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TEDH, Grande Chambre, 23 de junho de 2016, Baka c. Hungria

29 jun 2016

Juiz indisciplinado em defesa da democracia. Reforma da organização judiciária. Defesa intransigente de um conjunto de valores. Teste Eskelinen de admissibilidade. Ataque ad hominem.

O Conselheiro Baka, que exerceu as funções de juiz húngaro do TEDH de 1991 a 2008, foi nomeado, de regresso ao seu país, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.

Em Abril de 2010 o Fidesz e o Kdnp ganharam as eleições legislativas e formaram governo. Empreenderam uma reforma da organização judiciária.

Uma das primeiras medidas foi a anulação, por meio de uma lei, de julgamentos de 2006 relativos a manifestações então decorridas, em que Baka se pronunciou no sentido de que este diploma impedia a liberdade de expressão dos juízes.  Foi acusado de empregar o seu lugar público para influenciar o processo legislativo.  Outra medida foi um recurso ao Tribunal Constitucional de certas decisões judiciais.  Baka estava contra, em nome da independência judicial. Também contestou a reforma a propósito do novo limite legal de idade, que iria, segundo ele, agravar os problemas relativos ao atraso na justiça.

Baka veio a dirigir uma carta ao Primeiro Ministro dizendo ser a reforma inaceitável e traduzir-se numa humilhação para o poder judicial. Veio a emitir um comunicado destinado a um público húngaro e da U.E. em que criticava a reforma judiciária por esta atacar e diminuir a independência e  a autonomia dos juízes.  Chegou a recorrer desta lei para o Tribunal Constitucional que julgou algumas das suas normas inconstitucionais. Dirigiu ao Parlamento um documento em que analisava e criticava a reforma sugerindo modificações. Exprimiu receios sobre a reforma que daria demasiados poderes ao executivo em detrimento do judiciário.

Em 25 de Abril de 2011 foi promulgada a nova Constituição na Hungria. O Supremo Tribunal de Justiça passou a ter o nome de Kuria. Durante os trabalhos preparatórios da Constituição alguns deputados haviam assegurado que apenas mudaria o nome do STJ mas que os titulares dos cargos se manteriam em funções. Outros deputados, nesses mesmos trabalhos, pediram a mudança do presidente do STJ em funções.

Na sua versão final, a Constituição continha exigências que Baka não podia satisfazer por não possuir o tempo de funções exigido, não contando, para o cargo, o tempo em funções enquanto titular do cargo de juiz húngaro do TEDH. O mandato do Presidente do STJ, agora Kuria, terminou assim três anos e meio antes do fim legal inicial, tendo o juiz Baka ficado com a presidência de uma seção cível da Kuria.

Baka não pôde recorrer. Veio a queixar-se ao TEDH da violação do artigo 6.º par. 1 da CEDH, direito de acesso a um tribunal; e do artigo 10.º da CEDH, direito à expressão livre, bem como destes artigos articulados com o art. 13.º, direito a um recurso efetivo e o art. 14.º, não discriminação.

Olhando para a questão à luz do artigo 6.º par. 1, o TEDH aplicou o teste que desenvolveu na sua jurisprudência Vilho Eskelinen, segundo o qual para saber se um titular de cargo público se pode queixar ao TEDH, há que verificar se a lei interna não exclui o titular do cargo do acesso ao tribunal; e se a exclusão legal do acesso a um tribunal é justificada por razões de interesse público. E concluiu que porque ninguém afetou diretamente a posição do juiz Baka, uma vez que a mudança ficou a dever-se a uma manipulação das leis e da Constituição, a queixa de Baka era admissível à luz dos seus critérios.

Para a Grande Chambre este critério é tanto mais válido quanto a função judicial não sendo um serviço público ordinário, não deixa de ser serviço público.  Fora das decisões judiciais, as quais estão cobertas pela irresponsabilidade e independência dos juízes, o único fundamento de despedimento de Baka poderia ter sido a sua incompetência na gestão do tribunal. Ora esta não foi alegada, e formalmente nada foi dito contra ele.

Posto e verificado este critério de admissibilidade, o TEDH verificou que havia a disputa sobre um direito, tanto mais que geralmente os magistrados de um órgão em transição são usualmente mantidos em funções até ao termo do seu mandato; verificou ainda, mediante o recurso a documentos internacionais, que a posição da Hungria relativamente ao seu poder judicial não está, em casos próximos debatidos, nomeadamente no plano das Nações Unidas, em conformidade com a preeminência do direito; e notou que Baka teve o cuidado de se queixar não num plano político, mas contestando a sua posição profissional, e laboral, e até enquanto futuro pensionista, provocada pela modificação constitucional e legislativa.

Para o TEDH, perante este quadro, houve violação do artigo 6.º, par. 1 da CEDH, Baka foi privado pelo jogo das reformas constitucional e legislativa, do direito de acesso  a um tribunal.

Sobre a liberdade de expressão (art.º 10.º), o TEDH verificou que desde a sua jurisprudência Vogt, o art.º 10.º é também aplicável aos funcionários públicos, e assim, por maioria de razão aos titulares de cargos públicos. O juiz Baka exprimiu-se frontalmente contra a reforma, alguns deputados pediram a sua substituição no quadro dos trabalhos de elaboração da nova Constituição, as regras de acesso ao cargo de conselheiro foram feitas sob medida para excluir o seu tempo enquanto juiz internacional. Verificou-se, prima facie, uma interferência na liberdade de expressão que o Governo não desfez para além de toda a dúvida razoável. Fica claro que o propósito desta ingerência foi o afastamento do juiz Baka, o que lhe retira a legitimidade à luz da CEDH e também resulta claro que uma medida desta natureza não é necessária numa sociedade democrática. Nomeadamente, atacar a livre expressão dos juízes pode ter um efeito dissuasor sobre a sua independência ao proferirem as suas sentenças e ao lavrarem os seus acórdãos. Houve assim violação do art.º 10.º, direito à liberdade de expressão do juiz Baka.

O TEDH afastou a queixa ao título dos art.ºs 13.º e 14.º por não trazer nestes pontos, questões diversas das examinadas.

De interesse são ainda as opiniões concordantes de P.P. Albuquerque e de Dedov, que dizem que o teste Eskelinen não seria suficiente para admitir a queixa de Baka. Com efeito, a Constituição prevendo pelo jogo das suas disposições, que não se podia queixar, o direito genericamente considerado de Baka aceder ao direito, não existiria, e o TEDH não o poderia então considerar. Deveria tê-lo feito, na medida em que este jogo de disposições constitucionais e legais representou uma medida ad hominem, uma medida dirigida em concreto a Baka, adotada por ser Baka seu destinatário.

Além desta lúcida constatação, estes Altos Magistrados entendem que a CEDH é ius constitucionale commune na Europa e deve permitir controlar, como o fez muito bem neste caso o TEDH, as derivas de qualquer partido político.

O juiz Sicilianos, em voto concordante nota que o Direito internacional público está em evolução, passando-se do direito a ter um juiz independente, para o direito à independência de um juiz.

Existem ainda duas opiniões dissidentes.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira