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TEDH, Grande Chambre, 27 de janeiro de 2015

2 fev 2015

Violência doméstica. Crime continuado. Modificação da legislação criminal. Identidade de previsão anterior e de previsão posterior à modificação. Alegação de não conformidade com o art. 7º da CEDH. Não violação.

Rohlena sofrendo de alcoolismo há muitos anos, vinha exercendo violência doméstica sobre a mulher, traduzida esta em espancamentos contínuos e em dissipação do património conjugal.  Estes factos foram testemunhados também pelos filhos.

A queixa da mulher seguiu o seu curso e o processo penal contra Rohlena, iniciado antes de 2004 veio a prolongar-se até 2008.

2004 é relevante porque é o ano em que o direito penal checo passou a prever o tipo unificado de abuso de pessoa vivendo sob o mesmo teto, sendo que a anterior legislação criminal checa previa esta ofensa em tipos separados, embora, em cúmulo, viesse a aplicar-lhes no final uma pena semelhante.

Condenado pela sucessiva violência, de que são exemplos empurrar a mulher contra móveis ou atirá-la para o chão, tendo esta sofrido, nomeadamente a quebra do seu nariz, Rohlena vem a queixar-se da violação do artigo 7º da CEDH, segundo o qual, para ser punido um facto como crime, este deve ser previsto em lei vigente na altura do cometimento dos factos. Para Rohlena, uma vez que o tipo aplicado foi o tipo vigente posterior a 2004, as ofensas anteriores a 2004 teriam sido punidas sem base legal.

A seção do TEDH que havia julgado o caso já concluíra que não se verificava tal violação, pois os tribunais checos haviam aplicado a noção de crime continuado.

A Grande Chambre, examinando o recurso interposto da decisão da seção, da parte de Rohlena, vem confirmar esta solução, afirmando, depois de um estudo largo do direito europeu, que a noção de crime continuado é uma noção vigente na Europa, e é objeto de um largo consenso.  Rohlena não obteve assim vencimento na sua queixa, entendendo a Grande Chambre que não se verificou violação do art.º 7º da CEDH. 

Com efeito, atendendo a que os factos continuaram após a modificação legal de 2004, uma vez que as previsões anteriores forneciam o mesmo recorte aos factos objeto do tipo e que, no final a pena aplicável é semelhante, os tribunais checos tinham legitimidade para aplicar a noção de crime continuado e impor a pena vigente no momento do julgamento final, bem depois de 2004, ou seja a pena decorrente da modificação da disposição penal aplicável.

Este acórdão é extremamente importante, na medida em que é dos poucos acórdãos, com a exceção do Acórdão Del Rio Prada, também notícia a seu tempo nesta página, que se ocupa da noção de crime continuado.

Tem ainda o interesse de revelar uma pequena polémica entre juízes do TEDH (ver o voto concordante da juíza I. Ziemele) sobre o consenso europeu o qual repousando no reconhecimento nas diferentes ordens jurídicas nacionais de figuras semelhantes, acabaria, pelas variações de regimes legais, por ser um consenso aparente, documentado em abundante doutrina de importantes autores de dimensão europeia, entre os quais alguns juízes do TEDH.

E permite-nos vislumbrar sob a pena do juiz Português, Dr. Paulo Pinto de Albuquerque o desenvolvimento pós romanístico (a figura no direito romano não existiria, tendo sido introduzida por juristas da alta idade média entre os quais Bártolo de Saxoferrato) da noção de crime continuado e como, chegando até nós, acaba por ser reconhecida como uma figura operante no próprio direito europeu.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira