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TEDH, Grande Chambre, 23 de fevereiro de 2017, De Tommaso c. Itália.

23 fev 2017

Requerente com condenações anteriores executadas. Termo de identidade e residência com um conjunto de proibições e a imposição de deveres por razões de segurança. Lei italiana imprecisa completada por uma muito clara jurisprudência do Tribunal Constitucional. CEDH, art.ºs 5. e 6. nas suas dimensões penais, não violação, CEDH Protocolo 4, art. 2.º, liberdade de circulação, violação. CEDH art.º 13, não violação. Numerosas e importantes opiniões dissidentes parciais.

De Tommaso, nascido em 1963, com antecedentes de gravidade, ligados ao tráfico de drogas e à posse e utilização de armas proibidas, com um passado pesado de condenações penais já executadas, veio a ser alvo de um processo de segurança que culminou com a aplicação judicial de uma medida complexa de coação, correspondente ao termo de identidade e residência, formado por uma teia de proibições, nomeadamente de mudar de residência, e de se abster de praticar determinados contactos, nomeadamente, e de injunções, como a de viver honestamente. Esta medida foi-lhe aplicada em 2007, no termo de um processo judicial visando a sua aplicação, proposta pelo procurador da república de Bari.

De Tommaso, opôs-se, invocando, nomeadamente, o que veio a ser verificado ser verdade, que se fazia confusão com um outro indivíduo do mesmo nome com um passado penal igualmente pesado, nascido em 1973, e arguindo que estas medidas atingiam, sem fundamento penal, o seu direito à liberdade e segurança e que, para mais careciam de equidade. Em 2009, algo tardiamente, o seu recurso veio a ser julgado procedente e foi anulada a medida de coação que lhe fora aplicada em 2007, com eficácia ex-tunc, ou seja, operando apenas para futuro.

Queixou-se ao TEDH de uma privação de liberdade arbitrária de relevância penal, nos termos do art.º 5.º par. 1 da CEDH que proíbe a privação arbitrária de liberdade, queixou-se da não equidade do seu processo judicial, à luz do art.º 6.º par. 1 da CEDH, qualificando-o como processo penal, e queixou-se da falta de recurso efetivo da sua condenação uma vez que a decisão chegou tarde e teve apenas eficácia ex-tunc, privando-o do reconhecimento judicial do seu sofrimento até à prolação da decisão de recurso.

O TEDH, entendendo que a privação de liberdade não teria relevância penal, por não resultar de uma condenação pela prática de um crime, mas apenas da aplicação judicial de uma medida de segurança, afastou a aplicação dos artigos 5.º e 6.º nos seus parágrafos primeiros e, considerou ser aplicável a art.º 2.º do Protocolo n.º 4.º à CEDH (direito a circular livremente), uma vez que foi atingida a liberdade de circulação de De Tommaso que não se podia afastar de casa. Mas não entendeu ser a relevância jurídica desta violação, de natureza penal, e sim, administrativa.

Uma vez que De Tommaso beneficiou de um recurso que veio a anular a condenação na medida de segurança, o TEDH entendeu que não houve a violação do artigo 13.º da CEDH (ausência de recurso efetivo).

No contexto do caso, o Governo italiano havia feito uma declaração unilateral em que propunha o arquivamento parcial da queixa e a limitação do seu objeto à questão da violação do direito a um processo equitativo, uma vez que a audiência de recurso não tinha sido pública. Nesta medida, o TEDH entendeu existir a violação do art.º 6.º par. 1 da CEDH, mas não no que se refere ao processo de aplicação da medida de coação entendido como um processo penal, porque o TEDH não o qualificou como penal.

Para a Grande Chambre apenas se verificaram, assim, a violação do direito à liberdade de circulação do requerente, art.º 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH e do direito a um processo equitativo na parte e na medida em que a audiência de recurso diante do tribunal não foi pública.

Apesar de o acórdão ter obtido vencimento por maioria, foram numerosos os juízes que se exprimiram em opiniões concordantes parciais ou dissidentes parciais. Estas dão uma luz esclarecedora obre o acórdão e a jurisprudência do TEDH no tocante aos processos judiciais nacionais que têm por finalidade a aplicação de medidas de coação.

Para os juízes Raimondi, Villiger, Sikutas, Keller e Kjolbro, a aplicação do art.º 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH estava correta, mas não por uma imprecisão da lei italiana que tornaria inseguro o resultado e a sua aplicação imprevisível; sim porque a medida, não sendo “necessária numa sociedade democrática” não seria proporcional. O juiz Dedov, propôs que no mundo judiciário se recorra menos à aplicação judicial de medidas de coação. O juíz Sajó remetendo para a opinião de Paulo Pinto de Albuquerque entendeu que os art.ºs 5.º e 6.º nos seus parágrafos 1 eram aplicáveis na sua dimensão penal. Para o juiz Vucini, houve violação dos art.ºs 6.º e 13.º, remetendo também para a posição de Paulo Pinto de Albuquerque.

Na sua opinião dissidente parcial, o juiz Paulo Pinto de Albuquerque entende que eram aplicáveis os artigos 5.º e 6.º da CEDH na sua dimensão penal. E que também era aplicável o artigo 13.º pela privação de um recurso efetivo a que, segundo ele, De Tommaso foi sujeito.   Tudo isto, porque as medidas de coação, judicialmente decididas sem condenação por um crime (aqui De Tommaso já tinha executado todas aas suas condenações), desqualificam uma pessoa antes de desqualificarem um facto.  Ora o que deve ser relevante numa condenação, é o facto, não a pessoa. O TEDH nunca tinha julgado sobre as medidas de coação, vindo a fazê-lo agora, mas eventualmente de um modo infeliz. Assim, quanto à aplicação do art.º 5.º par. 1, privação da liberdade, na sua jurisprudência até Guzzardi, o TEDH entendia que o processo tinha natureza penal porque a sua consequência, ainda que limitada a uma medida de coação, representava a aplicação de uma pena. Depois de Guzzardi, e no presente acórdão, o TEDH entendeu que estes processos eram de natureza meramente administrativa. Ora, no caso concreto, as próprias autoridades judiciais italianas atribuem relevância penal a estas medidas de coação. Para o juiz Paulo Pinto de Albuquerque, havia que passar a pente fino cada uma das alíneas do par. 1 do art.º 5.º e concluir que nenhuma delas era aplicável e por isso, concluir pela violação do art.º 5.º par. 1. Por outro lado, é jurisprudência constante do TEDH que as sanções disciplinares decididas em processo disciplinar, à partida inserido no direito administrativo, quando de gravidade, possuem relevância penal. Também, além da natureza penal da privação de liberdade de De Tommaso, assumia, pela sua gravidade, o processo a que foi sujeito De Tommaso, uma relevância penal. Logo, para o juiz P.P.de Albuquerque, houve também a violação do art.º 6.º par. 1 da CEDH.

Quanto ao art.º 13.º, além do facto de que há um erro sobre a pessoa de De Tommaso, confundido com um seu homónimo 10 anos mais novo, o De Tommaso nascido em 1963 a que se aplicou este quadro processual, não beneficiou de um recurso efetivo na aceção do art.º 13.º da CEDH. Com efeito, não apenas a decisão do recurso veio tarde, impedindo-o de circular, de contactar com certos familiares, amigos e conhecidos e impondo-lhe um conjunto pesado de limitações até à sua prolação, como esta decisão limitou os seus efeitos para futuro, a partir da sua formulação. De Tommaso não pôde assim obter reparação pelos danos sofridos até à prolação da sentença de recurso, uma vez que esta só valia para futuro, apagando o passado e por conseguinte o sofrimento do requerente sem lhe dar reparação.

Kuric exprimiu receio quanto à própria justiça - do TEDH. Na sua opinião dissidente afirmou entender que se a maioria tivesse optado pela relevância penal do caso, o que corresponde à sua posição, nunca teria ido buscar o art.º 2.º do Protocolo n.º 4 para alicerçar a mesma: teria aplicado de imediato o art.º 5.º par. 1, e teria certamente dado aplicação ao art.º 6.º par. 1 na sua dimensão penal, uma vez que deveria ter – a partir da verificação da natureza de pena das privações de liberdade do requerente – prestado atenção à equidade do processo penal do requerente. Também para este juiz, a anulação ex tunc da sentença condenatória na medida de coação é uma limitação grave da possibilidade de reparar o prejuízo de De Tommaso que ficou privado de um recurso efetivo da violação do seu direito a uma justiça efetiva. A preocupação que o juiz Kuric exprime tem a natureza de uma angústia relativa ao modo como uma privação de liberdade pode ser, para o efeito da aplicação das competentes garantias, desqualificada da sua relevância penal para uma natureza meramente administrativa.

 

por: Paulo Marrecas Ferreira