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TEDH, Grande Chambre, Beuze c. Belgica, Acórdão de 9 de novembro de 2018

23 nov 2018

CEDH, Artigo 6.º, Par. 1 e 3c), Direito a um processo equitativo, direito à defesa por advogado da sua escolha, em particular na fase da investigação e inquérito. Jurisprudências anteriores de referência, Salduz c. Turquia e Ibrahim c. Reino-Unido.

Beuze queixou-se ao TEDH contra o Reino da Bélgica por alegada violação do seu direito de acesso a um advogado durante o tempo em que permaneceu em detenção na esquadra de polícia, sem ser informado do seu direito ao silêncio e à não autoincriminação, e por, durante este período, ter sido interrogado por polícias e por um juiz sem ter beneficiado da assistência de advogado.

A Seção do TEDH a quem a queixa foi atribuída renunciou à sua jurisdição em benefício da Grande Chambre.

O Requerente, Beuze, encontra-se atualmente a cumprir pena de prisão perpétua nos termos do Direito Penal Belga. Foi preso em França em 2007 em execução de mandado de detenção europeu emitido pelo juiz de instrução de Charleroi. Era então indiciado da morte da sua namorada nesse ano de 2017. Tinha ainda um historial de violência, tendo deixado nessa mesma época uma outra mulher, amiga de ambos, então grávida, por morta, depois de a ter espancado. Felizmente, esta vítima sobreviveu e ajudou à reconstrução dos factos. Matou a namorada diante do seu filho de treze anos com um machado e um martelo, tendo, no início, rejeitado a culpa dos factos imputando-os a esta criança que, segundo ele, teria morto a mãe com o martelo. As suas sucessivas confissões, obtidas sem violência pelo trabalho dos polícias e do juiz de instrução, na esquadra, permitiram a reconstituição dos contornos exatos do crime.

Nesse período, foi notificado de que podia requerer a transcrição das perguntas que lhe foram feitas. No final deste período, foi constituído arguido dos crimes descritos sobre as vítimas, em particular do homicídio da sua namorada (veio a ser julgado por quatro crimes, o homicídio da namorada, as agressões graves sobre a amiga do casal, e um conjunto de actos qualificados como roubo com violência e fraude). Não é ponto controvertido entre as partes (o Requerente e o Governo) que o arguido não foi autorizado a comunicar com o advogado entre a sua entrega pelas autoridades francesas e o fim da sua detenção policial, momento em que foi constituído arguido e beneficiou dos seus direitos de defesa. Veio a ser julgado por um tribunal de júri, o qual recebeu, como quadro de factos, o material probatório obtido durante o período passado em detenção na polícia. Os magistrados profissionais não deram aos jurados quaisquer instruções no sentido do manuseamento desta prova, nem sobre as garantias que devem assistir a um arguido submetido a um julgamento por um tribunal de júri, limitando-se a entregar a estes o teor do despacho de pronúncia.

O Requerente pediu a anulação dos registos de provas resultantes dos interrogatórios na fase da detenção na esquadra de polícia, foi acusado pelo Ministério Público, acusação que foi recebida pelo tribunal e remetida sob a forma do teor do despacho pronunciando o Requerente pelos crimes de que era acusado, aos jurados; foi julgado e condenado e perdeu todos os recursos que veio a interpor. Acabou por ser condenado à pena de prisão perpétua, em cujo cumprimento neste momento se encontra.

Esta situação decorreu antes de o TEDH proferir o seu Acórdão no caso Salduz c. Turquia, referente exatamente ao mesmo problema e que determinou na Bélgica a adoção da “Lei Salduz” , em 2011, que passou a consagrar o direito à assistência por advogado nas fases preliminares da investigação e do inquérito. Também decorreu antes de o TEDH proferir o seu Acórdão no caso Ibrahim c. Reino-Unido, em que o TEDH aceitou que o direito a um advogado pode ser excecionalmente afastado em casos de criminalidade muito violenta (como os casos de terrorismo), sob a condição de este advogado aparecer numa fase posterior do processo e de se proceder, neste caso, à avaliação da equidade geral do processo penal.

O Requerente acabou por se queixar ao TEDH. A Grande Chambre considerou a queixa admissível e, quanto ao fundo, fixou os seguintes princípios gerais: existe o direito de cada um à defesa por advogado. O ponto importante para determinar a constituição na esfera do titular, do direito ao advogado, é o momento a partir do qual existe uma “acusação em matéria penal” no sentido do n.º 1 do art.º 6.º da CEDH contra uma pessoa. Esta acusação em matéria penal no sentido do artigo 6.º da CEDH não tem o conteúdo técnico formal da constituição como arguido, ou da acusação do Ministério Público, ou do Despacho de pronúncia. Basta que uma suspeita esteja já suficientemente corporizada, e que alguém passe a ser o destinatário da atividade da Justiça com fundamento nesta suspeita. 

O acesso ao advogado destina-se a prevenir os erros e os desvios nos quais pode incorrer o funcionamento da Justiça. Manifestação destes princípios, o suspeito, ainda não arguido, necessariamente, deve poder contactar o advogado e solicitar a sua presença nos interrogatórios policiais e naqueles que forem conduzidos por magistrados, a que estiver sujeito. Este o teor da jurisprudência Salduz, conforme o recordou a Grande Chambre.

A Grande Chambre recordou também que, apenas razões compulsórias (Ibrahim) podem justificar que assim não seja. Neste caso, é necessário proceder a um teste da equidade global do processo.

Passou a construir os critérios deste teste da equidade global do processo: são fatores do teste de equidade, a vulnerabilidade do suspeito; as circunstâncias da obtenção de prova; o quadro legal vigente; a natureza das declarações; o uso da prova; o peso do interesse público; e as garantias processuais concedidas ao suspeito.

A Grande Chambre verificou que o suspeito não pôde comunicar com um advogado no tempo da sua permanência na esquadra de polícia; apenas pôde contactar um advogado quando o juiz o constituiu arguido e decidiu a sua manutenção em prisão preventiva; mesmo nesta situação, as autoridades seguiram a prática de não o deixar aceder a um advogado; esta prática inquinou toda a fase da investigação e do inquérito, atingindo a própria instrução do processo; não se consegue saber, dos autos, com exatidão, quando teve lugar o primeiro contacto do já então arguido, com o seu advogado.

Aplicando os critérios que o TEDH definiu a estes elementos, conclui-se que não existia vulnerabilidade do Requerente, o qual não enfermava de qualquer deficiência, nomeadamente mental, e não se encontrava em desespero; também se sabe que não foram exercidas pressões para a obtenção de prova; quanto ao quadro legal, o Requerente recebeu cópia de tudo, mas quando passou a beneficiar de advogado, este mudava constantemente, atingindo a estabilidade necessária à sua defesa; a natureza das declarações foi importante, na medida em que foram conduzidas e obtidas de maneira a afetar a posição do queixoso; o uso da prova também foi suspeito, na medida em que o despacho de pronúncia foi lido aos jurados sem quaisquer instruções, da parte dos magistrados profissionais, quanto ao manuseamento da informação e da prova, e quanto ao modo de assegurar o respeito das garantias do arguido; o interesse público na punição do crime existia; quanto às garantias processuais, não basta existirem no quadro legal, devem traduzir-se na materialidade, articulando-as com a evolução do processo. Por estas razões, a Grande Chambre concluiu que se verificou a violação do artigo 6.º par. 1 e 3 c) da CEDH.

Na sua opinião concordante comum, os juízes Yudkivska, Vucinic, Turko e Hüseynov criticam a decisão do TEDH. Votaram no seu sentido porque entendem que se verificou a violação do artigo 6.º par. 1 e 3 c) da CEDH. Mas para eles, a Grande Chambre operou um recuo na jurisprudência do TEDH. No seu entender, se o caso couber na jurisprudência Salduz, ou seja se não existirem razões compulsórias para afastar o advogado na fase inicial do processo penal, há sempre violação do direito ao acesso a advogado sem que se deva fazer o teste da equidade geral do processo. O que não se passou aqui. Depois de se verificar que não existiam razões compulsórias para afastamento do advogado, ainda se foi verificar se o processo era globalmente equitativo e, apenas quando se verificou não estarem reunidos estes pressupostos, é que se optou pela violação; quando esta, uma vez observada a não existência de razões compulsórias, devia ter sido logo declarada, pela simples falta do advogado.

Já, se existissem as razões compulsórias de afastamento do advogado, na fase inicial do processo penal, seguindo a jurisprudência Ibrahim (criminalidade particularmente grave, com perigo de continuação e reincidência imediata, mormente o terrorismo), e que fosse legítimo aceitar o afastamento do advogado, na fase inicial do processo penal, então haveria lugar sempre à avaliação da equidade geral do processo.

Assim, impor a avaliação da equidade geral do processo, num quadro de inexistência de razões compulsórias de afastamento do advogado na sua fase inicial, e não condenar imediatamente o Governo, pelo desrespeito da regra que consagra o direito ao advogado, em todas as etapas do processo penal, significa recuar, em relação ao avanço que fora o alcançado com a jurisprudência Salduz.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos