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TEDH, Grande Chambre, 30 de março de 2017, Nagmetov c. Rússia.

10 abr 2017

Repressão de manifestação por agentes da autoridade apontando diretamente as armas à multidão. Falecimento de manifestante. Incapacidade em conduzir o inquérito sobre os factos. CEDH art.º 2.º Direito à vida, substancial e processual, violação. Pedido incorretamente formulado de reparação pelo dano moral. Atribuição oficiosa da reparação pelo dano moral em Acórdão do TEDH. A questão de saber até onde pode o TEDH conceder uma reparação ultra petitum. CEDH art.º 41.º

Murad, filho de Nagmetov, tomou parte numa manifestação contra a corrupção na cidade de Miskindzhe na República do Dagestão (no Cáucaso do Norte), violentamente reprimida pelas autoridades que chegaram a disparar tiros de armas de fogo contra os manifestantes (dando nomeadamente lugar à queixa Primov e outros c. a Rússia) e a disparar granadas lacrimogéneas apontando diretamente aos manifestantes as armas de disparo destas granadas. Murad foi atingido no corpo por uma destas granadas e faleceu em consequência do disparo.

As autoridades reconheceram que os agentes tinham atuado em violação de uma Diretiva administrativa de 1996, que recomendava não apontar este tipo de engenhos aos manifestantes. Mas foram extremamente morosas na investigação dos factos, ao ponto de não identificarem nem o responsável pelo disparo nem a arma com que disparou. A prática tendeu para a suspensão da investigação várias vezes reaberta a pedido de Nagmetov e repetidamente suspensa por falta de prova. Entretanto, os próprios vestígios que identificavam a granada no corpo de Murad, inicialmente recolhidos e registados desapareceram. A investigação, após a recolha da prova só começou nove meses depois, a prova desapareceu e as autoridades foram incapazes de ligar o projétil à arma e a arma ao agente, o que o TEDH não aceitou.

Houve assim duas violações do art.º 2.º da CEDH, uma substancial, correspondente à violação do direito à vida de Murad uma vez que este foi morto pelas autoridades, e outra, processual, do seu direito à vida por se ter verificado a incapacidade das autoridades em investigarem os factos.

Mas o que realmente este Acórdão tem de inovador, está no arbitramento pela Seção de uma reparação pelo prejuízo moral a Nagmedov, quando este tinha deficientemente formulado o correspondente pedido na sua queixa.

E foi o que motivou o pedido das autoridades Russas de reenvio da questão da Seção para a Grande Chambre, que manteve o decidido por remissão para o Acórdão da Seção, precisando, mesmo assim, os contornos da sua jurisprudência.

Para o TEDH, Nagmedov demonstrou não desistir de uma reparação, embora tenha formulado deficientemente este pedido, de tal modo que não chegou a formular uma pretensão indemnizatória de relevo, perante as regras de processo do TEDH. A Grande Chambre, precisando que a sua jurisprudência se destina a resolver as questões de direitos humanos que lhe são colocadas, e a rasgar as avenidas da sua jurisprudência futura, ao decidir os novos casos que lhe são apresentados, entendeu que o requerente tem o ónus de formular um pedido segundo as regras processuais e que, se não o fizer, tem o ónus de suportar a concretização do perigo de um erro do seu mandatário. Por outro lado, uma decisão de violação de um dos artigos da Convenção consiste frequentes vezes, por si só, na reparação razoável que o caso merece, não havendo pedido de satisfação equitativa. É assim tanto para os danos materiais como para os danos morais. Recorde-se apenas que a indemnização por danos materiais tem a função de ressarcir, na impossibilidade de restituição integral, os danos em bens, ou as despesas que o facto gerador do dano provocou, e que a indemnização por danos morais tem a função de ressarcir, na medida do possível, alguém, pelo sofrimento que o facto gerador do dano lhe causou (assim, o sofrimento causado pela perda de um ente querido, pela incapacidade, física, ou outra,0 permanente adquirida com este evento, ou o sofrimento causado a um ente querido pelo falecimento do próprio).

Nada imporia, assim, ao TEDH que arbitrasse uma reparação a Nagmedov pelo falecimento do filho, uma vez que tinha deficientemente formulado este pedido. Mas mostrou não desistir de uma reparação, e a gravidade do caso alertou os juízes para a sensibilidade desta questão. E, assim, tanto a Seção como a Grande Chambre avançaram neste caminho da concessão de uma reparação, em compensação do sofrimento do pai.

Foram fundamento desta indemnização, apesar das regras do Regulamento de processo, nomeadamente o artigo 60.º, que a parecem excluir em caso de formulação deficiente do pedido, a possibilidade que o próprio texto do art.º 41.º da CEDH, superior porque constante da Convenção, concede ao TEDH, de decidir neste sentido; a gravidade da situação, bem como a indisponibilidade desta indemnização no ordenamento jurídico russo. Esta indemnização, pela simples passagem do tempo desde 2008, já não seria muito provavelmente concedida pelos tribunais russos, mesmo se estivesse prevista nalguma norma jurídica em vigor. Por outro lado, ambas as partes no processo de queixa reconheceram a existência deste grande sofrimento. Nestas condições o TEDH entendeu atribuir 50 000 Euros a Nagmetov pelo sofrimento resultante da perda do seu filho nas condições em que sobreveio.

Os juízes Nussberger, Lemmens Raimondi, O’Leary e Ranzoni, exprimiram opiniões concordantes, em que aceitam a solução dada ao caso pelo TEDH mas alertam para o perigo desta jurisprudência abrir um caminho de incerteza na interpretação judicial das normas da CEDH e do regulamento em casos futuros desta natureza, pelo Tribunal.

Ainda assim, a excecionalidade das circunstâncias e o facto de o TEDH ter muito rigorosamente circunscrito os limites da sua capacidade de intervenção oficiosa ao conceder a indemnização pelo sofrimento, a título de satisfação equitativa, à parte lesada, conduzem a um sentimento de segurança perante esta decisão; o leitor deste Acórdão congratulando-se pelo reconhecimento da existência de autonomia por parte do Tribunal, relativamente ao pedido, nestas excecionais e gravíssimas circunstâncias e nesta matéria, do sofrimento das pessoas. 

 

por: Paulo Marrecas Ferreira