunal, a de assegurar que foi respeitado um justo equilíbrio entre o interesse geral da sociedade e a salvaguarda dos interesses fundamentais do indivíduo. Neste sentido assumem importância o conhecimento da preparação da intervenção, em particular o seu planeamento. É sabido que o recurso a unidades especiais para operações desta natureza acarreta sempre o perigo de abuso de autoridade e de violação da dignidade humana.  Ora, verificou-se que a intervenção do GIPN fora pedida para um outro grupo de pessoas e que foi a investigação a este grupo que levou ao nome de Castellani, significando que, à partida, o mandado judicial em relação à busca ao domicílio de Castellani não fora formulado quanto a este, mas em relação ao grupo de pessoas inicialmente identificado. Por outro lado, não existe registo de que o destinatário desta ação policial (neste caso o requerente) fosse violento, ou particularmente perigoso. Por fim, as autoridades não cuidaram de saber qual o contexto familiar de Castellani (ter mulher e filha) ao avançarem para a interpelação e a busca domiciliária. Por a intervenção ter sido inicialmente prevista quanto a outro grupo de pessoas, e só por extensão, se ter alargado a Castellani, o TEDH entendeu que não houve planeamento da intervenção quanto a este. Apesar das teses da vítima e da polícia quanto à reação inicial do queixoso serem opostas, o TEDH observou que o Juiz de instrução criminal entendera que era aceitável que, num primeiro momento, o queixoso não se tivesse apercebido que se tratava de uma intervenção da polícia.

Por fim, a violência dos golpes, desferidos pela polícia, ficou patente nos ferimentos materiais realmente existentes na pessoa do queixoso na sequência da intervenção.

Por todas estas razões se verificou a violação do artigo 3.º da CEDH, proibição da tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. O Acórdão foi adotado por unanimidade sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira 

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos