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TEDH, 5ª Secção, Sanofi c. França, Acórdão de 13 de fevereiro de 2020

2 mar 2020

CEDH, Artigo 6.º§ 1, Responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos pessoais, responsabilidade civil de empresa dedicada ao comércio de vacinas e medicamentos. Condenação em indemnização e em renda vitalícia. Contestação. Alegação de responsabilidade imprescritível; regime do ónus da prova, e alegação do direito ao reenvio da questão a título prejudicial ao TEDH. Qualificação no regime da iniquidade processual. Não violação em nenhum dos três segmentos da queixa, mas dever de fundamentar a recusa do reenvio a cargo da autoridade judiciária nacional. Neste segmento, violação.

Sanofi Pasteur queixou-se contra a França por as modalidades de fixação do início da contagem do prazo de prescrição terem, no seu entender, tornado uma ação de responsabilidade civil imprescritível e por a Cour de Cassation ter rejeitado, sem fundamento, um seu pedido de reenvio de uma questão que colocara, a título prejudicial, ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

Os factos são relativos a uma aluna de enfermagem que foi testada por meio de uma vacina contra a Hepatite B. Foi sujeita a vários testes desta vacina, vindo este produto, mais tarde, a ser colocado no mercado.

A enfermeira veio a ser diagnosticada com uma esclerose múltipla, alguns anos mais tarde; ao seu quadro patológico acresceu a doença de Crohn, à qual, ainda alguns anos mais tarde, veio aditar-se uma polimiosite. Este quadro patológico, em evolução prolongada, foi determinado nos anos 1990 a 2004.

A vítima queixou-se contra o Estado, numa ação administrativa em que venceu, tendo este sido condenado numa indemnização e numa renda vitalícia, por o tribunal administrativo ter entendido estar verificado o nexo de causalidade adequada entre as vacinas e o seu quadro patológico. Entretanto, utilizando uma via que lhe faculta o direito francês, que permite o cúmulo entre uma indemnização e uma renda a cargo do Estado e uma indemnização e uma renda a cargo de uma empresa privada, intentou no tribunal cível uma ação contra a empresa produtora da vacina, Sanofi Pasteur. Invocou a violação dos seus deveres de cuidado na condução das experiências e a aplicação de um produto defeituoso objeto da atividade comercial de Sanofi. O tribunal de primeira instância cível condenou Sanofi no pagamento de uma indemnização e de uma renda vitalícia, em complemento da já concedida pelo tribunal administrativo e suportada pelo Estado.

Sucedeu neste processo que o quadro patológico da paciente conheceu uma evolução que se prolongou no tempo, ainda que a enfermeira tenha proposto a ação dentro do prazo prescricional competente (10 anos a contar do conhecimento, no caso da responsabilidade dos comerciantes). Na medida em que, à data das experimentações, ainda não estava em vigor a Diretiva da UE relativa à responsabilidade do produtor por produtos defeituosos, a qual só veio a ser transposta, dentro do respeito do seu prazo de transposição, em 1998, foram aplicadas as disposições do Código Civil, segundo as quais o produtor da vacina está adstrito a um dever de resultado, o que o torna responsável pela segurança da vacina, a não ser que faça a prova de uma circunstância imprevista (algo próximo do caso fortuito ou de força maior do ordenamento português) que o exima da responsabilidade. O tribunal de segunda instância de Toulouse confirmou a decisão com fundamento em que existia um nexo de causalidade entre as afeções e as vacinas, com uma probabilidade forte, ao ponto de constituírem uma presunção de facto que não foi ilidida por nenhuma prova contrária da sociedade ré. Sanofi recorreu à Cour de Cassation, alegando uma violação da regra da segurança jurídica pelo facto de a prescrição da responsabilidade civil só ocorrer após a consolidação do dano, o que tornava este caso de responsabilidade imprescritível. A sociedade contestou, ainda, o critério de repartição da prova, na medida em que o estabelecimento da presunção de facto, que não foi contrariada por prova científica, lhe colocava um ónus de prova pesado. Alegou a inversão do ónus da prova. Enfim, entre outros argumentos, solicitou à Cour de Cassation o reenvio de uma questão a título prejudicial ao TJUE. As questões diziam respeito à repartição do ónus da prova na Diretiva relativa à responsabilidade do produtor por produto defeituoso. A Cour de Cassation entendeu que a questão da repartição do ónus da prova na Diretiva não era relevante, pois esta, tendo sido apenas transposta em 1998, não se aplicava a factos submetidos a um regime jurídico anteriormente vigente, o das disposições pertinentes do Código Civil. No fim, a Cour de Cassation rejeitou todo o recurso por improcedente. Recebendo o processo, após o quadro de recursos, o tribunal de primeira instância cível condenou Sanofi em indemnização e em renda vitalícia, a acrescer às que já haviam sido decididas, contra o Estado, na outra ação de responsabilidade civil.

Apreciando o Direito, o TEDH qualificou as razões de queixa no artigo 6.º § 1 da CEDH, iniquidade processual, admitiu a queixa, e enumerou os seguintes princípios gerais: o prazo de prescrição da responsabilidade visa a segurança jurídica (Oleksandr Volkov c. Ucrânia, 2013); as vítimas de danos corporais devem poder acionar a justiça sempre que possam avaliar o seu dano e estabelecer a origem do seu sofrimento. Observou que, no caso sub judice, quando a esclerose múltipla foi diagnosticada a ação de responsabilidade civil não estava prescrita. Quanto à questão da segurança jurídica, a que parecia opor-se o quadro evolutivo da doença, a balança de interesses parecendo difícil, não obstou a que fosse notado que o direito francês, ainda assim, previa o início da contagem do prazo de prescrição, o que significa que a ação de responsabilidade civil, ainda que prolongada no tempo pelo critério da consolidação do dano, não era imprescritível, ainda que se pudesse prolongar algum tempo. Por estas razões, não houve, neste segmento de queixa, a violação do art.º 6.º § 1 da CEDH.

De seguida, o TEDH colocou a questão de saber se era legítimo à Cour de Cassation rejeitar o pedido de reenvio da questão a título prejudicial ao TJUE. A jurisprudência do TEDH neste domínio consta do Acórdão Ullens de Schooten e Rezabek c. Bélgica, 2011, também objeto, a seu tempo, de divulgação nesta página. Segundo esta jurisprudência, e de acordo com o direito da UE, a jurisdição de última instância onerada com um pedido de reenvio de uma questão a título prejudicial deve, em regra, enviá-lo ao TJUE. Contudo, não tem de o fazer se o acto for claro (in claris non fit interpretatio) ou se a questão não for pertinente para a causa. Com estes dois critérios o direito da UE estabeleceu uma discricionariedade judicial (sempre fundamentada) em benefício do tribunal de última instância, que é senhor da decisão de reenviar, ou não, a questão a título prejudicial ao TJUE. Em consequência, não pode o próprio TEDH estabelecer o direito ao reenvio da questão a título prejudicial ao TJUE. Apenas é exigível, segundo o TEDH, a fundamentação clara da recusa em satisfazer o pedido de reenvio. Ainda assim, se esta fundamentação resultar clara do processo, a motivação a prestar pode ser relativamente lacónica. Na medida em que a Cour de Cassation não fundamentou, com clareza bastante, a recusa do reenvio, verificou-se, neste segmento da queixa, a violação do art.º 6.º § 1 da CEDH.

Sanofi ainda alegou que a “imprescritibilidade” da ação de responsabilidade civil ofendia, ainda, o seu direito à proteção dos seus bens, constante do art.º 1.º do Protocolo n.º 1 à CEDH. O TEDH entendeu que a sociedade não esgotou este meio perante as jurisdições nacionais e declarou este segmento da queixa inadmissível. É de notar que a questão do ónus da prova acabou por não ser colocada ao TEDH enquanto tal, e a nosso ver, bem. Contrariamente ao que alegou a sociedade no processo interno, não se verificou propriamente a inversão do ónus da prova, mas apenas a sua acomodação, no sentido da utilização de uma presunção de facto (sempre ilidível) que permitiu o trabalho dos magistrados, e que a empresa não conseguiu desfazer, ainda que o tribunal de primeira instância cível tivesse determinado uma nova perícia científica, que teve lugar. Este critério de acomodação do ónus da prova, segundo as regras da experiência, é também o critério seguido nos tribunais alemães e é, ele próprio, o critério de repartição do ónus da prova do TEDH.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos