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TEDH, 7 de fevereiro de 2017, Lashmankin e outros c. Rússia

13 fev 2017

Pedidos de exercício do direito de reunião pacífica e do direito de manifestação, em vários lugares da Federação Russa. Burocracia, regras processuais extremas. Situações de impedimento deste exercício. Não existência de recursos efetivos destas situações. CEDH art.º 13.º recurso efetivo, violação. CEDH, art.º 11.º combinado com o art.º 10.º direito de reunião e manifestação pacíficas associado ao direito de livre expressão, violação. Casos de detenção administrativa de manifestantes, CEDH, art.º 5.º Par. 1, violação. Exercício de recurso de supervisão, num caso, em violação do princípio do direito a um julgamento equitativo, CEDH, art.º 6.º par. 1, violação.

Este Acórdão de Seção versa sobre 15 queixas apresentadas por 23 cidadãos russos, depois de processos internos instaurados em diversos locais da Federação Russa, todos por factos situados entre 2010 e 2012 e todos relativos a um direito administrativo muito rigoroso e a uma prática processual e judicial pecando por excesso de zelo e de burocracia. Este conjunto, jurídico e processual, resultou em sucessivos entraves ao exercício, por parte dos queixosos, dos seus direitos de reunião e manifestação pacíficos, em articulação com o seu direito à liberdade de expressão. Tal situação revelou-se na ausência de recurso efetivo da conjugação de disposições jurídicas rigorosas com práticas processuais de entrave do exercício dos direitos e, por vezes, na privação injustificada de liberdade, ainda que sob a forma de detenções administrativas. Para mais, num caso, resultou na violação do direito a um processo equitativo pelo emprego de um meio característico do direito processual russo, o recurso dito de supervisão.

As queixas com estes fundamentos, de violação do art.º 13.º (direito a um recurso efetivo da violação dos direitos fundamentais por parte das autoridades), do artigo 11.º (direitos de reunião e de manifestação pacíficos), acoplado com o art.º 10.º (direito à liberdade de expressão), e por fim dos artigos 5.º par. 1 (privação injustificada de liberdade) e 6.º par. 1 (direito a um processo equitativo), porque recebidas em tempos de tratamento judicial próximos, foram apensadas pelo TEDH que as examinou conjuntamente.

A prática geralmente tolerada e aceite pelas autoridades russas é a formação de um “picket”, ou seja, uma pessoa coloca bandeiras e tarjas descrevendo uma situação e fica ao lado das mesmas em silencio, pelo tempo em que exprime o seu protesto. Práticas mais elaboradas de reunião pacífica, como agrupamentos de pessoas, o proferir de discursos por oradores, eventualmente marchas pacíficas exprimindo um protesto ou formulando um pedido, ou simplesmente exigindo um reconhecimento social (como, por exemplo, a marcha do orgulho gay em São Petersburgo que não pôde ter lugar em 2010 e terminou por uma marcha seguida por uma reunião travada pela detenção de vários manifestantes em 2011, logo seguida em alternativa pela marcha da Juventude do Partido de Governo afirmando os valores da família e do casamento heterossexual), carecem de um pedido de autorização que só pode ser feito exatamente 15 dias antes do evento. As autoridades devem responder em três dias a este pedido, decisão suscetível de recurso judicial a interpor, sendo caso disso, imediatamente, mas a cuja decisão, por seu turno, o tribunal não se encontra vinculado por qualquer prazo. Para mais, em caso de oposição ao recurso, mesmo que, entretanto, este venha a ficar deserto, ainda há lugar a um prazo de espera de dez dias antes de poder executar a decisão já adotada entretanto recorrida, mas não modificada por ter ficado a oposição ao recurso deserta, poder ser executada. Todos estes prazos foram respeitados pelos vários queixosos que trouxeram ao TEDH o caso da Gay pride de São Petersburgo, o caso do assassínio de um conhecido advogado defensor de direitos humanos, em duas cidades (Samara e Moscovo), o caso do protesto contra as deficiências do governo da Cidade de Moscovo, ou, noutro caso, a demissão do Presidente Putin. Ou, simplesmente, como sucedeu em Rostov sobre o Don, sob a égide do Movimento Estratégia 31, para exigir da parte das autoridades, o cumprimento do art.º 31.º da Constituição Federal Russa, que consagra o direito à reunião e manifestação pacífica.

Para todos estes diferentes casos, a Administração admitiu a realização do evento noutro lugar da cidade, com prazos relativamente curtos de aceitação, invocando razões de trânsito ou a realização de outras manifestações ou eventos importantes, conseguindo, num ou noutro caso um requerente interpor um recurso judicial tempestivo da decisão administrativa e obtendo, num deles, uma decisão judicial em primeira instância e em apelação, favorável.

Mas, geralmente, os prazos curtos de reação às decisões administrativas, a dilação destas ao responderem, por seu turno, a demora dos tribunais em atenderem pedidos que a lei construiu como urgentes mas que não receberam o estatuto processual de urgentes nas leis de processo, fizeram com que os requerentes não tivessem obtido as autorizações em tempo. Assim, ou não puderam efetuar a sua reunião e manifestação pacíficas, ou, sem a autorização, foram ao local da reunião, por vezes apenas na pessoa do organizador da reunião, e manifestaram-se, vindo frequentes vezes a ser detidos administrativamente, conduzidos à esquadra e colocados de seguida em liberdade. Como consequência, foi instaurado um processo administrativo, a correr contra eles, a partir desse momento, em que geralmente vieram a ser condenados no pagamento de coimas por desobediência à autoridade administrativa.

Foi sobre este quadro jurídico processual agravado pela prática judicial e administrativa, que o TEDH se debruçou primeiro para concluir que, nestas condições, os queixosos não só não tinham qualquer possibilidade de se reunirem e de se manifestarem, mas também não possuíam qualquer recurso efetivo desta complexa situação de direito e de facto, que os impossibilitava de reagirem e de obterem a satisfação do seu direito de reunião e manifestação pacíficas. Houve, assim, a violação do art.º 13.º da CEDH, ausência de recurso efetivo destas situações.

É também claro que neste quadro fica impossibilitado o próprio exercício do direito de reunião e de manifestação pacíficas. Como as situações materiais o demonstram, está patente um desconforto das autoridades frente aos temas das reuniões e das manifestações propostos: gays e lésbicas, protestos contra o Governo da Cidade de Moscovo, manifestações exigindo a demissão de Putin, manifestações exigindo o cumprimento da Constituição, sugerindo que esta não é cumprida, como seja, na reclamação do direito ao exercício das reuniões e das manifestações pacíficas consagrado no art.º 31.º da Constituição russa. Para o TEDH, o direito de reunião e de manifestação pacíficas conjuga-se com o direito à liberdade de expressão, e quando a Administração propõe a realização do evento em prazo curto de aceitação, em lugar discreto de uma cidade, quiçá nos seus arrabaldes, em alternativa ao pedido do requerente, a ligação do direito de reunião e de manifestação com o exercício do direito à expressão livre é patente. Houve pois uma violação em todas as queixas, como sucedeu com o art.º 13.º da CEDH, do art.º 11.º direito de reunião e de manifestação pacíficas, em conjugação com o artigo 10.º, direito à livre expressão, da CEDH.

Nos três casos que culminaram com detenções administrativas, pese embora estas conduções à esquadra fossem efetuadas no contexto do direito administrativo, podendo assim, ser designadas por detenções administrativas, nem por isso deixaram de ser detenções, e a privação de liberdade não foi, para o TEDH, motivada por nenhuma necessidade de segurança ou ordem pública, uma vez que os propósitos e a conduta dos detidos foram pacíficos. Houve, assim, privação injustificada da liberdade destas pessoas, contrária ao art.º 5.º par. 1 da CEDH.

Por fim, o caso do exercício do recurso de supervisão tem interesse para um jurista. Este recurso, herança do sistema de justiça soviético, permitia o exercício de uma supervisão judicial sempre que as autoridades judiciais, no quadro das suas decisões e dos recursos, produziam uma decisão não conveniente para o sistema de poder instituído. O Ministério Público ou uma autoridade superior podiam então acionar este mecanismo que levava um tribunal superior a rever a sua própria decisão, a rejeitá-la ou a reformula-la no sentido que fosse adequado à organização de poder estabelecida. Como é natural, este mecanismo judicial de supervisão tem vindo a ser rejeitado pelo TEDH que o aceita apenas quando mantém a equidade processual e a supervisão se manifesta numa última modalidade de recurso judicial com as várias garantias do artigo 6.º da TEDH (equidade, imparcialidade, uma relativa celeridade, igualdade de armas e contraditório), que permite corrigir uma decisão judicial que até possa ter pecado por injusta. Mas no caso destas queixas em que o recurso de supervisão interveio depois de duas decisões judiciais favoráveis ao requerente, de primeira instância e em recurso de apelação, verificou-se que a supervisão foi pedida pelo Governo da Cidade de Moscovo e que foi concedida sem debate judicial de qualidade, pelo tribunal superior. Regressou-se neste caso ao antigo regime da era soviética. E para o TEDH verificou-se a violação do art.º 6.º par. 1 da CEDH, direito a um processo equitativo. 

 

por: Paulo Marrecas Ferreira