Juiz indisciplinado em defesa da democracia. Reforma da organização judiciária. Defesa intransigente de um conjunto de valores. Teste Eskelinen de admissibilidade. Ataque ad hominem.
O Conselheiro Baka, que exerceu as funções de juiz húngaro do TEDH de 1991 a 2008, foi nomeado, de regresso ao seu país, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
Em Abril de 2010 o Fidesz e o Kdnp ganharam as eleições legislativas e formaram governo. Empreenderam uma reforma da organização judiciária.
Uma das primeiras medidas foi a anulação, por meio de uma lei, de julgamentos de 2006 relativos a manifestações então decorridas, em que Baka se pronunciou no sentido de que este diploma impedia a liberdade de expressão dos juízes. Foi acusado de empregar o seu lugar público para influenciar o processo legislativo. Outra medida foi um recurso ao Tribunal Constitucional de certas decisões judiciais. Baka estava contra, em nome da independência judicial. Também contestou a reforma a propósito do novo limite legal de idade, que iria, segundo ele, agravar os problemas relativos ao atraso na justiça.
Baka veio a dirigir uma carta ao Primeiro Ministro dizendo ser a reforma inaceitável e traduzir-se numa humilhação para o poder judicial. Veio a emitir um comunicado destinado a um público húngaro e da U.E. em que criticava a reforma judiciária por esta atacar e diminuir a independência e a autonomia dos juízes. Chegou a recorrer desta lei para o Tribunal Constitucional que julgou algumas das suas normas inconstitucionais. Dirigiu ao Parlamento um documento em que analisava e criticava a reforma sugerindo modificações. Exprimiu receios sobre a reforma que daria demasiados poderes ao executivo em detrimento do judiciário.
Em 25 de Abril de 2011 foi promulgada a nova Constituição na Hungria. O Supremo Tribunal de Justiça passou a ter o nome de Kuria. Durante os trabalhos preparatórios da Constituição alguns deputados haviam assegurado que apenas mudaria o nome do STJ mas que os titulares dos cargos se manteriam em funções. Outros deputados, nesses mesmos trabalhos, pediram a mudança do presidente do STJ em funções.
Na sua versão final, a Constituição continha exigências que Baka não podia satisfazer por não possuir o tempo de funções exigido, não contando, para o cargo, o tempo em funções enquanto titular do cargo de juiz húngaro do TEDH. O mandato do Presidente do STJ, agora Kuria, terminou assim três anos e meio antes do fim legal inicial, tendo o juiz Baka ficado com a presidência de uma seção cível da Kuria.
Baka não pôde recorrer. Veio a queixar-se ao TEDH da violação do artigo 6.º par. 1 da CEDH, direito de acesso a um tribunal; e do artigo 10.º da CEDH, direito à expressão livre, bem como destes artigos articulados com o art. 13.º, direito a um recurso efetivo e o art. 14.º, não discriminação.
Olhando para a questão à luz do artigo 6.º par. 1, o TEDH aplicou o teste que desenvolveu na sua jurisprudência Vilho Eskelinen, segundo o qual para saber se um titular de cargo público se pode queixar ao TEDH, há que verificar se a lei interna não exclui o titular do cargo do acesso ao tribunal; e se a exclusão legal do acesso a um tribunal é justificada por razões de interesse público. E concluiu que porque ninguém afetou diretamente a posição do juiz Baka, uma vez que a mudança ficou a dever-se a uma manipulação das leis e da Constituição, a queixa de Baka era admissível à luz dos seus critérios.
Para a Grande Chambre este critério é tanto mais válido quanto a função judicial não sendo um serviço público ordinário, não deixa de ser serviço público. Fora das decisões judiciais, as quais estão cobertas pela irresponsabilidade e independência dos juízes, o único fundamento de despedimento de Baka poderia ter sido a sua incompetência na gestão do tribunal. Ora esta não foi alegada, e formalmente nada foi dito contra ele.
Posto e verificado este critério de admissibilidade, o TEDH verificou que havia a disputa sobre um direito, tanto mais que geralmente os magistrados de um órgão em transição são usualmente mantidos em funções até ao termo do seu mandato; verificou ainda, mediante o recurso a documentos internacionais, que a posição da Hungria relativamente ao seu poder judicial não está, em casos próximos debatidos, nomeadamente no plano das Nações Unidas, em conformidade com a preeminência do direito; e notou que Baka teve o cuidado de se queixar não num plano político, mas contestando a sua posição profissional, e laboral, e até enquanto futuro pensionista, provocada pela modificação constitucional e legislativa.
Para o TEDH, perante este quadro, houve violação do artigo 6.º, par. 1 da CEDH, Baka foi privado pelo jogo das reformas constitucional e legislativa, do direito de acesso a um tribunal.
Sobre a liberdade de expressão (art.º 10.º), o TEDH verificou que desde a sua jurisprudência Vogt, o art.º 10.º é também aplicável aos funcionários públicos, e assim, por maioria de razão aos titulares de cargos públicos. O juiz Baka exprimiu-se frontalmente contra a reforma, alguns deputados pediram a sua substituição no quadro dos trabalhos de elaboração da nova Constituição, as regras de acesso ao cargo de conselheiro foram feitas sob medida para excluir o seu tempo enquanto juiz internacional. Verificou-se, prima facie, uma interferência na liberdade de expressão que o Governo não desfez para além de toda a dúvida razoável. Fica claro que o propósito desta ingerência foi o afastamento do juiz Baka, o que lhe retira a legitimidade à luz da CEDH e também resulta claro que uma medida desta natureza não é necessária numa sociedade democrática. Nomeadamente, atacar a livre expressão dos juízes pode ter um efeito dissuasor sobre a sua independência ao proferirem as suas sentenças e ao lavrarem os seus acórdãos. Houve assim violação do art.º 10.º, direito à liberdade de expressão do juiz Baka.
O TEDH afastou a queixa ao título dos art.ºs 13.º e 14.º por não trazer nestes pontos, questões diversas das examinadas.
De interesse são ainda as opiniões concordantes de P.P. Albuquerque e de Dedov, que dizem que o teste Eskelinen não seria suficiente para admitir a queixa de Baka. Com efeito, a Constituição prevendo pelo jogo das suas disposições, que não se podia queixar, o direito genericamente considerado de Baka aceder ao direito, não existiria, e o TEDH não o poderia então considerar. Deveria tê-lo feito, na medida em que este jogo de disposições constitucionais e legais representou uma medida ad hominem, uma medida dirigida em concreto a Baka, adotada por ser Baka seu destinatário.
Além desta lúcida constatação, estes Altos Magistrados entendem que a CEDH é ius constitucionale commune na Europa e deve permitir controlar, como o fez muito bem neste caso o TEDH, as derivas de qualquer partido político.
O juiz Sicilianos, em voto concordante nota que o Direito internacional público está em evolução, passando-se do direito a ter um juiz independente, para o direito à independência de um juiz.
Existem ainda duas opiniões dissidentes.
Autor: Paulo Marrecas Ferreira