Simp

Está aqui

TEDH, 5ª Secção, Sukachov c. Ucrânia, Acórdão de 30 de janeiro de 2020

5 fev 2020

CEDH, Artigo 3.º§ 1, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, Artigo 13.º direito a um recurso efetivo das violações. Condições materiais de detenção dos detidos em prisão preventiva (preventivos). Violação de ambos os preceitos.

Sukachov queixou-se em 2017 contra a Ucrânia, de que as condições da sua prisão preventiva e do transporte, da prisão para o tribunal, durante o seu julgamento, foram cruéis, desumanas e degradantes, nos termos do artigo 3.º da CEDH. Queixou-se, ainda, da falta de recurso efetivo para pôr termo a esta situação, nos termos do artigo 13.º da CEDH.

O queixoso nasceu em 1978 e encontra-se, hoje, em cumprimento de pena em que foi condenado. Foi detido e preso em 2012, por suspeita de envolvimento em atividades terroristas e pela produção e armazenamento de explosivos. Em 2018 acabou por ser condenado na pena de 12 anos de prisão. De 2012 a 2018 esteve privado da liberdade, em prisão preventiva no centro de preventivos de Dnipo, o qual veio a ser requalificado como estabelecimento prisional em 2016.

Viveu em várias celas, com uma dimensão média de 6,7 m2, disponíveis para 2 detidos, gozando assim, cada detido, de 3,35 m2. Uma das celas por que passou tinha o espaço disponível de 13m2 e Sukachov partilhou-a com 5 outros detidos. Assim se desenrolou sucessivamente a sua vida de preventivo, em celas cujo espaço disponível por pessoa era geralmente inferior ao espaço disponível estabelecido na jurisprudência Mursic c. Croácia, objeto, a seu tempo, de divulgação nesta página (4m2 de superfície disponível num volume de 10m3 por pessoa).

O queixoso alegou vários fundamentos, além do espaço disponível insuficiente. Nomeadamente, as celas não eram arejadas, as instalações sanitárias destas estavam separadas do restante espaço por ligeiras vedações e não tinham caixa de sifão, de modo que as celas cheiravam mal; não existia lavandaria no centro de preventivos, devendo cada detido lavar a própria roupa na cela; isto fazia com que as celas estivessem constantemente húmidas. Apenas podia tomar um duche por semana. Juntou fotografias das celas e das partes comuns do centro de preventivos. Queixou-se, ainda, de ter comunicado todas estas razões de queixa à administração penitenciária, e ao Ministério Público, mas sem êxito.

A outra parte da queixa de Sukachov foi relativa às deslocações ao tribunal para as sessões da audiência de julgamento. O queixoso foi presente a tribunal 392 vezes, devendo ser efetuado um trajeto de 25 quilómetros, entre a prisão e o tribunal. As carrinhas do Ministério da Justiça não tinham vidros, o que provocava uma ventilação deficiente.

O Comité para a Prevenção da Tortura do CoE (CPT) visitou a Ucrânia, em 2009 e 2013, tendo o mecanismo nacional de prevenção elaborado o seu relatório em 2012. Os relatórios do CPT relativos à Ucrânia confirmam as más condições materiais de detenção dos preventivos. Além de escasso espaço disponível, existe sobrelotação carcerária (cada um destes termos do problema agravando o outro), é facultada a prática de pouco exercício físico aos detidos. O CPT instou, no passado, a Ucrânia a proceder às necessárias reformas. A Recomendação do Comité de Ministros do CoE, Rec R(99)22, relativa à sobrelotação carcerária na Europa, destaca o problema e a necessidade de lhe trazer solução; as Regras penitenciárias europeias da CM, anexas, à Rec(2006)2 estabelecem critérios sobre o tratamento dos detidos em regime de privação de liberdade. Em vária da sua anterior jurisprudência, o TEDH, já condenou a Ucrânia, no tema das condições materiais de detenção.

As Nações Unidas também trataram o problema, por meio das regras mínimas gerais para o tratamento dos detidos de 17/12 de 2015, a Convenção contra a Tortura (CAT) e o seu Protocolo foram ratificados pela Ucrânia, o Comité contra a Tortura (Comité CAT) já visitou a Ucrânia por duas ocasiões. Os problemas que aponta nas suas observações e conclusões gerais são a sobrelotação penitenciária, a escassez de espaço disponível, a fraca luz, a pouca higiene, os reduzidos espaços de exercício.

Por fim, o Provedor de Justiça ucraniano verificou, ele também as deficientes condições de detenção, em particular dos preventivos.

Segundo o direito ucraniano, o preventivo deve ser detido em estabelecimento próprio para os preventivos. Desde 2015 existem regulamentos relativos a estes centros de detenção para preventivos, especificando um conjunto de garantias.

Desde 2017, está em curso uma reforma do sistema penitenciário na Ucrânia. Dos documentos desta reforma consta o reconhecimento de que a Ucrânia não está em conformidade com as regras de direitos humanos. Existiu uma proposta de lei sobre os direitos de queixa e mecanismos de recurso dos detidos contra as más condições das prisões, a qual foi retirada da ordem de trabalhos do Parlamento. Segundo a estatística, um elevado número de queixas de preventivos relativas a condições materiais de detenção, é rejeitado (cerca de 20%).

Examinando a queixa à luz do artigo 3.º da CEDH (proibição da tortura e das penas e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes), o CEDH indicou, como jurisprudência de referência, a constante do seu Acórdão proferido no caso Ananyev c. Rússia, de 10 de Janeiro de 2012. E elencou os critérios seguintes: a detenção implica sempre a imposição de alguma medida de sofrimento ao detido; mas o espaço deficiente torna este sofrimento extremamente pesado (Mursic). A dignidade humana também se impõe no transporte às sessões da audiência (Lutsenko c. Ucrânia). O TEDH admitiu a queixa, após ter afirmado estes princípios gerais, e, no tocante ao mérito, observou que Sukachov desistiu do segmento de queixa relativo às instalações sanitárias e à lavandaria, o que excluiu estas matérias da sua competência (para conhecimento, em certos casos, em outra jurisprudência, o TEDH admite que certas matérias, pela sua gravidade extrema, são de conhecimento oficioso, uma vez admitida a queixa). Na medida, quanto à permanência nas celas em que apenas se verificou um episódio de disponibilidade de espaço de 4,3 m2, todos os demais sendo de disponibilidade inferior a 4 m2, verificou-se a violação do artigo 3.º da CEDH (Mursic). Olhando para as queixas relativas ao transporte, o TEDH estudou tanto o transporte como os períodos de detenção no tribunal criminal em que decorreram as sessões de julgamento. O TEDH entendeu que, apesar das condições de ventilação deficiente no transporte estarem documentadas, o queixoso não mostrou em que é que sofreu com elas, e por isso, rejeitou este segmento da queixa, por improcedente.

Quanto à violação do artigo 13.º (direito a um recurso efetivo), uma vez que o segmento de queixa relativo ao transporte ficou excluído, o TEDH não teve de se pronunciar sobre um recurso efetivo destas condições de transporte. Mas admitiu a queixa na parte relativa ao reduzido espaço disponível nas celas. Quanto ao mérito estabeleceu os seguintes critérios: tem de existir uma dificuldade, em termos de condições materiais de detenção, suscetível de ser invocada à luz da CEDH. O recurso é de dois tipos: de reparação/compensação por um sofrimento imposto no passado; ou de prevenção, ele próprio, ou seja destinado a proporcionar a cessação do vício que se invoca (por exemplo, passar a disponibilizar mais espaço disponível). O recurso, sendo um remédio, não tem de ser necessariamente judicial, deve, sim, ser apto a pôr fim à violação. Verificando-se a violação da Convenção, é dever do Estado propiciar o remédio necessário (compensatório, ou de prevenção, no sentido exposto). Aplicando estes princípios ao caso, o remédio disponível era uma queixa ao Ministério Público, sendo que à luz da prática na Ucrânia, este não supera necessariamente as dificuldades. Por esta razão, este remédio não tinha de ser esgotado pelo particular. Por esta razão verificou-se a violação do artigo 13.º em relação com o artigo 3.º, uma vez que existindo um recurso que não tinha de ser esgotado por não ser eficaz, o queixoso não dispunha de um remédio para pôr cobro à sua situação.

Em sede de execução de sentenças, o TEDH ouviu as partes sobre o artigo 46.º da CEDH, e decidiu que é necessária a adoção de um Acórdão piloto, pelo qual se verifica a violação e se recusa o julgamento de queixas com fundamentos análogos enquanto o problema não for resolvido. Por existir um problema sistémico de natureza estrutural relativo às condições materiais de detenção dos preventivos, no que toca ao espaço disponível por indivíduo em cada cela, uma questão que, apesar das recomendações e dos relatórios do CPT é agravada por outras diversas condições materiais e detenção deficientes, o Acórdão que o TEDH proferiu neste caso tem o estatuto de um Acórdão piloto. O que significa que a Ucrânia, sob a supervisão do CM, deve adotar as medidas necessárias para pôr fim a esta situação, embora permaneça livre de escolher as medidas que entender convenientes. Observando que as difíceis condições materiais dos preventivos estão associadas à duração muito longa dos prazos de prisão preventiva e suas renovações (e dos correspondentes processos penais), nomeadamente, em mais de 90 casos foi a Ucrânia condenada por violação do direito à liberdade e à segurança em redor do artigo 5.º § 1 da CEDH, o TEDH sugeriu que uma redução da sobrelotação prisional passaria, também, pela redução legal do tempo de duração da prisão anterior à condenação definitiva.

Quanto aos remédios efetivos necessários há que trabalhar com o CM no sentido de encontrar mecanismos de queixa eficazes e eficientes. Estes meios devem ser céleres e trazer a resposta necessária. Nomeadamente, uma autoridade independente poderia ser incumbida da tarefa de supervisionar as condições materiais de detenção nas prisões. Se essa autoridade vier a ser o Ministério Público, terá de cumprir os critérios do Acórdão.

Quanto às medidas de compensação e reparação, estas têm de existir. Uma via possível é a da redução do tempo de cumprimento de pena, após a sentença de condenação, para alguém que sofreu condições materiais de detenção ilícitas à luz deste acórdão. Além desta medida, a reparação necessária é sempre devida a quem já não está mais em cumprimento de pena.

O TEDH fixou um prazo de 18 meses depois da prolação do seu Acórdão para a adoção das necessárias medidas. Apesar de o Acórdão ser piloto (com o que se elencam as medidas propostas e os deveres a cargo do Estado responsável) o TEDH decidiu não deixar de proceder ao exame de cada queixa que lhe vier a ser apresentada. Significará, certamente, que verificados os factos que lhe correspondem, aplicará, por referência, a doutrina contida no presente Acórdão.

O Acórdão foi votado por unanimidade, tendo o juiz Grozou emitido uma opinião concordante, em que aceita o Acórdão mas exprime uma dúvida relativamente ao recurso efetivo das condições materiais de detenção, na medida em que o TEDH associou o pedido de compensação posterior (por exemplo após cumprimento de pena) ao imediato pedido de alívio das difíceis condições materiais de detenção. Para o juiz Grozou esta exigência pode criar confusão. Se assim será em termos genéricos, podem suceder casos, na prática, em que alguém não se socorre imediatamente de um recurso (preventivo) para aliviar um sofrimento presente, não devendo, por essa razão, ser privado, no futuro da compensação devida (uma como que cominação pela não apresentação imediata do recurso das condições materiais, na qualidade de recurso de prevenção/para a cessação do vício). A fixação, à partida, de uma regra firme, geral e abstrata, é, neste ponto o que parece problemático ao juiz Grozou.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos