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TEDH, 6 de setembro de 2016, WD c Bélgica

12 set 2016

Atentado ao pudor, sem violência nem ameaça sobre menor de 16 anos. Personalidade marcada por autismo e tendências sexuais perigosas. Internamento em estabelecimento penitenciário de duração indeterminada sem oferecer alternativa de vida ao recluso. CEDH, art.º 3, tratamento cruel, desumano e degradante, violação; art.º 5, par. 1, privação não justificada de liberdade, violação; art.º 5, par. 4, ausência de recurso da prisão, combinado com o art.º 13.º ausência de recurso efetivo, violação. Problema estrutural, art.º 46. º CEDH, processo do acórdão piloto.

WD foi detido, em 2007, por ter praticado, em dezembro de 2006, um atentado ao pudor sobre um menor de 16 anos sem violência, nem ameaça, segundo as palavras das autoridades belgas. Cumpre, desde então, uma pena de prisão não qualificada como tal, de duração indeterminada.

Teve direito a saídas de natureza precária, e a participação em eventos desportivos, que o levaram a crer vir a efetuar um cumprimento de pena de natureza terapêutica em regime, tendencialmente, de natureza ambulatória, tendo formulado vários pedidos no sentido de deixar de estar internado na prisão de Merksplas, para ser colocado em estabelecimentos de tratamento com um regime menos severo de reclusão e, eventualmente, um maior convívio com a sociedade aberta.

Sendo a sua reclusão controlada por uma Comissão de Proteção instituída para este efeito, os seus pedidos foram rejeitados de modo sistemático nos primeiros anos, vindo a ser considerados de modo mais benévolo ultimamente. Infelizmente, face à personalidade do recluso, tal como descrita nos relatórios dos peritos encarregados de acompanhar a sua evolução, nenhuma instituição de cuidados e internamento alternativa à prisão, aceitou o encargo de cuidar de WD. Não tendo poderes executivos, a Comissão de Proteção apenas pôde, nestas condições, determinar a manutenção de WD na prisão.

WD tentou a via judicial, apresentando dois procedimentos cautelares, o primeiro dos quais foi indeferido, o segundo dos quais, instaurado em 2015, continua pendente.  Também pediu à Cour de Cassation que fosse admitido um seu pedido de reenvio para exame da questão de substância à Cour Constitutionnelle, assentando no exame da compatibilidade da sua situação com os artigos 5.º e 6.º da CEDH, o que foi negado.

No fim, queixou-se ao Tribunal europeu dos direitos do homem por estar detido em lugar não adequado, em violação dos artigos 3.º e 5.º par. 1 da Convenção, e por os recursos não serem efetivos no sentido dos art.ºs 5.º par. 4 e 13.º da Convenção.

Face ao quadro descrito, o TEDH entendeu que a prisão sem alternativa por tempo indeterminado, porque sem alternativa, equivale a deixar o recluso numa situação de angústia perpétua quanto à evolução da sua pena indeterminada. Neste sentido, verificou a violação do artigo 3.º da CEDH, proibição da tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, na pessoa de WD.

Para o TEDH, porque a Comissão de Proteção não dispondo de poder executivo, não tinha como colocar WD em estabelecimento não penitenciário, e por isso o manteve em prisão, a pena de prisão que lhe é imposta, para além de já não ser pena, por ser de duração indeterminada, também não encontra justificação. Verifica-se assim uma privação de liberdade não justificada de WD, contrária ao artigo 5.º par. 1 da CEDH, o qual também foi considerado violado pelo TEDH.

O recluso, embora tenha esgotado múltiplos recursos de natureza judicial e não judicial, voltou sempre ao ponto de partida sem qualquer modificação possível da sua situação. Neste sentido, não beneficiou de um recurso contra a sua detenção, em violação do art.º 5.º par. 4 da CEDH, não existindo para ele nenhum recurso efetivo. Embora o artigo 5.º par. 4 da CEDH seja lex specialis em relação ao art.º 13.º, a aplicação daquele não consumiu a aplicação deste, pelo que o TEDH considerou que houve violação do art.º 5.º par. 4 combinado com o art.º 13.º.

Por fim, na medida em que este não é o primeiro acórdão neste conjunto de casos contra a Bélgica que o TEDH vem proferindo, o TEDH identificou a presença de um problema de natureza sistémica na Bélgica onde as pessoas doentes mentais que manifestam alguma perigosidade enfrentam penas de prisão de duração indeterminada que podem ser cumpridas de modo permanente, quiçá perpétuo em estabelecimentos penitenciários, não adequados ao tratamento destes casos. Aplicando o artigo 46.º da CEDH relativamente à execução dos acórdãos que ele profere, remeteu o problema para o Comité de Ministros para que este o resolva, pela descoberta e operacionalização de uma solução adequada dentro de dois anos. Esta solução resultará de colaboração da própria Bélgica, cujo Ministério da justiça tem em curso um programa de reformas nesta área.  Significa, no plano judicial, que o TEDH não examinará nenhum caso desta natureza durante um período de dois anos, dando, assim, uma hipótese ao Governo belga de pôr fim ao problema, sem prejuízo das resoluções amigáveis que podem vir a ter lugar. Em contrapartida, se dentro de dois anos, o Governo belga não tiver dado resposta ao problema em termos que o TEDH e o CM entendam ser adequados, estes casos serão todos resolvidos, por referência, condenando o Estado belga.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira