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TEDH, Grande Chambre, 26 de abril de 2016, Izzettin Dogan e outros c. Turquia

2 maio 2016

Ramo Sunita do Islão contemplado como religião predominante na República Turca. Ausência de acesso ao reconhecimento oficial de outros ramos religiosos ou de outras religiões. Comunidade alevita. Pedido de reconhecimento administrativo assentando numa base não discriminatória. Existência de obrigações negativas e positivas a cargo do Estado em matéria de liberdade de religião. Art. 9.º CEDH, violação, art. 14.º articulado com o art.º 9.º, violação.

Izzettin Dogan e 229 outros requerentes, de nacionalidade Turca, assinaram uma petição pedindo ao Primeiro-Ministro do seu País a integração do Ramo Alevita do Islão no conjunto de deveres do Departamento dos Assuntos Religiosos (DAR), colocado sob a sua dependência. Este Departamento tem a seu cargo a gestão, manutenção e construção de equipamento religioso pertencente ao Ramo Sunita do Islão, bem como a integração no quadro da função pública, com todas as vantagens que lhe estão associadas, dos Ministros do culto do Ramo Sunita do Islão. Sendo a República da Turquia um Estado laico, não existe, dentro das opções constitucionais deste país, o acesso de uma comunidade religiosa, por meio de registo ou outro, ao estatuto de religião.  Consequentemente, fora o Ramo Sunita do Islão, que é gerido pelo DAR, nenhuma confissão religiosa pode obter subsídios ou benefícios económicos de qualquer natureza, nomeadamente fiscais, por parte do Estado turco.

A petição não terá recebido resposta do Primeiro-Ministro.

Os 230 requerentes acionaram os tribunais administrativos em coligação de autores, mas embora estas instâncias judiciais lhes reconhecessem a qualidade de membros de uma comunidade religiosa, a afirmação de que a República turca é um Estado laico, a dificuldade em justificar uma decisão a pedido de 230 indivíduos, enquanto a comunidade alevita ascende a cerca de 20 a 25 milhões de cidadãos na Turquia, a necessidade de alargar este tipo de decisão judicial, caso o resultado fosse positivo, às várias outras comunidades religiosas – e são numerosas, contando com elevado número de fiéis – na Turquia, levaram os tribunais dos vários graus da jurisdição administrativa a negar provimento aos pedidos de Izzedin Dogan e dos seus 229 outros coligados.

Queixaram-se estes ao TEDH, no fim deste percurso judicial. E esta alta instância internacional observou, primeiro, que o Ramo Alevita do Islão promove uma interpretação Sufi racional do Islão, a unidade de Alá, a profecia de Maomé e que entende que o Alcorão é a palavra de Alá. Tudo caracteriza, assim, a comunidade alevita como uma comunidade partilhando uma fé religiosa própria, que ascende merecidamente à qualidade de confissão religiosa. As questões relativas a esta confissão e aos direitos que a rodeiam estão assim dentro da esfera do artigo 9.º da CEDH, direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Pelo que qualquer posição que o Estado possa assumir relativamente a esta confissão entra dentro da chamada ingerência do Estado na liberdade religiosa.

O TEDH estudou a seguir a existência de deveres positivos e negativos a cargo do Estado. Deveres negativos certamente existem, nomeadamente o dever de abstenção e de respeito, na aparência já reconhecido na Turquia, uma vez que a prática alevita se desenvolve livremente. Os deveres positivos são menos evidentes mas também se vislumbram. Assim, procedendo a um estudo de direito comparado, o TEDH identificou vários grupos de Estados laicos e as suas relações com as confissões religiosas. Alguns, abstêm-se de todo, e, coerentemente, nenhuma confissão é apoiada. Outros, abstêm-se de interferência, mas reconhecem a legitimidade das confissões às quais, mediante registo, concedem subsídios e outros benefícios, nomeadamente fiscais, como sucede em Portugal.

O cerne do problema esteve, neste acórdão no facto de a Turquia apoiar o Ramo Sunita do Islão, de maneira que as obras de manutenção, reparação e construção do património correm a cargo do orçamento do Estado bem como a remuneração dos Ministros do culto que são, no caso deste ramo em particular, funcionários públicos. O TEDH, não vendo razão para que esta prática seja exclusiva para uma confissão religiosa, identificou deveres positivos a cargo do Estado, como o de assegurar as mesmas prestações a qualquer confissão religiosa. Houve assim, no acórdão da Grande Chambre, violação do artigo 9.º da CEDH, uma ingerência não proporcional no direito à liberdade de religião da comunidade alevita, da parte do Estado, em violação do artigo 9.º da CEDH.

No domínio dos deveres negativos, a simples ausência de resposta da parte das autoridades aos vários pedidos da comunidade alevita foi o suficiente para haver discriminação (art.º 14.º) em função da confissão religiosa (art.º 9.ºda CEDH).

Num interessante voto, em parte dissidente, em parte concordante, para além das várias opiniões expressas por outros juízes do TEDH, os juízes Villiger, Keller e Kjolbro tomaram posição sobre este assunto.  Para estes altos magistrados, é impensável configurar os deveres positivos a cargo do Estado como contrapartida de um direito a prestações materiais das várias confissões religiosas. Seria, é, ir demasiado longe, nomeadamente frente à própria jurisprudência do TEDH e a uma forma de bom senso, num Estado laico em que deveria prevalecer, não um apoio demasiado pronunciado às várias confissões religiosas, mas, antes, uma forma de não ingerência, de abstenção, ainda que mitigada por certos apoios, se esta fosse a solução do Constituinte nacional, numa base não discriminatória. Assim, segundo estes juízes, não haveria a violação do art.º 9.º da CEDH na base de uma eventual violação de deveres positivos tão extensos a cargo do Estado. Já haverá, também para estes altos magistrados, a violação dos artigos 14.º (não discriminação) e 9.º (em função da liberdade religiosa), uma vez que num Estado laico do Conselho da Europa, uma confissão religiosa assume o estatuto de religião do Estado, aquela que merece a dedicação de um serviço próprio, o DAR sob a dependência do Primeiro-Ministro, à satisfação do seu conjunto de necessidades em pessoal, património e gestão.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira