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TEDH, 5ª Secção, Kukhalashvili e Outras c. Geórgia, Acórdão de 2 de abril de 2020

16 abr 2020

CEDH, Artigos 2.º e 13.º, vida, vertentes substantiva e processual. Repressão violenta de um motim em estabelecimento prisional. Violação. Direito a um recurso efetivo, não exame da questão porque consumida pela resposta às outras questões.

Kukhalashvili e três outras cidadãs da Geórgia queixaram-se, em dois processos que o TEDH apensou, a este tribunal, contra a Geórgia, no ano de 2007. São esposas, mães e irmãs de presos em cumprimento de pena, que morreram no quadro de uma operação antimotim conduzida em 2006, na prisão n.º 5 de Tbilissi.

A operação antimotim teve provavelmente, na sua origem, a transferência para outro estabelecimento prisional de seis chefes de máfia, que tentavam organizar motins na prisão. A operação antimotim foi violenta e dela resultaram várias mortes entre os reclusos.

Nos casos das presentes queixas, assim que as familiares tiveram notícia da morte dos seus entes queridos, foram pedidas autópsias que tardaram em ser feitas, mas que identificaram tiros com armas de guerra na origem dos ferimentos das vítimas, e por vezes, na medida em que os tiros não teriam bastado para matar, causas da morte por espancamento de pessoas já gravemente feridas.

A partir destes resultados, foram inúmeras as dificuldades levantadas para que as queixosas se pudessem constituir assistentes nos processos penais de investigação, contra os eventuais funcionários culpados dos crimes de homicídio. Não conseguiram constituir-se assistentes nem conseguiram que o Ministério Público impulsionasse as investigações e os processos penais competentes. Do lado oficial, o Ministério da Justiça (MJ) emitiu uma nota justificando a intervenção antimotim com o facto conhecido, na Geórgia, de existirem tentativas organizadas dentro das prisões, para provocar a sublevação dos presos. Um dos exercícios era de os presos se infligirem ferimentos, de modo a serem atendidos nas seções de enfermaria, com vista a provocarem o colapso do sistema prisional, atendendo ao acréscimo de pacientes em tratamento.

As investigações conduzidas pelo MJ no rescaldo da operação, revelaram que os reclusos tinham montado barricadas nas celas, com as camas e os colchões, existindo marcas de incêndio nos espaços prisionais. Da leitura do Acórdão do TEDH depreende-se que a operação antimotim foi conduzida num cenário de extrema violência. Existe, nomeadamente, o registo do emprego de armas Makarov pelos presos. Outro processo veio a ser entretanto aberto, pelo MJ, contra os agentes, pela prática de abuso de poder. Descobriu-se, então, que, nomeadamente, a morte das vítimas deu-se, depois de atingidas por balas, pelo espancamento que lhes foi infligido pelos agentes antimotim.

Existe documentação internacional sobre a repressão deste motim. A ONG Human Rights Watch redigiu um relatório em que descreveu as operações e as violações dos direitos humanos, concluindo por graves violações materiais de direitos e ausência de investigações subsequentes dos factos, com alguma consistência. A Amnistia Internacional descreve violações de direitos humanos e a falta de acesso dos familiares às investigações, os quais, em qualquer caso, não teriam acesso a eventuais processos penais, caso estes tivessem sido instaurados.

O TEDH apensou as queixas e verificou que estas eram relativas à violação do direito à vida dos reclusos mortos (art.º 2.º da CEDH) e à falta de recurso efetivo da conduta das autoridades, quer no tocante à possibilidade de se reagir contra os crimes cometidos, quer no tocante à possibilidade de superar os entraves que estas foram pondo à investigação da conduta dos agentes (art.º 13.º da CEDH em articulação com o art.º 2.º).  Apesar da exceção de não esgotamento oposta pelo Governo, o TEDH admitiu a queixa, na medida em que foram esgotados os recursos disponíveis e adequados (o cumprimento de recursos disponíveis mas não adequados é desnecessário para o esgotamento dos recursos internos).

Quanto ao fundo, o TEDH começou por tratar a questão da violação do direito à vida na vertente processual, ou seja na medida em que não existiu uma investigação adequada à conduta das autoridades e que as queixosas não se puderam constituir assistentes. Em sede de princípios gerais, salientou o dever de independência, transparência e de responsabilidade, a cargo de quem conduz uma investigação, significando que quem investiga não pode ter tomado parte nos atos investigados. A análise dos elementos investigados deve ser profunda, direta e imparcial. Existe, em particular quando se chega à fase judicial da investigação, a obrigação, a cargo das autoridades, de proteger a vida por meio do direito, o que significa que ofensas que provocaram a morte não podem nunca ser deixadas impunes. Deve, ainda, ser proporcionada aos familiares das vítimas, compensação adequada pela morte ou pelos ferimentos. No caso sub judice, a investigação foi iniciada tardiamente, existiram resistências das autoridades em examinar os diversos fatores que levaram à morte das vítimas, a investigação foi organizada pelo Departamento das Prisões do MJ, o mesmo que pedira a intervenção antimotim, o que veio a retirar imparcialidade à investigação. O TEDH examinou todos os aspetos da operação, nomeadamente o seu planeamento, tendo-se verificado que houve o propósito antecipado de conduzir esta operação, a qual foi prevista pelas autoridades. Por fim, as queixosas nunca foram envolvidas na investigação, não tendo podido constituir-se assistentes, nem de qualquer outra forma participar no seu impulso, o que significa que não houve escrutínio público da investigação. Por todas estas razões se verificou a violação processual do art.º 2.º da CEDH, direito à vida dos presos mortos na operação.

O TEDH não examinou a parte da queixa relativa ao artigo 13.º (ausência de um recurso efetivo), na medida em que a entendeu consumada pelas anteriores conclusões e passou a analisar a questão da violação do direito à vida na sua dimensão substancial (art.º 2.º da CEDH). Admitiu que o uso de força letal pelas forças de segurança pode ser justificado em certas circunstâncias. Numa operação da natureza da operação que foi conduzida pelas autoridades da Geórgia na prisão, tem de existir um quadro legal prévio rigoroso e o controlo do planeamento da operação. Nomeadamente, logo no planeamento de uma operação desta natureza, é necessário prever a conduta da intervenção no sentido de implicar o menor custo em vidas humanas. Por outro lado, a ameaça que justifica a utilização de força letal não pode ser qualquer uma. Deve representar uma ameaça séria. Era enfim necessário prever a existência de uma entidade que pudesse estar em condições de vir a investigar os factos com imparcialidade, à qual estaria atribuído de ante mão este poder. Após a definição destes pressupostos de legitimidade da ação, o TEDH perguntou se o uso da força era legítimo, analisando as questões de saber (art.º 2.º) se havia a necessidade de defender alguém contra a violência, de prender alguém, ou aplacar uma revolta ou uma manifestação. Para o TEDH foi particularmente impressionante, neste contexto, apesar do quadro muito difícil da máfia penitenciária, a intenção do MJ de reprimir exemplarmente o motim, uma exemplaridade que não está contida no art.º 2.º da CEDH. Admitiu, ainda assim, que a vida dos guardas prisionais pudesse ter estado realmente em perigo. Sobre a necessidade absoluta da intervenção, a questão que o TEDH examinou, foi a da sua proporcionalidade. Ora, embora tivesse existido um plano de ação - a repressão pelo exemplo - não houve um planeamento no sentido do direito, por exemplo terem-se previsto meios menos graves, como o emprego de gás lacrimogéneo. Segundo as ONG internacionais, as barricadas foram montadas, pelos presos, num propósito de auto defesa, num contexto de violência extrema: alguns presos ter-se-iam mostrado disponíveis para pedir um cessar-fogo. Foi perturbadora, para o TEDH, neste passo, a verificação de que as autoridades não explicaram o que fizeram a seguir ao desmantelamento das barricadas dos presos. Ora, mais uma vez, apesar da falta de planeamento das operações, em termos de adequação ao direito, estas não foram espontâneas, mas estavam previstas pelas autoridades, a braços com o crime organizado nas prisões. Verificou-se, nomeadamente, que alguns feridos por tiro de arma de fogo foram acabados de matar pelas forças da ordem. Por todas estas razões se verificou também a violação do art.º 2.º, direito à vida, na sua vertente substancial.

O Acórdão foi votado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos