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TEDH, Grande Chambre, G.I.E.M. e outros c. Itália, Queixas n.º 1826/06 e outras, Acórdão de 12 de agosto de 2023

11 set 2023

CEDH, Artigo 1º do Protocolo n.º 1 à CEDH, art.º 6.º § 2 e artigo 7.º (direito de propriedade, presunção de inocência e legalidade das penas).    

CEDH, violação verificada dos direitos de propriedade, à presunção de inocência e ao direito à legalidade das penas. O presente Acórdão trata da questão indemnizatória.   

Enquadramento do caso.

Quatro sociedades comerciais segundo o direito italiano e um cidadão, também italiano, queixaram-se, em 21 de dezembro de 2005, em 2 de agosto de 2007 e em 23 de dezembro desse último ano contra a Itália, em razão do desrespeito, da parte da República italiana, do seu direito de propriedade. O TEDH viria a concluir pela violação do art.º 1.º do Protocolo n.º 1.º à CEDH (direito de propriedade), da presunção de inocência do art.º 6.º § 2 da CEDH, bem como do princípio da legalidade das penas, constante do art.º 7.º da CEDH (Nullum crimen, nulla poena sine lege lata).

O Acórdão ora sob análise não vem resolver a substância das queixas que o TEDH já atendeu, mas vem tratar da questão da indemnização.

O Direito.

A argumentação expendida neste Acórdão foi a de que a expropriação indireta, cuja ilicitude declarada pelo Tribunal nacional deu lugar ao confisco das propriedades, seu objeto, está em violação flagrante da Convenção europeia dos direitos humanos. Como sabemos, nomeadamente do caso Aprile aqui divulgado no início deste ano, o Estado paga às suas vítimas uma renda definida pelo tribunal na pendência da expropriação, vindo a pagar uma indemnização no momento em que o tribunal nacional converte o esbulho de propriedade em confisco. Curiosamente, existem regras vigentes relativas à expropriação administrativa de bens imóveis, as quais nunca são cumpridas.

No tocante ao artigo 7.º da CEDH, nullum crimen, nulla poena sine lege lata, o Acórdão aflorou um tema interessante. O da indefesa da pessoa coletiva perante os seus gestores e administradores. Sendo a personalidade jurídica coletiva animada por pessoas singulares, mesmo que se aceite em certos casos tipificados na lei penal o princípio punitivo da responsabilidade criminal das pessoas coletivas (pois está nelas tão diluída a atividade criminal, que é melhor acabar logo com um determinado ninho de vespas, do que deixá-las grassar), há que convir que quem anima a personalidade coletiva, tanto para o bem, quanto para o mal (seja perdoada a semelhança com o maniqueísmo), são as pessoas.

Portugal conhece, no plano da lege condita, uma situação semelhante, em que a solução abona no sentido da que foi dada pelo TEDH, avultando, quer se julgue bem, quer mal, a responsabilidade individual dos administradores e gerentes das sociedades pelos débitos destas à Previdência. Pois a coletividade, em razão da importância social desta questão, não pode prescindir das entregas destas contribuições à SS, em razão do vigente sistema misto de seguro social em que Portugal tem alicerçada a sua Segurança Social. Também aqui avulta a consideração da implicação pessoal do administrador ou gestor, enquanto animador da personalidade coletiva (que ficaria inerte se o pacto social fosse celebrado e registado no RNPC e não viessem a ser constituídos os corpos sociais ou realizada a atividade, sendo algo diversa a questão da utilização das sociedades fictícias). É pois de interesse a leitura deste Acórdão no tocante, também, a estes particulares.

Quanto ao art.º 6.º § 2, os tribunais nacionais (em particular a Cassazione italiana) ignoraram por completo a presunção de inocência destas pessoas jurídicas (tanto o singular queixoso como as quatro sociedades implicadas).

Não tendo havido a disponibilidade de recurso efetivo deste quadro algo difícil e espinhoso, o TEDH considerou também, nestes 5 casos, a ocorrência da violação do art.º 13.º da CEDH, pela ausência de disponibilidade para as vítimas de um recurso efetivo das violações da parte da AP a que foram sujeitos.

Nesta complexa sentença, que fica assim descrita, a Grande Chambre tinha deixado para momento posterior a questão da indemnização, nos termos do art.º 41.º da CEDH. É desta questão que trata o presente Acórdão, o qual é, no fundo, já execução de sentença (recorde-se a frase conhecida dos advogados “até integral pagamento da dívida, a liquidar em execução de sentença”, claro que se trata geralmente da questão dos juros de mora, mas o juiz de execução pode vir a ser confrontado com questões mais complexas, no plano concreto, após a prolação da sentença declaratória de condenação, em sistema que tem muitas analogias com a natureza declaratória dos Acórdãos do TEDH). 

Das cinco queixas, três foram cumpridas mediante a simples prolação da sentença da Grande Chambre. Duas, não obstante a clareza do Acórdão, foram o tema de um recurso extraordinário de revisão de sentença.  Como se pode entender, o fundamento deste recurso extraordinário de revisão é a incompatibilidade do caso julgado interno com o teor da decisão internacional de julgamento final da causa (embora cumpra não esquecer que não se trata de recurso para instância internacional de julgamento, sendo, de resto, precisamente por isto que esta questão se coloca, ou o tribunal superior devolvia à instância nacional para cumprimento do superiormente decidido).

No demais, o que tornou agora possível a emissão desta sentença de arbitramento da indemnização foi o ter-se já procedido às verificações e correções documentais, nomeadamente de registo predial, pelo menos nos três casos que não estão sujeitos à necessária revisão de sentença, tendo-se possivelmente, aqui, procedido aos registos provisórios possíveis.

Neste complexo quadro processual, o esbulho violento provocou a dissolução, por falência, de uma das sociedades interessadas, com a correspondente perda de emprego e os danos graves daí decorrentes ao envolvente ambiente social. Esta falência, hoje insolvência de pessoa coletiva, como se a mudança de vocábulo para politicamente correto atenuasse os efeitos da consumação do dano já ocorrido, em cumprimento das normativas europeias, determinou o pedido, da parte dos administradores de insolvência, da consideração desta vítima no cálculo indemnizatório, no sentido, precisamente, da minimização do dano social coletivo em razão da não reposição o mais integral possível de todos os fluxos económicos em circulação.

A determinação dos montantes indemnizatórios.

Os montantes atribuídos ao título das indemnizações nestes processos constam do Acórdão que se encontra disponível na base HU DOC do TEDH em www.echr.coe.int

Não interessam as expressões pecuniárias para esta divulgação, mas sim as várias temáticas jurídicas que afloram nestas expropriações indiretas, no momento da indemnização.

Poderia existir um paralelo, não fora a dignidade humana, bem mais importante que a técnica jurídica, entre a distinção corrente do direito latino entre damnum emergens, o dano emergente concreto como reproduziu a legislação portuguesa, e lucrum cessans, o lucro cessante, como em tradução sem mediação ficou vertido nos diplomas portuguesas e a temática da reparação do dano efetivo e da reparação da perda de qualidade de vida de um sujeito vítima de uma lesão corporal por exemplo.

A razão da inviabilidade deste paralelo, assentando na dignidade humana, está espelhada na inexistência de danos morais, no sentido da técnica jurídica, a invocar em benefício da personalidade coletiva. Ou seja, as pessoas coletivas tem direitos de patente e de autor, estabelecimento, aviamento e clientela e podem ter uma ou várias unidades fabris e escritórios, tudo merecedor de avaliação, em sede de prejuízos por dano ilícito, mas não sofrem danos morais.

De particular cuidado numa questão que pode envolver como consequência uma falência ou insolvência, a merecer especial ponderação em caso de atuação contra uma sociedade comercial ou equiparada, para o efeito da aplicação das regras de insolvência, é a ordem dos privilégios dos credores. Chamam-se mobiliários e podem ter que ver ou não com títulos negociáveis (os valores mobiliários). Assim, a banca tem privilégio mobiliário especial sobre a massa falida, e bem assim na graduação dos créditos, a Fazenda (graduada em 1.º), e a Segurança Social (pelos débitos à Previdência em que se existir património do gerente, este património irá aliviar a responsabilidade da massa falida da pessoa coletiva), terceiros credores comerciantes no giro da atividade económica na medida em que a insolvência se destina a não travar o fluxo económico, e por fim, os trabalhadores em si considerados apenas gozam de privilégio mobiliário geral. O que é injustiça e não conforto para o estudante que aprende na Faculdade de Direito as regras sobre privilégios mobiliários. Os do trabalho são apenas gerais e não especiais. Logo cedem. E isto pode ser dramático em grandes áreas tocadas por desemprego endémico, como a Puglia.

Seja como for, o TEDH considerou apenas o dano na sua expressão pecuniária, pois, em sede de pessoas coletivas, não existe o problema do dano da perda de qualidade de vida e o particular queixoso não terá sofrido, salvo contração de doença prolongada oportunista, uma perda de qualidade de vida reparável ao título do dano moral.

A questão que me permiti evocar na sua complexidade tradicional foi colocada por todas as vítimas pessoas coletivas em floreados pedidos de sabor italianizante. Foram invocados danos à imagem das sociedades, etc… O TEDH conseguiu manter a ordem do seu raciocínio como iremos ver.

Também se poderia ter colocado o problema do tempo de privação de propriedade indemnizável. Ora como o Governo italiano, mercê da consolidação judicial do esbulho a que usa proceder, paga sempre a renda na pendencia do processo até ao confisco (o termo é o usado pelo TEDH, nada me autoriza a utilizar outro), isto poderia vir a colocar o problema de uma sobreposição de indemnizações e de eventuais repetições do indevido. O TEDH obviou ao problema ao considerar a indemnização apenas a partir da verificação da situação formal de confisco.

A Avaliação do TEDH

O TEDH fixou a sua jurisprudência de referência nos seus Acórdãos Kuric, 2014, Molla Sali, 2020, Brumaresco, 2001; Guiso Gallisay, 2009, e Naganov, 2017. Na parte da substância das violações e não da indemnização, o Ac. proferido no caso Molla Sali, foi também, a seu tempo, objeto de divulgação nesta página eletrónica.

Em matéria de nexo de causalidade dano-indemnização, seguiu o seu Acórdão proferido no caso Olewnik Cieplinska de 2019. Sobre o ónus da formulação de pedidos indemnizatórios (ou o TEDH considera que a prolação da sentença é reparação equitativa), seguiu os seus Acórdãos proferidos nos casos Thaleis Kaydi Axte, de 2011, e Zhidov e Outros, de 2020.

O TEDH estabeleceu, em sede geral, a linha diretora segundo a qual, nos casos de dano pecuniário resultante de confisco de propriedade imobiliária, em violação do art.º 1.º do Protocolo n.º 1 da CEDH, devem ser tidos em conta o valor do imóvel antes da prática do dano, e, bem assim, do edificado que o prédio suporta (as partes rústica e urbana segundo a linguagem do registo predial), a suscetibilidade de o terreno poder ser alvo ou não de licença de construção ao tempo da expropriação, o uso do bem imobiliário, de acordo com a função social do direito de propriedade à luz da Constituição e da lei, expressa no seu enquadramento nos planos diretores municipais e no seu destino para área residencial, industrial, agrícola, turística, ou simplesmente de residência principal ou secundária do titular. A perda de valor em razão do confisco também é indemnizável. Aqui avultam, além de considerações de mercado imobiliário, os concretos problemas resultantes de alteração de edificado ou de destruição de edificado. Foi, aliás, esta tipologia de critérios muito concretos de avaliação do dano (e não os resultantes de considerações algo hipotéticas de mercado) que o TEDH privilegiou.

Foram assim indicadores para o efeito da indemnização:

1. a indisponibilidade do uso da propriedade (após o formal confisco), intervindo assim, como é frequente na jurisprudência do TEDH, a relevância do critério temporal;

2. a deterioração do imóvel em matéria de edificado;

3. a perda de valor sofrida pela propriedade em relação ao seu valor anterior.

 

O exame destes indicadores pelo TEDH.

Na verificação do preenchimento destes critérios, o TEDH procurou saber se os imóveis em causa podiam beneficiar de licenças de construção antes do confisco. Foi rigoroso, no sentido de colocar o ónus deste segmento probatório nos particulares interessados. Também procurou o TEDH averiguar se este confisco provocou uma modificação do fim social da propriedade, em concreto, de cada um dos imóveis, ou seja, se passaram a definitivamente não edificáveis, etc. O último ponto foi tema de concessão de um suplemento na indemnização a duas das sociedades interessadas.

Enfim, o TEDH considerou todas as despesas processuais e administrativas provocadas pela reparação da situação que estes confiscos provocaram, como medidas de restabelecimento de registo, registos provisórios, e taxas e contribuições análogas.

Além, obviamente, dos honorários dos advogados, segundo o caráter razoável da sua taxa na correspondência ao esforço por estes desenvolvido com o processo de queixa, segundo a fórmula usual em sede do art.º 41.º da CEDH, nos vários Acórdãos em que estes sejam peticionados (se não forem pedidos não são satisfeitos, ver supra).

Merece, também para o cultor de direitos humanos que nestes se especialize, interesse e alguma dedicação, o tema das indemnizações pelos vários danos, e de como e quais acontecem em que situações e condições, pois o direito da vítima é possivelmente uma vertente do direito que irá conhecer desenvolvimento futuro, na medida em que do delinquente, já se sabe que beneficia do direito constitucional aplicado do Beccaria ou dele deveria beneficiar, mas da vítima nada se sabe.

 

Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos